O que há na ação que pede mais de R$ 100 milhões para os indígenas Xavante

Nexo- https://www.nexojornal.com.br - 04/04/2017
Uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal do Estado do Mato Grosso pretende indenizar os Xavante em mais de R$ 100 milhões pelo que os procuradores classificam como uma política sistemática de extermínio, conduzida a partir dos anos 1960.

A peça reconstitui em detalhe o que os procuradores entendem ter caracterizado um longo processo de escravização e de posterior expurgo e morte de centenas de indígenas.

Os Xavante do Mato Grosso habitavam terras Marãiwatsédé, que vieram a ser ocupadas por latifundiários, num processo que se desenrolou ao longo de anos, com amplo apoio de órgãos dos governos estadual e federal, sobretudo durante a ditadura militar (1964-1985), de acordo com os procuradores.

A ação civil pública aponta danos morais e materiais aos indígenas, e foi movida contra a União, a Funai e o Estado do Mato Grosso, além de 13 pessoas físicas, herdeiras da Fazenda Suiá-Missu, de onde os indígenas foram, de acordo com a ação, expulsos em agosto de 1966.

Um dos procuradores que deram início ao caso, Wilson Rocha, disse ao Nexo que a ação "se apoia no princípio da obrigação solidária, pela qual pode ser exigida a integralidade do valor requerido a qualquer uma das partes individualmente".

À época, um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) chegou a ser usado para transportar os indígenas para longe de suas terras, dando início a um processo de peregrinação errática de centenas de Xavante, com consequências que perduram até os dias de hoje, segundo a ação.

Em seus locais de origem, a mata nativa deu lugar a milhares de hectares de pasto, provocando danos ambientais e culturais irreversíveis, para os quais, meio século depois, a Justiça busca, pelo menos, reparo e compensação.


'Terceirização do genocídio'


Um dos aspectos mais enfatizados na ação é a associação indevida entre empresários e órgãos do governo cuja atribuição era justamente a de proteger os Xavante.

Para os procuradores, o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) - substituído a partir de 1967 pela Funai (Fundação Nacional do Índio) - agiu defendendo interesses de empresários que queriam explorar terras originalmente pertencentes aos Xavante.

O Ministério Público se apoia em documentos da Comissão Nacional da Verdade, que caracterizam a matança dos Xavante no Mato Grosso como "um genocídio terceirizado", no qual "se verifica a ação direta do governo federal no sentido de autorizar e promover a remoção forçada do grupo" que habitava terras transformadas na Fazenda Suiá-Missu.

O termo genocídio é usado para se referir à matança coletiva de pessoas de um mesmo grupo étnico, como ocorrido contra os judeus durante a Segunda Guerra, nos anos 1940, e contra os tutsis em Ruanda, nos anos 1990.

Na visão dos procuradores, toda a política de escravização e posterior expurgo contribuiu para a destruição da aldeia e pela morte de seus membros.


Da escravidão ao expurgo


A ação remonta cronologicamente à interação entre os Xavante e os latifundiários na região.

Apoiados em relatos de sobreviventes, de antropólogos e de historiadores, os procuradores afirmam que o primeiro passo na relação foi o de empregar os Xavante em trabalhos dentro da Fazenda Suiá-Missu, em condições análogas à escravidão.

Feita a primeira etapa do serviço, que consistia sobretudo em derrubar a mata nativa para estabelecer em seguida vastas áreas de pasto para o gado, os indígenas passaram a ser vistos como um obstáculo a ser removido, segundo a reconstituição do caso na peça de acusação.

Pelo menos 263 deles foram então transferidos por mais de 400 quilômetros em voo da FAB, com apoio de padres salesianos que trabalhavam na área.

Segundo a ação, "as crianças foram transferidas primeiro, como meio de coagir seus pais" a seguirem o mesmo destino.

Na chegada ao novo local, 85 morreram numa epidemia de sarampo. Os mortos eram transportados em tratores e despejados em covas coletivas.


Demarcação não cessou danos


Em 1981 a Fazenda Suiá-Missu foi vendida do grupo Ometto para uma subsidiária do grupo Agip do Brasil, controlada pelo conglomerado petrolífero italiano Eni-Agip. Em 1992, começou o processo de demarcação.

Os indígenas que haviam sido retirados dali num avião da FAB retornaram, mas a floresta havia sido transformada em pasto.

Os procuradores alegam que a demarcação feita nos anos 1990 "não apaga quase meio século de contínua desumanização, desenraizamento e humilhação social extrema".


Para além do dano material


"A reparação é apenas incipiente porque à comunidade indígena foi entregue um território ambientalmente devastado e um entorno social em que impera um sentimento disseminado de ódio, discriminação, preconceito e rancor, herdado do conflituoso processo de desintrusão da área", diz o texto da ação.

Com base em laudos de psicólogos que acompanharam os sobreviventes, há uma "traumatização psicossocial coletiva" dos envolvidos no episódio.

O trauma é ligado tanto aos abusos em si quanto com aspectos culturais que derivam do fato de os Xavante da terra Marãiwatsede terem sido obrigados a perambular fora de suas terras por tantos anos.

"Não é exagero afirmar que o clima entre os Xavante a quem se pedia para hospedarem os refugiados de Marãiwatsede era análogo ao da Europa do século 13, quando as pessoas temiam os suspeitos de carregar a peste; portadores suspeitos da Morte Negra eram marginais rejeitados. Semelhantemente, em meados da década de 1980, nenhum Xavante recebia bem os Xavante de Marãiwatsédé como vizinhos. Nenhum queria este grupo dentro ou mesmo próximo de seu território", diz o documento.

"Todo o seu desenvolvimento como comunidade autônoma [dos Marãiwatsede] foi comprometido, seguindo-se a sua estigmatização como grupo amaldiçoado sobre o qual irá pesar constantes acusações de feitiçaria" - Texto da Ação Civil Pública.


Pedidos de reparação


1. Pedido público de desculpas - Os procuradores dizem que autoridades políticas relevantes devem apresentar pedidos formais de desculpa na própria terra indígena, na forma que faça sentido para os próprios afetados pelos crimes.

2. Recuperação ambiental - O documento é claro sobre o valor transcendente que a terra tem para os indígenas, não apenas como meio de subsistência, mas como elemento cultural indissociável da própria identidade. Por isso, defende o reflorestamento da área.

3. Direito à verdade - A ação também quer que os fatos sejam narrados tal como ocorridos, em todos os registros oficiais, contendo a declaração expressa de que o Estado brasileiro participou de um "genocídio".

4. Dinheiro - É pedido ressarcimento de R$ 129.837.000,00. "O valor arbitrado deve ser depositado em conta judicial e liberado segundo a apresentação de projetos tendentes ao benefício comum da comunidade indígena afetada, independentemente da residência atual na Terra Indígena Marãiwatsédé", diz o documento.


Advocacia-Geral responde à Justiça


O Nexo entrou em contato com as partes citadas, mas obteve resposta apenas da AGU (Advocacia-Geral da União), em nome da FAB e da Funai. Nenhum dos herdeiros quis falar.

Na defesa encaminhada ao juiz federal de Barra do Garça, responsável pelo caso, a AGU afirma que "o prazo prescricional é de cinco anos", portanto, "todas as pretensões formuladas em face da União se encontram fulminadas pela ocorrência da prescrição" e, portanto, a ação "deve ser extinta".

Além disso, o órgão diz que "a suposta remoção forçada [dos indígenas] não tem conexão com qualquer política indigenista do atual governo".

A AGU diz ainda que a FAB agiu sob a "missão constitucional de cooperar com o desenvolvimento nacional", para "salvaguardar os direitos dos índios" ao transportá-los para fora de suas terras na ocasião.

Por fim, o órgão conclui que "é óbvio que não existiu qualquer contorno criminoso no referido contexto fático narrado, pois a Força Aérea agiu atendendo à solicitação da extinta SIP, hoje Funai, cuja função é a proteção das comunidades indígenas".



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PIB:Leste do Mato Grosso

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