Os conflitos das últimas semanas envolvendo índios em Mato Grosso do Sul e os protestos de grupos contra a construção da usina de Belo Monte expõem um governo que lida de maneira dúbia com a questão indígena.
De um lado, a gestão Dilma Rousseff tenta barrar o descontrole das demarcações promovidas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e afagar os produtores rurais. Do outro, permite o funcionamento de um núcleo de apoio à causa indígena dentro do próprio Palácio do Planalto, que tem como expoente o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. A consequência: capitula diante da primeira pressão de indígenas e de grupos que dizem representá-los, permitindo episódios como o custeio da viagem de cerca de 150 índios para protestar em Brasília contra o próprio governo.
Na última sexta-feira, depois de meses sem conseguir controlar a situação, o governo finalmente demonstrou que pretende promover alguma mudança na Funai. A presidente - e miltante - Marta Azevedo deixou o cargo alegando motivos de saúde. Em seu lugar, assumiu interinamente a diretora de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável do órgão, Maria Augusta Assirati. Até então, as tentativas de colocar ordem nas demarcações e nos conflitos eram externas. Entre elas estava a recente suspensão de demarcações no Paraná e no Rio Grande do Sul a pedido da Casa Civil, comanda pela ministra Gleisi Hoffmann.
Mas essa foi apenas a terceira queda de braço em pouco menos de um ano entre índios e aqueles que querem maior controle externo nas demarcações. No início de maio, Gleisi Hoffmann chegou a criticar publicamente a forma como o processo era conduzido. "Delegamos única e exclusivamente à Funai a responsabilidade por estudos e demarcação de terras. Nem sempre estabelecemos procedimentos claros e objetivos nesse processo", disse.
Tentativas anteriores de mudar esse quadro de exageros da Funai já haviam resultado em uma série de protestos por parte dos índios e das entidades ligadas a eles. Sempre que o governo tenta colocar um pouco de ordem na questão das demarcações, grupos de índios promovem novas invasões, ocupam prédios de órgãos federais e bloqueiam rodovias. E tudo com o apoio de entidades de apoio a indígenas e ONGs. Diante de tudo isso, o governo recua rapidamente.
Portaria - Entre os recentes casos de intimidação está o que ocorreu com a publicação da chamada Portaria 303, da Advocacia-Geral da União, em julho de 2012. A medida visava, entre outras coisas, a estender a outros processos de demarcação as mesmas condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na criação da Reserva Raposa do Sol, em Roraima. Ou seja, vedava a ampliação de reservas já demarcadas, impedia a cobrança de pedágio pelos índios nas reservas e pretendia incluir na discussão da demarcação de terras os estados afetados.
A gritaria foi imediata. A Funai divulgou nota repudiando a medida e passou a fazer pressão contra ela. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma das maiores organizações de articulação de índios no país, disse que o governo estava "rezando a cartilha do capital ditada pelo agronegócio". Índios invadiram a sede da AGU em Brasília e em outros estados e bloquearam rodovias. Temerosa, a AGU suspendeu temporariamente a medida menos de dez dias depois. Em setembro houve nova tentativa de aprovar a portaria, mas diante de nova gritaria, ela voltou a ser adiada até o STF publicar o acórdão do caso Raposa Serra do Sol.
Em abril, houve novo choque. Dessa vez, o alvo foi o Congresso, que tinha acabado de aprovar a criação de uma comissão especial para analisar uma proposta de emenda constitucional que pretende transferir para o Congresso a competência de aprovar a demarcação de terras indígenas. O protesto dos índios entrou para a história da Câmara dos Deputados. Com os rostos pintados, um grupo formado por centenas de índios invadiu, pela primeira vez, o plenário e espantou a maioria dos deputados presentes.
Paraná - O total de reservas indígenas no Brasil já passa de um milhão de quilômetros quadrados, ou 12,5% da superfície do país, mas a Funai não parece disposta a abandonar sua fórmula de demarcações descontroladas.
No início de maio, um estudo sobre quinze áreas escolhidas para demarcação pela Funai no oeste do Paraná demonstrou com clareza o exagero com que a fundação e outros ativistas têm tratado o assunto.
Em 2012, diante das reclamações de produtores rurais paranaenses, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, encomendou à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) uma avaliação de áreas apontadas pela Funai para demarcação. O relatório trouxe resultados estarrecedores. Entre essas quinze áreas, a Embrapa demonstrou, por meio de fotos de satélites e outros mecanismos, que dez começaram a contar com a presença de indígenas somente a partir de 2007 - o que desmente os argumentos de "ocupação tradicional" usados pela Funai para justificar as demarcações.
Outras nem contavam com a presença de índios. Só numa delas foi detectada a presença de uma aldeia mais antiga, datando do ano não muito distante de 1990 e formada por índios de Mato Grosso do Sul. Está encravada em uma área urbana do município de Guaíra, na divisa com o Paraguai.
Xetá - Diante do quadro, Gleisi pediu a suspensão das demarcações no estado. A iniciativa ajudou a frear, entre outras, a demarcação da Reserva Xetá, que pretende entregar 120 km² de uma área na região de Umuarama, também no oeste do estado, para apenas cerca de cem índios da etnia xetá. Nesse pequeno grupo, apenas sete são considerados membros puros do povo, de acordo com estudos antropológicos. A maior parte do grupo original, de pouco mais de 200 pessoas, foi dizimada nos anos 50 quando entrou em contato com os brancos. Desses cem autointitulados xetás, mais de 90 membros têm apenas ascendência parcial, contando também com ancestrais brancos ou de índios de outras tribos.
Mas o número reduzido não havia intimidado a Funai e os apoiadoras dos índios, que acharam aceitável promover no início dos anos 2000 o renascimento da etnia com uma área equivalente a do município de Niterói, no Rio de Janeiro, onde vivem quase 500.000 pessoas. Para piorar, a área reservada para os xetás é ocupada por dezenas de fazendas, a maioria de propriedade de pequenos produtores, e uma vila rural.
O deputado federal Osmar Serraglio (PMDB-PR), relator da PEC que pretende transferir para o Congresso a decisão sobre demarcação, diz que o clima no campo "está pesado". "Não existe regra contra indígena. É como se fosse um efeito da natureza, ninguém pode reagir. A Funai, na verdade, faz o papel dela, é defensora dos indígenas, mas nós precisamos de alguém que faça o (papel de)advogado e ministério público, que faça o contrapeso, senão é uma unilateralidade exagerada", diz Serraglio, que tem como base eleitoral a região de Umuarama.
Suspensão - A exemplo do Paraná, as demarcações também foram suspensas no Rio Grande do Sul, onde estudos paralelos também devem ser realizados pela Embrapa e por outros órgãos, retirando aos poucos a exclusividade da Funai nas demarcações. Pode ser o começo do fim de uma exclusividade que dura décadas - e de um atribuição que, como mostra o atual cenário, só ajudou a alimentar o conflito. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul (Fetraf-Sul) estima que pelo menos 30.000 produtores gaúchos podem perder suas propriedades caso as demarcações sejam feitas pelos critérios da Funai no estado. A ministra já demonstrou que a intenção é levar essa modelo conjunto para outras regiões, incluindo Mato Grosso do Sul.
Em resposta às medidas, os índios passaram a mirar exclusivamente a figura da ministra Gleisi. No início da semana, um grupo de 30 indígenas invadiu a sede do diretório estadual do PT no Paraná, e estendeu faixas contra ela. Entidades como a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul acusaram Gleisi de sucumbir a interesses eleitorais - ela é provável candidata ao governo do Paraná em 2014 e recebeu doações de produtores na sua campanha para o Senado em 2010.
Mas a gritaria é dirigida, sobretudo, a essa nova divisão de tarefas da Funai, que por essas medidas na Região Sul deverá dividir a atribuição de demarcar terras com órgão mais isentos. Em reação, o secretário-geral do Cimi, Cleber Buzatto, escreveu em um artigo agressivo, conclamando os índios a "fazerem a defesa dos seus direitos". "Os povos indígenas precisarão de disposição para enfrentamentos mais contundentes, urgentes e permanentes em todos os níveis, desde a aldeia até o 'centro' do poder, em Brasília", escreveu.
Belo Monte - Só que as demarcações não são o único terreno em que o governo enfrenta problemas com os índios. Brasília foi nessa semana palco de uma manifestação de índios mundurukus, que se opõem à usina de Belo Monte, no Pará. Os índios, que habitam em áreas distantes 800 quilômetros do canteiro, em Tapajós, conseguiram arrancar uma reunião na capital após interromperem as obras por cinco dias. Aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) tiveram que deixar operações de vigilância na fronteira para transportar quase 150 índios.
No início de maio, o ministro ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, chegou a acusar os mundurukus de se oporem à usina porque uma parte deles estava envolvida com garimpo ilegal. A nota causou repúdio, e a pressão continuou, até o governo capitular e concordar com a reunião. Foi um episódio raro para Carvalho, entusiasta da causa indígena e patrocinador da escolha de Marta Azevedo para a presidência da Funai. Ele também é o chefe de Paulo Maldos, o secretário nacional de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, conhecido por ser um dos maiores promotores da causa indígena no governo.
Mas mesmo Carvalho não está imune à pressão. Na última sexta-feira, as lideranças indígenas anunciaram que protocolaram uma interpelação criminal contra Carvalho por calúnia e difamação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), por causa de seus comentários sobre os mundurukus.
Profissão - Ainda tímida, a iniciativa de dividir as tarefas da Funai pode ajudar a deter o crescimento práticas fraudulentas que transformam a condição de índio em "profissão".
Nesta semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou o caso do "índio" Paulo José Ribeiro da Silva, chamado Paulo Apurinã, um amazonense de 39 anos que, segundo um inquérito da Polícia Federal, reinventou sua identidade como índio apurinã há seis anos. Ao lado da mãe, ele falsificou duas carteiras do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani) - uma espécie de RG indígena, que abre caminho para o recebimento de benefícios como o Bolsa Família e o acesso a cotas em universidades.
Com o registro em mãos, o falso índio foi além do mero recebimento dos magros benefícios a que os indígenas têm direito: começou a liderar um movimento de "índios sem teto", reuniu-se com a direção da Caixa Econômica Federal e chegou a entregar cocares para a presidente Dilma Rousseff e para o ex-presidente Lula.
A fraude só começou a ser revelada no ano passado, quando ele foi indiciado. Entre as provas contra ele constava o nome de batismo do registro falso: Caiquara, uma palavra da língua guarani - que não é falada na região do Amazonas onde ele nasceu.
Embora a responsabilidade da farsa seja de Paulo, da sua mãe e, segundo o inquérito, de uma servidora da Funai, o dublê de índio conseguiu se safar por anos graças ao descontrole na condução da política indígena brasileira, e a um ambiente em que qualquer objeção é logo caracterizada como ataque e opositores são taxados de defensores de latifundiários - sem surpresa, Paulo chamou a imprensa de "racista". O índio fajuto não chegou a provocar muitos estragos, mas a política descontrolada que favoreceu seu aparecimento já mostrou que tem potencial para tanto.
(Com reportagem de Felipe Frazão)
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-dubia-politica-indigena-que-pressiona-o-governo-dilma
Índios:Terras/Demarcação
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