RIO - O fim da Guerra do Paraguai, em março de 1870, foi um momento de recomeço para as tribos indígenas brasileiras que lutaram ao lado da corte portuguesa. Um acordo estabelecia que terras dominadas pela Coroa lhes seriam devolvidas e passariam a ser protegidas. A volta para casa, em Pernambuco, porém, foi marcada por dificuldades. Em meio à caatinga, dezenas deíndios morriam de fome ou acometidos por doenças.
A solução, diz a lenda, apareceu em sonho para uma das lideranças. Um jaguar branco estava prestes a aparecer, e, no local em que fosse visto, deveria ser fixada a nova aldeia, o que garantiria saúde e comida em abundância. A busca pelo felino foi longa. Até que um grupo o avistou, às margens do Rio Ipanema. Um ritual em que os índios se pintaram de branco, dos olhos até os pés, e espalharam manchas pretas pelo corpo, para se parecer com o animal, marcou o encontro e a criação, naquele momento, da aldeia fulni-ô, resultado da união de cinco tribos: brogada, carnijo, flowkasa, tapuia e fola. É esta cerimônia que cerca de 30 fulni-ôs vão realizar na quinta-feira, a partir das 20h, na Casa da Águia, em São Conrado.
Até hoje o ritual é repetido quando o chefe da aldeia tem uma visão com o jaguar branco. As pinturas, os cânticos e as danças são formas de agradecimento pelas conquistas e um pedido para que se tenha paz e prosperidade, explica o líder do grupo, Tafkea.
- Estamos fazendo esse ritual no Rio porque a cidade está precisando de uma grande cura, de paz. Tudo o que aconteceu um tempo atrás com a nossa tribo está acontecendo hoje na civilização. As pessoas não têm paz. Não observam mais a família, só estão visando ao trabalho e ao dinheiro, e acabam adoecendo. Esse ritual traz abundância - diz o líder do grupo, Tafkea.
Os fulni-ôs promoverão o contato do público presente com sua cultura de diferentes modos. Ao redor da fogueira, entoarão cantos nativos de índios brasileiros e americanos, promoverão danças e realizarão uma pajelança.
A tribo fulni-ô - palavra que significa índios agrupados na beira do rio - é a única no Nordeste a preservar sua língua, o ia-tê. Os jovens a aprendem durante uma imersão de três meses na mata, tempo em que têm contato com ritos mantidos criados por seus antepassados. É o Ouricuri.
Apesar dos esforços para preservar as tradições, o que inclui dedicação ao plantio e à caça, hoje a tribo pena até para garantir água e alimentos. Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena, havia 4.509 fulni-ôs em Pernambuco em 2013. A saída para se manterem tem sido, principalmente, vender seu artesanato país afora. É o que farão no evento em São Conrado. Parte do valor da entrada, de R$ 30, também será revertido ao grupo.
O terapeuta Carlos Sauer, sócio da Casa da Águia, tem aberto as portas para os índios realizarem também a Roda de Cura, às terças-feiras, e a Cerimônia da Fogueira, às quintas-feiras, sempre das 20h às 22h. Dos encontros, participam ainda xingus e guaranis. Sauer estuda e acompanha grupos indígenas há mais de 35 anos, incluindo o cheyenne, dos Estados Unidos. Diz que os eventos são uma oportunidade de difundir as tradições desses povos em qualquer ocasião e não somente em abril, quando se comemora o Dia do Índio.
- Nessa casa, os índios fazem sua pajelança a qualquer tempo, diferentemente do que acontece nas escolas, onde nesta época do ano normalmente apenas apresentam sua cultura, com dança, pintura, cantos e histórias, mas sem realizar rituais - observa.
Os fulni-ôs também têm encontro marcado com o público de Vargem Grande. Três guerreiros - Xumaya Xya, Sawe e Naldjôa - promoverão atividades no Espaço Néctar na sexta-feira, das 14h às 22h. Apresentarão histórias da tribo, ensinarão a produzir peças de artesanato e cantarão. Comidas típicas, como caldo de peixe com farinha de mandioca e carne assada com farinha crua, estarão à venda.
Um dos destaques é a pintura corporal, que terá seu significado explicado, bem como os desenhos comumente feitos com urucum (de coloração vermelha) e jenipapo (de cor preta). Este, por não sair da pele e sim ser absorvido, num processo demorado, será substituído por carvão para aplicação no público. Xumaya Xya participa de eventos relacionados à cultura indígena no Rio há oito anos. Precisa arrecadar fundos com a venda de peças - de cocar e arco e flecha a pulseiras e cordões - e deseja dar visibilidade à história da tribo.
- Viemos falar da espiritualidade e do xamanismo dos povos indígenas. Poder compartilhar essa vivência com o pessoal da cidade é nosso objetivo. E trazemos o artesanato porque é graças a ele que conseguimos nos manter. Pernambuco está castigado pela seca - conta.
Jussara Santos, funcionária de um dos estabelecimentos do Espaço Néctar, abraçou o planejamento do evento, com entrada gratuita. A aposta na variedade de atividades visa a levar ao público o máximo de informações, explica, para derrubar mitos comuns.
- O Néctar nos cedeu uma área e conversamos com o Xumaya para saber o que poderíamos fazer. Na oficina, por exemplo, eles explicam que não matam os animais para tirar as penas, como se pensa. Queremos que o público saia refletindo sobre essas questões relacionadas a uma cultura diferente da sua - diz ela.
http://oglobo.globo.com/rio/bairros/indios-da-tribo-fulni-promovem-imersao-em-sua-cultura-21207660
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