Índios lutam para salvar 2 línguas da extinção no interior

OESP, Metrópole, p. A30 - 15/03/2015
Índios lutam para salvar 2 línguas da extinção no interior
Três moradoras idosas da tribo Vanuíre, em Arco-Íris, são referência de projeto que transmite idiomas às novas gerações

Edgar Maciel - O Estado de S. Paulo

"Ithók rerre nógam". As três palavras da língua crenaque poderiam ser traduzidas para: "A língua ainda resiste". Na tribo Vanuíre, em Arco-Íris, no oeste paulista, 200 índios de duas etnias tentam manter a tradição viva. Por lá, os idiomas kaingang e crenaque estão em processo avançado de extinção. Em toda a tribo, apenas três índios idosos são falantes fluentes dos dialetos. Agora, os esforços se concentram para que as crianças voltem a falá-los.
Em 1500, especialistas estimam que havia 1.175 línguas no País. Hoje, são cerca de 180 dialetos vivos, mas todos em risco de extinção, segundo a Unesco. "A grande maioria das línguas desapareceu com a própria população falante, principalmente por causa dos conflitos por terra", diz o professor Wilmar D'Angelis, doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Juvelina Krenak, de 110 anos, é a única índia que fala fluentemente o grupo linguístico macro-jê, dos indígenas boruns. Naturais do norte de Minas, são popularmente conhecidos como krenaks. Eles habitavam uma região rica em ouro e, após conflitos com garimpeiros, deixaram a área. Em 1940, o Serviço de Proteção ao Índio (SIP), atual Funai, enviou parte da população para São Paulo.
Os krenaks se tornaram maioria em Vanuíre - são cerca de 140 índios - e dividem o dia a dia na tribo com os kaingangs, que foram os primeiros a habitar a região, em 1919. Eram mais de 4 mil e hoje não passam de 20 representantes e apenas Ênia Kaingang, de 82 anos, e Dirce Kaingang, de 80, mantêm a língua da etnia viva.
Silêncio. Embora fluente, o trio preferiu deixar os idiomas em silêncio. Por anos, tiveram medo de repassá-los às novas gerações. "Isso foi provocado por uma política de Estado. O SPI proibia as populações de falarem suas línguas. A coerção era a principal arma. Os índios chegavam a ser presos se ousassem se comunicar na língua materna", conta o arqueólogo Robson Rodrigues.
Lia Krenak, de 58 anos, é filha de Juvelina e, na infância, via os pais viverem com o medo de ensinar a cultura indígena. "Eles (os brancos) nos obrigaram a usar roupa na aldeia, não podíamos fazer pratos típicos. Meus pais não falavam crenaque perto da gente para a gente não aprender", afirma. " É triste ver a história se perder."
Escolas. Quem chega à tribo Vanuíre não vê mais ocas. A aldeia é uma vila, com casas com energia elétrica, internet e televisão. Carros e motocicletas chegam a formar um trânsito contínuo pelas ruas de chão batido. A igreja católica deu lugar aos cultos evangélicos na capela construída em 2012.
"O esquecimento das línguas já não acontece mais pelo extermínio dos povos, mas por uma imposição cultural. É como se você fosse obrigado a desistir de si, da sua história", diz Niminon Suzel Pinheiro, historiadora e especialista em tribos indígenas da Unip.
No centro da aldeia está a escola, construída em 2005. Para krenaks e kaingangs, simboliza a recuperação do tempo e da cultura perdidos. Cinquenta alunos frequentam a instituição, que tem um currículo próprio, adaptado para os índios.
Lidiane Krenak, de 27 anos, foi estudar Letras fora da tribo, mas foi dentro dela que buscou o conhecimento necessário para não ver o idioma morrer. "Fizemos um trabalho de convencimento com os índios mais velhos, para eles repassarem a língua, que é ensinada na sala de aula. Só eles poderiam transformar o medo do passado em esperança", diz.
Cinco professores indígenas, acompanhados de especialistas em Linguística e da consultoria de D'Angelo, transformam os fonemas em vocábulos escritos. "É um processo que demora pelo menos 20 anos para dar frutos. Para nossa surpresa, já vemos as crianças entendendo o que os mais velhos falam e arriscando algumas palavras. É uma sobrevida que as duas línguas ganharam", comemora D'Angelo.

GLOSSÁRIO
Crenaque
ambim: noite
arerré: bonito
areré ambimbim: bom dia
bacanã: passarinho
chtom: árvore
curré: jacaré
thé pú: eu vou chorar
irminham iapé: vamos beber água
thé minha pranmo: eu estou com sede
Kaingang
akanené: acabar
a íx: nós
ajoro: anta
brene: cinza
ka: árvore
kaél: papagaio
kanhére: macaco
de: animal
dó: flecha
ején: comida
oa: olá
langen dó kaxa: meio-dia
nha: dente
nhá: mãe


'Não tenho mais ninguém para falar', diz idosa em tribo indígena
Aos 110 anos, dona Juvelina Krenak tenta manter sua língua viva

Edgar Maciel - O Estado de S. Paulo

Na certidão de nascimento de Juvelina Krenak está escrito: 20 de outubro de 1935. Oficialmente, seriam 80 anos. Dona Juvelina, no entanto, tem 110 anos de idade. Só foi registrada quando ela, o marido e os 12 filhos foram retirados da área indígena no norte de Minas e removidos para São Paulo, na tribo Vanuíre. Hoje, vive sozinha em uma das casas da aldeia e é a única falante da língua crenaque no Estado.
A índia é considerada a consultora oficial dos professores e pesquisadores que trabalham para recuperar o idioma. Mas, na presença de estranhos, disfarça e é uma mulher de poucas palavras. "Não sei quase nada de crenaque. Não tem mais ninguém para conversar comigo e deixei de lado. É melhor esquecer", diz.
O clima é tranquilo, mas pela quantidade de pessoas, a PM não descarta a possibilidade de tumultos
Mentir é uma forma de proteção. Repressão e agressão são duas palavras que Juvelina lembra com frequência sobre quando tentava se comunicar em crenaque com os outros índios. "No começo, ela resistia. Falava em crenaque com o meu pai, meus tios. Mas, com tanto sofrimento, desistiu. Guardou as palavras para si", conta a filha Lia Krenak, de 58 anos.
A árvore genealógica da centenária índia tornou-se grandiosa com o passar dos anos. Entre filhos, netos, bisnetos e tataranetos são mais de 140 pessoas. Nenhum deles aprendeu a língua. Todos foram "protegidos". "Eu não quero que eles sofram. São minha família, a quem eu quero bem", diz.
A última vez em que Juvelina falou a língua fluentemente foi quando uma prima distante, que mora em Minas, visitou a tribo Vanuíre, em 2004. "Consegui lembrar da minha infância, dos meus pais que morreram quando eu era pequena, de como a minha vida era antigamente", diz ela.
Fim do silêncio. Para quebrar o ciclo do silêncio e repassar o conhecimento do idioma foi necessário um longo processo de convencimento. A neta Lidiane Krenak, de 27 anos, visitou a avó durante dois anos, até ela concordar em voltar a falar a língua indígena. "Tentava conversar em crenaque com a vó e ela insistia no português. Até que um dia ela de repente começou a contar histórias do passado na nossa língua."
Hoje, Juvelina passa os dias vigiando a pequena plantação de milho, brinca com os sete gatos e cozinha os pratos típicos da tribo. À tarde, senta na varanda e espera a visita de algum parceiro de prosa. "Se alguém senta nessa cadeira não sai em menos de duas horas. Vai ter uma aula com um dicionário ambulante", brinca Lidiane.

OESP, 15/03/2015, Metrópole, p. A30

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,indios-lutam-para-salvar-2-linguas-da-extincao-no-interior,1650877

http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,nao-tenho-mais-ninguem-para-falar-diz-idosa-em-tribo-indigena,1650883
PIB:Sul

Related Protected Areas:

  • TI Vanuire
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.