Valor Econômico, Especial/Energia, p. F1 - 28/08/2015
Perdas e ganhos
Roberto Rockmann
Detentor de uma das cinco maiores disponibilidades de geração hídrica do mundo, com cerca de 10% dos recursos existentes no planeta, o Brasil tem nas usinas hidrelétricas sua fonte de geração mais competitiva e importante. Em um momento de transição da matriz, que deverá se tornar mais diversificada e complexa, a fonte deve perder participação nos próximos anos, com aumento da presença térmica e de fontes intermitentes, como solar e eólica. Mesmo assim, ainda será a principal responsável pela geração de eletricidade no país.
Entre este ano e 2018, o governo pretende contratar entre 25 mil e 31 mil MW de capacidade instalada em novos projetos de geração de energia elétrica, dos quais a maior parte - 11 mil MW - se refere a hidrelétricas. Os maiores destaques estão por conta de dois dos maiores projetos futuros na região Norte, ambos no rio Tapajós, no Pará: a usina de São Luiz dos Tapajós, com 8 mil MW de potência e investimentos estimados em R$ 26 bilhões, e a de Jatobá, com 2,3 mil MW de capacidade instalada e recursos previstos em R$ 10 bilhões. Também avalia a licitação da hidrelétrica de Tabajara (RO), com 350 MW de capacidade.
Na região Sul, o governo pretende licitar cinco hidrelétricas: Ercilândia (87 MW), Foz Piruqui (97 MW), Paranhos (67 MW), Apertados (139 MW) e Telêmaco Borba (118 MW). A intenção do governo é conceder, primeiro, São Luiz dos Tapajós, depois obter os licenciamentos para as usinas da região Sul e em seguida colocar em leilão a usina de Jatobá.
Provavelmente, a licitação de São Luiz dos Tapajós será feita em 2016.
"Estamos buscando fazer neste ano, mas está muito difícil. Em 2017 ou 2018, poderíamos fazer Jatobá", afirma o presidente da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), Mauricio Tolmasquim.
A maioria dessas novas usinas será feita sem grandes reservatórios. Com mais usinas a fio d'água, o sistema está mais dependente das chuvas. A capacidade de armazenamento das hidrelétricas caiu de 6,3 meses para 4,7 meses em dez anos e poderá cair mais até o fim da década.
Entre 2013 e 2018, quando as usinas do rio Madeira e Belo Monte entram em operação, está prevista a entrada de 20 mil MW de capacidade hídrica no sistema, sendo que só 200 MW têm reservatórios. Isso fará com que a capacidade de armazenamento caia para 3,8 meses em 2018, segundo estimativas da CPFL Energia. A menor área de alagamento reduz os impactos ambientais, mas torna o sistema mais dependente de São Pedro.
"As hidrelétricas enfrentam muitos problemas na área ambiental, com atrasos na construção, estamos desequilibrados. É a fonte mais adequada do ponto de vista energético, mas a questão ambiental é complicada, o que exigirá uma ampla diversificação da matriz", afirma Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe-UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás. "Neste ano, não tivemos problemas porque a demanda da indústria está muito fraca, por conta da recessão."
Nesse contexto, ganham relevância as novas fontes, como a eólica e a solar, enquanto as térmicas fósseis também avançam.
"É preciso começar a discutir se faremos hidrelétricas com reservatórios ou se as térmicas irão operar na base", pondera o diretor geral do Operador Nacional do Sistema (ONS), Hermes Chipp.
Diretor de estratégia e inovação da CPFL Energia, Rafael Lazzaretti, aponta que o país conta com um potencial hidrelétrico teórico total de 260 GW, sendo que desse montante 160 GW podem ser executáveis. Desses, 106 GW já foram contratados ou estão sendo construídos. Haveria ainda cerca de 50 GW a ser erguidos nos próximos anos. "Boa parte desse potencial deve se esgotar nos próximos 20 anos. Estamos em um momento de reflexão, porque precisaremos saber para onde iremos e as escolhas vão ficando mais complexas", observa.
O governo já estuda as hidrelétricas reversíveis, que operam nos horários de maior consumo de energia turbinando água do reservatório superior para o inferior. Nos horários de menor consumo, funcionam bombeando parte da água de volta para o reservatório superior. "Também estamos analisando nas já existentes a colocação de uma turbina extra, onde for possível, para elevar a geração na ponta", diz Tolmasquim.
As hidrelétricas, que nas décadas de 1980 e 1990 respondiam por mais de 80% da geração de eletricidade, deverão ter uma perda relativa de participação na matriz ao longo dos próximos anos. Em 2002, essas usinas respondiam por 82% da produção de energia. Hoje, por conta dos efeitos da estiagem, representam pouco mais de dois terços, enquanto as térmicas representam 18%, e as eólicas, 4%. Em 2024, a energia hidroelétrica responderá por 58%, as eólicas, 11%, a solar, 3%, e as térmicas, 14%, segundo perspectiva preliminar do Plano Decenal 2024, elaborado pela Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE).
As hidrelétricas a fio d'água elevam a geração térmica e as emissões de gases de efeito estuda do setor de energia. Segundo pesquisa do Observatório do Clima, entre 1970 e 2013, o segmento quadruplicou a emissão de poluentes globais, chegando a 2013 com 29% das emissões brasileiras. Se considerados apenas os últimos cinco anos, as emissões da área energética aumentaram 34%. "A expansão se deve à queda da participação do etanol, ao aumento do consumo de gasolina e diesel, além do incremento de geração termelétrica", afirma Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima.
O sistema também deve se tornar cada vez mais complexo. As grandes hidrelétricas estão sendo construídas na região Norte, enquanto a maior parte do consumo está concentrada nas regiões Sudeste, Sul e Nordeste. Isso cria a necessidade de transferência de grandes blocos de energia entre as regiões e cria a necessidade de ampliação dos troncos de transmissão. O que abre a discussão sobre se vale a pena pagar pela adoção de sistemas de contigência dupla nas interligações para, desta forma, reduzir os riscos de incidentes.
Os projetos hídricos têm custo de geração mais baixo: cerca de R$ 100 a 120 o MWh, enquanto as térmicas custam mais do que o dobro desse valor. Mesmo com essa competitividade, os preços deverão ser pressionados com as novas condições de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que agora financiará até 50% dos projetos e não mais 70% deles, e com a desvalorização cambial.
O custo marginal de expansão das usinas na região Norte também é mais elevado, seja pelas compensações ambientais, seja pelas dificuldades de construção no local. Isso deve também contaminar o preço da energia no longo prazo. Em 2018 e 2019, a CPFL previa um preço de R$ 150 o MWh. "Deve ter um acréscimo no novo cenário", diz Lazzaretti.
Com cerca de dois terços do potencial hidrelétrico na região Norte, a questão ambiental terá tanta importância quanto a indígena, já que algumas usinas estão próximas a tribos. A licitação da hidrelétrica de São Luiz dos Tapajós chegou a ser anunciada no fim do ano passado, mas foi cancelada porque o estudo ambiental concluído em setembro identificou 14 impactos negativos para povos indígenas, dos quais seis foram considerados irreversíveis. A Fundação Nacional do Índio (Funai) alega que o projeto da usina é inconstitucional, pois alagará terras indígenas, o que é vetado pelo artigo 231 da Constituição Federal.
Uma das ideias presentes no debate foi dada há algum tempo pelo presidente da EPE. Tolmasquim apresentou um projeto a vários ministérios sugerindo que os índios pudessem receber royalties de empreendimentos que os afetassem diretamente. Em vez de irem para o orçamento da Funai, os recursos seriam gerenciados por um comitê tripartite, formado por comunidade, investidores e Funai. Uma experiência semelhante à realizada em hidrelétricas do Canadá, em que algumas tribos passam a ter pequena participação em usinas.
Há uma outra preocupação: desde a retomada dos projetos hidrelétricos na região Norte, esses empreendimentos sofreram atrasos em alguma etapa, o que acabou resultando em dificuldade de atender aos prazos de geração de energia elétrica. De dificuldades na obtenção de licenciamento ambiental a questões trabalhistas, envolvendo greves e distúrbios que ocasionaram até incêndios e brigas, a retomada da construção trouxe dúvidas sobre o custo real e os prazos. "Eles saíram acima do investimento inicialmente orçado e com atrasos, o que pode levar a maior conservadorismo dos investidores nos futuros", afirma o diretor da CPFL Energia.
Para Mauricio Tolmasquim, pode até ser discutido se vale a pena mudar os prazos de construção desses empreendimentos estruturantes, que devem ser colocados de pé em cinco anos.
Para reduzir o impacto ambiental, o governo busca consolidar, nas novas usinas da região Norte, uma outra forma de construir os empreendimentos, inspirada nas plataformas marítimas de exploração de petróleo e gás, onde os trabalhadores se revezam em turnos. As usinas no rio Tapajós seriam construídas sem a instalação de vilas operárias,
cidades e centros comerciais no entorno. A ideia é criar alojamentos temporários, entre outras instalações, que serão desmontados no fim da obra, reduzindo a possibilidade de grandes migrações para a região. Além disso, vias provisórias de acesso serão desfeitas e a vegetação recomposta, com replantio de árvores.
Segundo o relatório de impacto ambiental, a implantação da usina afetará diretamente cerca de 1.400 pessoas. Em torno de 1.100 pessoas deverão ser removidas para dar lugar à barragem e às demais estruturas. Para a construção, serão contratados 13.000 trabalhadores no período de maior intensidade das obras, entre o segundo e terceiro anos de construção. Outras 12,5 mil pessoas podem chegar em busca de emprego e negócios.
Valor Econômico, 28/08/2015, Especial/Energia, p. F1
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Energia:Política Energética
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