A sistematização de registros históricos, combinada com pesquisas de novos documentos e depoimentos*, possibilitou a organização, pela primeira vez, de um mapa que indica a origem dos indígenas detidos no Reformatório Agrícola Krenak e, depois de 1972, na Fazenda Guarani, ambos em Minas Gerais. O Krenak funcionou como um campo de concentração de indígenas e um centro de torturas, conforme detalha o capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
Entre os documentos reunidos pelo grupo responsável por investigar os crimes cometidos durante a Ditadura há denúncias gravíssimas envolvendo ambos os centros e também a Guarda Rural Indígena, além de relatos completos que incluem o nome dos responsáveis por tais violações. A visualização das migrações forçadas de indígenas de diferentes regiões para as duas unidades de detenção foi desenvolvida como parte do projeto Cartografia de Ataques Contra Indígenas (Caci). Para visualizar detalhes sobre as transferências basta passar o cursor sobre os pontos conectados aos dois presídios. O mapa explicita que a política de perseguições, detenções ilegais e tortura de indígenas não foi algo isolado, mas sim uma prática que afetou pelo menos 23 povos diferentes. Caci significa dor em Guarani.
Campo de concentração
O relatório da CNV é direto ao indicar a gravidade da situação e aponta a necessidade de aprofundamento das investigações sobre os crimes cometidos. O caráter nacional das detenções ilegais também é mencionado no documento:
"(...) com base na documentação reunida [a CNV] reconhece, no Reformatório Krenak e na Fazenda Guarani (que o sucedeu), a sua abrangência nacional quanto à função de prisão de índios rebeldes, encarcerando indígenas de 23 etnias. Ademais, especificamente para a população Krenak, obrigada a viver sob as mesmas condições de índios presos em suas terras, o reformatório assume um caráter de 'campo de concentração', conforme denunciado no Tribunal Russell II, ou 'prisão domiciliar', como descrito no caso Aikewara. Os indícios levantados relacionam esse reformatório aos centros de torturas e, portanto, as investigações deverão ser aprofundadas pelo Estado brasileiro" - trecho do relatório da CNV.
A menção ao Tribunal Russell II refere-se aos depoimentos do povo Krenak e de outras etnias apresentados no evento em 1974. O Tribunal Russell II é como ficou conhecida a série de encontros realizados na Europa na década de 1970 com o objetivo de reunir denúncias e provas de crimes cometidos pelas Ditaduras na América Latina. Sua realização é considerada um marco na luta por direitos humanos e para os processos de transição. Trata-se de uma continuidade do trabalho de Bertrand Russel e Jean Paul-Sartre. Na primeira edição do Tribunal, realizada em 1966 e 1967, foram abordados crimes de guerra internacionais.
Além das informações do Tribunal Russell II, o relatório final da CNV também incorpora informações documentadas em outras pesquisas relevantes sobre o tema, como o levantamento "A Ordem a se Preservar", organizado pelo pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa.
A partir de documentos do arquivo do Serviço de Proteção aos Índios (SIP), preservados pelo Museu do Índio, ele identificou o nome de 121 indígenas presos entre 1969 e 1979 no Krenak e na Fazenda Guarani, alguns detidos mais de uma vez.
Detenções ilegais e subnotificações
A identificação das vítimas a partir dos registros oficiais pode servir de base para aprofundamento das investigações e também pedidos de reparação individual, mas não encerra a questão, já que, conforme apurado pela Comissão Nacional da Verdade, boa parte das detenções ilegais sequer era documentada. Em depoimento à CNV, o então chefe da Ajudância Minas Bahia da Funai, João Geraldo Itatuitim Ruas, estimou que em cerca de 80% dos casos os encarcerados não tinham documentos e nem havia justificativas formais para o aprisionamento.
Ruas, que é considerado um dos primeiros servidores de origem indígena do Brasil, assumiu o comando da unidade responsável por gerenciar a detenção dos indígenas em Minas Gerais em 1973, ano em que o Krenak já havia sido desativado e os mesmos passaram a ser levados para a Fazenda Guarani. Inconformado com a situação que encontrou, fez denúncias e procurou superiores, sem sucesso. A reportagem "Um campo de concentração indígena a 200 quilômetros de Belo Horizonte (MG)", publicada em 2013, conta mais sobre sua história. Seu depoimento à CNV ajudou a identificar a dimensão e a gravidade do que aconteceu na região.
Sem tanta preocupação, seu antecessor, Manoel Pinheiro, capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, é citado no Tomo II texto V do relatório como responsável direto pelo Reformatório Krenak. Além de seis policiais militares, ele comandou também indígenas recrutados para a Guarda Rural Indígena, unidade que foi treinada em técnicas de tortura, conforme registrado no filme "Arara", de Jesco von Puttmaker. O título do documentário, que inclui cenas da formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena, em 1970, é uma referência ao pau de arara, intrumento de tortura da Ditadura em que pessoas eram penduradas em um pau.
No desfile, aparecem imagens de indígenas carregando um pau de arara. A reportagem "Como a ditadura ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural", publicada pela Folha de S. Paulo em 2012, traz mais informações sobre o documentário e a participação do próprio capitão Pinheiro no treinamento e gerenciamento de indígenas da guarda, incluindo aí menções a aprisionamentos, trabalhos forçados, uso de solitária e desaparecimento de detentos.
A CNV sofreu críticas por parte de grupos de defesa de direitos humanos por não ter convocado o capitão Pinheiro a depor, e também por não ter responsabilizado diretamente o militar pelas violações cometidas contra os Krenak. No relatório, os representantes do grupo alegam que, para considerar Pinheiro responsável pelas violações já comprovadas, seria necessário averiguar a estrutura de comando que permitiu tais abusos:
"A Guarda Rural Indígena, conhecida como Grin, foi criada pela Portaria no 231, da presidência da Funai, em 25 de setembro de 1969, com o objetivo de formar grupos paramilitares destinados a exercer o policiamento ostensivo das áreas reservadas aos indígenas. O Comando-Geral da Guarda Geral Indígena ficava a cargo da Ajudância Minas-Bahia, que, por sua vez, estava subordinada diretamente à presidência da Funai, conforme o art. 10 da Portaria 231/1969. Contudo, o comando dos grupamentos da Grin poderia ser delegado aos comandos das polícias militares dos estados, como de fato aconteceu em Minas Gerais: um posto de administração da Guarda Rural Indígena, sob o comando da Polícia Militar de Minas Gerais, foi instalado nos postos indígenas de Pradinho e Água Boa, em terra indígena dos maxacalis, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais".
O documento também aponta, ao justificar o cuidado ao identificar os que comandaram tais atrocidades, a necessidade de estrutura e recursos para aprofundar a investigação, ouvir os sobreviventes e buscar mais informações sobre os casos das 23 etnias espalhadas em território nacional. Diz o texto:
"Quais serão as memórias dos 121 presos indígenas listados? Quantos indígenas foram presos sem registro? De quais etnias seriam esses presos sem documentação? Quais foram torturados e quantos desapareceram? Quem são os responsáveis pelas violências, torturas e desaparecimentos de índios na cadeia do Krenak? Qual a estrutura de comando acima do capitão Pinheiro?"
Assim, mesmo sendo responsável direto pelo comando do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, o capitão Pinheiro acabou não incluído entre os autores de violações ocorridas no Krenak no relatório final da CNV.
Quem criou o campo de concentração?
Se o nome do capitão Pinheiro não aparece na lista, o de outro militar entra com destaque. O relatório aponta como criador do Krenak o general Oscar Geronymo Bandeira de Melo, que foi o presidente da FUNAI entre 1970 a 1974. Seu nome figura no capítulo "A autoria das graves violações de direitos humanos", onde foi citado na listagem do item B. Ele é tipo como responsável por manter o Krenak "como instalação prisional pela FUNAI e local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas".
Antes de ser presidente da FUNAI, o general Bandeira de Melo foi chefe da Divisão de Segurança e Informação do órgão (DSI-FUNAI), subordinado ao Serviço Nacional de Informação (SNI). Depois, ficou à frente da Mineradora Itapiranga do Grupo Bradin, onde recebeu autorização para pesquisar ouro nas terras dos índios Urubu-Kaapor.
Segundo o relatório, não é o único caso de conflito de interesses envolvendo a administração da FUNAI e o setor de mineração. O documento aponta que nas gestões dos também presidentes Luis Vinhas Neves e Romero Jucá ocorreram violações relacionadas à extração de minerais. Diz o relatório:
"Nos estudos deste grupo de trabalho a responsabilidade do Estado é evidenciada pela ação de vários diretores do SPI e da Funai. Nas gestões do major aviador Luis Vinhas Neves, do general Bandeira de Mello e de Romero Jucá, por exemplo, há casos de graves violações de direitos humanos associados à extração de madeira e minérios, à colonização e a obras de infraestrutura. A apropriação de terras indígenas e seus recursos foi favorecida, a corrupção de funcionários não foi controlada e a violência extrema de grupos privados contra os índios não foi punida. Com exceção de alguns casos esparsos, justiça não foi feita".
Na presidência da Funai, Romero Jucá assinou em 1987 um convênio entre a Funai e o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para exploração mineral empresarial em áreas indígenas e, após deixar o órgão, já como governador do estado, passou a defender a permanência de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, conforme informado no especial a "República dos Ruralistas". Ele seguiu carreira política e hoje é senador pelo PMDB de Roraíma. Como parlamentar, apresentou, em 1996, quando estava no extinto PFL, o Projeto de Lei 1610, que visa autorizar a mineração em terras indígenas.
Recomendações da CNV
São 13 as recomendações específicas apresentadas ao Estado brasileiro pela CNV sobre as violações cometidas, incluindo um pedido de desculpas formal e reparação econômica coletiva ao povo Krenak, além de abertura de processos de reparação aos indígenas já identificados, demarcação de terras, desintrusão dos invasores, recuperação ambiental e responsabilização dos envolvidos em violações. Ao listar medidas necessárias, o grupo dá ênfase ao papel do Ministério da Justiça no encaminhamento da promoção da justiça de transição no Brasil, e recomenda textualmente a abertura de um novo grupo de trabalho para dar continuidade ao que foi levantado:
"Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como os demais casos citados neste relatório" - trecho do relatório da CNV.
O pedido formal de desculpas ao povo Aikewara feito em 2014 pelo então presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, é considerado uma referência para reafirmar direitos civis e territoriais destes povos. O caso envolveu 14 casos de indígenas atingidos pela Repressão da Ditadura durante a Guerrilha do Araguaia.
Ação concreta
Observando as recomendações feitas pela CNV, o Ministério Público Federal de Minas Gerais trabalha para promover a reparação coletiva aos indígenas vítimas de violência do Estado, com foco nos casos do Reformatório Krenak, Fazenda Guarani e da Guarda Rural Indígena. O procurador Edmundo Antônio Dias Netto Junior, da Procuradoria Regional da República de Direitos do Cidadão, detalhou os fundamentos deste trabalho em exposição apresentada em audiência pública realizada em 28 de abril de 2014 na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
A audiência pública aconteceu em reunião extraordinária da Comissão de Direitos Humanos que tratou do tema e, apesar da ampla documentação reunida sobre as violações em questão, nenhum representante da CNV compareceu; o que foi entendido como possível constrangimento pela falta de ações efetivas por parte do grupo para responsabilização dos que comandaram desmandos, em especial em relação ao capitão Pinheiro.
Por parte do Ministério Público Federal, procedimentos investigatórios foram iniciados visando a responsabilização de agentes envolvidos e da cadeia de comando. A procuradoria tem priorizado também ações de estabelecimento da verdade, reparação aos atingidos e promoção da memória. Em 23 de março de 2015, dando continuidade à busca por reparação, o procurador encaminhou requerimento ao Ministro da Justiça solicitando reparação coletiva ao povo Krenak pelas violências sofridas, tais como, a militarização de suas terras, deslocamentos forçados, trabalho forçado, tortura e maus tratos.
No pedido, ele conclui ser "imperioso, portanto - diante do reconhecimento, pela Comissão Nacional da Verdade, da ocorrência da sistemática e brutal violação de direitos de titularidade coletiva pelo regime militar -, reconhecer a possibilidade de procedimentos e reparações coletivas no âmbito da Comissão de Anistia, o que, ressalta-se, não é vedado pelo art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, nem pela Lei no 10.559/2002". A lei em questão é a que estabelece o regime de anistia política, incluindo aí as regras para reparação econômica de caráter indenizatório.
Em resposta ao pedido, o Ministério da Justiça questionou o caráter coletivo da reparação requerida pelo MPF, com o argumento que não está previsto na Lei, apesar do exposto acima pelo procurador. Em relação às denúncias e recomendações reunidas no relatório final da CNV, mais de um ano depois, não houve nenhum posicionamento por parte do Governo Federal.
O grupo de trabalho sugerido para dar continuidade e aprofundar as investigações até hoje não foi criado.
* Nota do autor sobre metodologia do mapa
Das 23 etnias presas no Krenak e na Fazenda Guarani, sete povos foram associados a mais de um Estado pela documentação original. Para a confecção do mapa que ilustra este dossiê a indicação de Estado de origem foi baseada não apenas nos dados originais, mas também na tomada de depoimentos e novas pesquisas desenvolvidas pelo próprio pesquisador. Tais levantamentos apontam uma tendência que permite presumir a região de onde as etnias são provenientes, podendo, porém, haver exceções. As generalizações permitem ilustrar como indígenas de todo o Brasil foram confinados em Minas Gerais. Mais do que um retrato fiel, este primeiro mapa de migrações forçadas para as duas unidades de detenção deve ser entendido como uma referência que pode ser complementada e ampliada em pesquisas mais aprofundadas sobre o tema, uma vez que a estimativa é de que foram encontrados registros de somente 20% das detenções nesta prisão.
http://caci.rosaluxspba.org/#!/dossie/977/?loc=-18.380592091462184,-39.2431640625,7&init=true
PIB:Leste
Related Protected Areas:
- TI Fazenda Guarani
- TI Krenak
- TI Yanomami
- TI Maxakali
As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.