Em depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga a ação/omissão do Estado nos casos de violência praticados contra os povos indígenas entre 2000 e 2015, o coordenador regional da Funai (Fundação Nacional do Índio) de Dourados, Vander Nishijima e o professor e antropólogo Antônio Hilário Aguilera Urquiza consideraram que há, historicamente, omissão do poder público em diversos contextos que envolvem os índios de Mato Grosso do Sul.
O presidente da Comissão, deputado João Grandão (PT), reforçou que a CPI colhe depoimentos sobre os diversos casos de violência, "não somente a violência física, mas a psicológica e a de privação de direitos, por exemplo".
Licenciamento
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabelece, por meio da Resolução 237/97, que obras públicas, como estradas e anéis viários, devam ser construídas observando-se um raio mínimo de 10 quilômetros de distância das aldeias indígenas.
Segundo Nishijima, houve, por parte do Estado, violações claras desta normativa em pelo menos três obras em Mato Grosso do Sul: na duplicação da MS-156 (Dourados-Japorã); na BR-463 (Dourados-Ponta Porã); e na MS 180, em Juti, próximo da aldeia indígena Jarará).
"O Estado construiu rodovias passando por dentro de terras indígenas. A MS-156 atravessa mais de quatro quilômetros a Aldeia Jaguapiru. Com isso, esses indígenas perderam 12 hectares sem que houvesse, sequer, compensação de terra como a Lei garante. Sem falar dos atropelamentos e mais de dez moradias ao lado da rodovia que ficaram alagadas com as chuvas. E isso é falta de segurança", disse.
De acordo com o representante da Funai, que responde pela jurisdição da região da Grande Dourados, a autarquia tem feito sua parte nesse sentido. Para isso, citou um outro exemplo, a construção do Anel Viário de Dourados, com 25 quilômetros de extensão. "Esse é um empreendimento do Governo do Estado com gestão da Agesul e licenciamento ambiental do Imasul. Há comunidades indígenas nas redondezas e a Funai convidou o Imasul desde o início do processo, em 2010, encaminhou ofícios em várias outras oportunidades para a discussão das competências de cada um. Mas o Imasul foi omisso no diálogo e não compareceu", denunciou Nishijima, que relembrou o atropelamento que resultou na morte de um indígena por uma carreta no trecho do Anel conhecido como Perimetral Norte, em 22 setembro de 2015. Na ocasião, indígenas bloquearam um trecho da rodovia e protestaram também contra a falta de sinalização.
Segurança
Outros pontos citados pelo depoente são a falta de atendimento da Polícia Militar em casos de crimes nas aldeias e a violência psicológica sofrida pelas crianças indígenas, retiradas compulsoriamente do convívio familiar.
"Se há conflito em que os pais perdem a guarda, os avós ou familiares próximos têm o direito de cuidar da criança. Se não houver outros familiares, aí essa criança deve permanecer com membros da etnia e isso não tem sido respeitado. As crianças têm ido diretamente para abrigos, imersos em outra cultura, outra realidade, sem dominar a língua portuguesa e muitas vezes ficam anos longe da família até irem para a adoção. Descobrimos mais de cem casos assim somente na região de Dourados e intervimos para acompanhar. Se pensarmos nesses exemplos, também está havendo omissão sim", explicou.
O representante da Funai disse que em 30 de dezembro de 2013 uma liderança da Aldeia Bororó ligou para o 190 e a pessoa que atendeu disse que em área indígena a polícia militar não entraria. "Liguei no telefone fixo do 3o Batalhão de Dourados, me identifiquei, informei a ocorrência e o policial disse a mesma coisa: tratava-se de uma resolução da Secretaria de Segurança Pública e haveria multa por descumprimento".
O professor Antônio Hilário, segundo depoente do dia, resumiu a omissão da seguinte forma: "quando os índios são os réus, os processos andam com certa rapidez. Se os índios são as vítimas, os processos andam de forma morosa até prescrever".
Ele diz que em 2009 catalogou mais de cem indígenas presos sem julgamento, alguns com anos de espera. "A lentidão em descobrir quem estava envolvido na morte do líder indígena Marçal de Souza foi tanta que o processo já até prescreveu e não acharam os responsáveis. Isso é frequente em todo o Brasil. Além do que, há falta de aparelhamento da Justiça e da Polícia", ressaltou o antropólogo.
Etnocídio e confinamento
Sem querer responsabilizar ninguém especificamente, Urquiza, disse que a omissão está em todos os níveis, em todos os poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) e nos âmbitos municipal, estadual e estadual.
"Vejo uma situação muito ampla, um etnocídio, que chega a ser maior que uma população exterminada, mas também da cultura de um povo. Querer incriminar somente o Estado não há como, mas é um conjunto de situações de omissão por 500 anos de colonização, pois esses povos tradicionais estão sendo relegados há muito tempo. Há falta de conhecimento acerca da diversidade e diferença deles, um preconceito pela ignorância da riqueza da cultura", considerou.
A falta de espaço na terra gera uma série de problemas, de saúde, de segurança. Os constantes suicídios, quando a pessoa chega ao ponto de tirar a própria vida é porque está no limite da existência", acrescentou. "Tente imaginar 6 a 7 mil índios Caarapó em 3 hectares de terra. E aí toda essa situação transforma-se em pano de fundo para o aumento da violência de indígena contra indígena, indígena contra não-indígena, estupro, homicídio, suicídio, problemas de saúde. E são índices alarmantes! O índice de homicídio entre os Guarani é mais do que o dobro dos maiores índices de homicídio do mundo! E os Guarani são um povo pacífico por natureza. A raiz disso tudo está nesse confinamento, não podemos culpabilizar as vítimas. O que define os povos indígenas é o usufruto da terra e podemos considerar omissão do Estado quando esse direito não é respeitado", complementou o acadêmico, com 18 livros e mais de 25 artigos publicados na área de direitos humanos e indígenas.
Educação
Na área de educação, receberam elogios dos depoentes iniciativas do governo estadual como o Projeto "Ára Verá", que forma professores indígenas Guarani-Kaiowá em nível médio, com habilitação para a educação nas comunidades indígenas, educação nas séries iniciais do ensino fundamental e educação infantil.
A deputada estadual e relatora da CPI, Antonieta Amorim (PMDB), destacou ainda o pioneirismo do Estado na alfabetização bilíngue promovida no ensino fundamental de escolas indígenas.
O professor Urquiza, no entanto, defende que a alfabetização oral e escrita das crianças indígenas deve ser feita no idioma nativo e na sequência na língua portuguesa. "Esse é um conceito puramente técnico, cognitivo e linguístico. A alfabetização tem de acontecer na primeira língua, porque assim a criança levanta hipóteses sobre a escrita a partir do seu maior repertório, do seu contexto nativo".
Saúde
"Se a saúde no Brasil está doente para os indígenas está um pouquinho pior". Assim definiu Urquiza a situação da saúde nas aldeias do Mato Grosso do Sul.
De acordo com ele, "não é qualquer médico que se propõe em trabalhar numa aldeia ou que sabe e entende como fazê-lo ou, por conta dos conflitos, permanece por lá. E o modelo de medicina nem sempre está alinhado ao indígena", diz.
Para o acadêmico, há um desrespeito com os saberes indígenas que, entre outras coisas, está causando o desaparecimento de uma figura fundamental dentro dessas comunidades: a parteira.
"Esses partos foram sistematicamente sendo cerceados das aldeias, sendo que as parteiras tinham uma função cultural. A mãe deita ali no meio de enfermeiros homens, num leito de hospital, longe dos seus, isso é falta de sensibilidade de um modelo de saúde atualmente implantado nas aldeias. E não vemos nem mesmo um esforço no sentido de elaborar políticas públicas integrando a medicina indígena com a medicina e a biomedicina, por exemplo, para a promoção e valorização das práticas culturais tradicionais indígenas".
Urquiza afirmou ainda ter atuado como perito da Justiça Federal para a composição de laudos de processos de terras originárias indígenas e vê omissão na questão da resolução de conflitos pela terra. "Há um desaparelhamento da Funai, de quadros, de orçamento, ela é criticada por todos os lados, isso compromete profundamente sua atuação.
Apuração
Para subsidiar a investigação da CPI, os membros solicitaram para que os dois depoentes enviassem documentações que comprovem todos os casos citados das omissões.
A CPI ainda aprovou nesta reunião as convocações do indígena Anastácio Peralta e do procurador do Ministério Público Federal Charles Estevão da Mota Pessoa. Além do deputado João Grandão e Antonieta Amorim, também compõem a CPI os deputados estaduais Paulo Corrêa (PR) e Professor Rinaldo (PSDB).
A próxima reunião da CPI está marcada para o dia 21, às 9 horas, na Assembleia Legislativa, no Plenário Julio Maia.
http://www.acritica.net/editorias/geral/depoentes-da-cpi-dizem-que-estado-se-omitiu-em-varias-areas-de/163558/
PIB:Mato Grosso do Sul
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