Os índios Puruborá, nome que significa "aquele que se transforma em onça para curar", numa referência aos antigos xamãs, no início do século 20 foram expulsos de seu território tradicional pelas frentes de exploração de borracha e madeira, sendo obrigados ao trabalho forçado nos seringais no Vale do rio Guaporé, em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Chegaram a ser considerados extintos por causa de epidemias de sarampo e catapora contraídas durante o contato com o "branco". Há 16 anos, o grupo começou a se revitalizar. Hoje, eles somam mais de 600 pessoas e lutam pelo reconhecimento de suas terras.
Em entrevista à Amazônia Real, o cacique Antonio Puruborá disse que o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que impôs a tese do marco temporal como uma das condicionantes à administração pública nos processos de demarcações de terras no país, aprovado pelo presidente Michel Temer, pode retirar o direito dos povos Puruborá. Segundo ele, muitos índios não estavam vivendo no território na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 por causa das expulsões.
"O parecer contrataria os princípios da Constituição Cidadã que garantiu a posse dos territórios indígenas tradicionais no Brasil. É uma afronta a todos os direitos dos povos indígenas. Espero que [o parecer] se reverta e, se não for assim, os povos indígenas não vão aceitar e vão partir para a defesa, como já vêm fazendo esses anos todos", diz o cacique Puruborá.
Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) impôs 19 condicionantes ao homologar, em área contínua, a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima. Uma das restrições, descrita posteriormente como marco temporal, dizia que apenas áreas ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, podem ser consideradas territórios originários dos povos indígenas.
A decisão do presidente Temer causou manifestações dos povos indígenas de todo o Brasil. As organizações Conselho Indígena de Roraima e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pediram à Procuradoria-Geral da República (PGR) para ingressar com uma ação suspendendo o parecer da AGU, mas a PGR ainda não se manifestou se ingressou com uma ação no STF.
O Ministério Público Federal, a ONU e as organizações indígenas afirmam que o marco temporal não tem efeito vinculante.
Dona Emília Puruborá
Os Puruborá falam a língua do mesmo nome da etnia do tronco linguístico Tupi. Eles foram contactados pelo marechal Cândido Mariano Rondon em 1921. O cacique Antônio Puruborá conta que os índios mais velhos narravam que o militar construiu o posto 3 de Maio, lugar onde outros povos da região foram agregados depois de expulsos de suas terras. "Quando morreu o encarregado indicado para o posto por Rondon, José Félix do Nascimento, o povo Puruborá foi se dispersando. Na década de 1980, quando foi criada a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, a gente tinha lá uma família Puruborá, da tia Emília. Ela foi expulsa porque não foi reconhecida como indígena pela Funai e se instalou no Posto Manoel Correia, onde eles compraram uma terra. Hoje é essa terra [a aldeia Aperoi] que serve de referência para os Puruborá. Essa área está localizada no quilômetro 32 da BR-429, entre os municípios de São Francisco e Seringueiras, no Vale do Guaporé", lembra o cacique, que é casado com Hozana Puruborá, filha de dona Emília Nunes de Oliveira (1933-2013), que faleceu com 80 anos de idade.
O cacique Puruborá é coordenador de Educação Indígena da Secretaria Estadual de Educação (Seduc) e representante no Conselho Estadual de Educação. Ele disse que em 2003, a Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu o território Aldeia Aperoi aprovando o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), mas o processo de demarcação está parado na fase de delimitação fundiária desde 2015. Contou que a posse do território ancestral exige uma luta árdua contra os interesses econômicos e favorecem a invasão de madeireiros e fazendeiros.
"A gente sabe que não vai ser fácil porque tem políticos agindo na região, mas acreditamos que vamos conseguir, levando em conta a legislação vigente. Não vamos desistir. A minha formação é dentro do movimento indígena. Coisas que nossos pais não conseguiram, esperamos alcançar, ainda em pouco tempo", acrescenta o cacique Puruborá.
A língua está viva
Por causa da falta de demarcação da terra, o cacique Antonio Puruborá disse que muitos Puruborá vivem hoje "espalhados" pelos municípios de Costa Marques, Guajará-Mirim, Seringueiras e no Manoel Correia, em Rondônia. Segundo ele, a língua nativa "está viva". "Isso tem dado força para que a gente continue na luta, batalhando para ter, um dia, o nosso território demarcado", afirma. "E temos vitórias alcançadas nos últimos anos como o direito à educação, saúde e a construção de uma escola no Posto Manoel Correia. A nossa língua está viva", completa o cacique.
Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) diz que o marco da revitalização contemporânea do povo Puruborá ocorreu entre os dias 16 e 18 de outubro de 2001, quando, com o patrocínio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em Rondônia, foi realizado o "Encontro de Parentes Puruborá". O evento reuniu cerca de 40 pessoas no sítio de Dona Emília, local onde é hoje a aldeia Aperoi.
Na ocasião, de acordo com o ISA, foi realizada a "1ª. Assembleia do Povo Puruborá". Daí os indígenas deram início à luta por seus direitos, produzindo um documento "reivindicando junto às autoridades competentes uma área no território original Puruborá", segundo nos informou Gilles de Catheu, do CIMI de Guajará-Mirim.
Desde então, conforme o estudo do ISA, os Puruborá vêm se reunindo anualmente no mesmo local, mesmo após o falecimento de dona Emília, em 2013. "As reuniões agora seguem organizadas por sua filha, Hozana Puruborá, uma das importantes lideranças do grupo, e vêm arregimentando cada vez mais parentes provenientes de diversas partes do estado de Rondônia. Em todas essas assembleias os Puruborá produzem documentos reafirmando suas reivindicações territoriais e seus direitos específicos como mais um povo indígena em Rondônia."
Territórios ameaçados no triângulo
Laura Vicuña Manso, coordenação do CIMI em Rondônia, diz que na região que forma um triângulo entre os estados de Rondônia, Amazonas e Mato Grosso existem 44 terras indígenas ocupadas por mais de 60 povos e uma população estimada em 13 mil pessoas. No entanto, metade desses territórios não está regularizada pela Funai. As áreas estão ameaçadas pelas restrições aprovadas pelo presidente Michel Temer no parecer da AGU.
Destas, de acordo com Laura, 11 terras pertencem a povos indígenas em situação de isolamento da sociedade ou em risco de extinção da etnia. Os outros nove grupos são chamados de "povos resistentes" porque foram expulsos de seus territórios tradicionais e os reivindicam. Em alguns destes casos, os processos de demarcação estão paralisados no Ministério da Justiça, disse.
Para ela, o parecer assinado pelo presidente Michel Temer em 19 de julho representa um grande entrave para o retorno ao território tradicional para mais de 20 povos que, ainda durante a vigência do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), extinto em 1967 e substituído pela Funai, foram transferidos em grupos para viver juntos em colônias agrícolas, como os Puruborá.
Laura Vicuña explica que "este modelo atendia à política integracionista adotada durante a vigência do SPI, que visava juntar vários povos indígenas em um único território, para que fossem pouco a pouco integrados à sociedade".
"Nas TIs onde vivem vários povos, a língua portuguesa acaba prevalecendo para a comunicação geral, e a língua materna é usada nos grupos familiares. Na TI do Vale do Guaporé, por exemplo, onde vivem onze povos, existem sete línguas diferentes dentro dos núcleos familiares. Nos casos de casamentos interétnicos, prevalece a língua que tem maior número de pessoas", diz a coordenadora do CIMI.
Portaria legitima invasões
Segundo Laura Vicuña Manso, todos os territórios indígenas da região que formam o triângulo entre Rondônia, Amazonas e Mato Grosso, "mesmo os demarcados e homologados", estão sofrendo algum tipo de invasão, "seja por madeireiros, garimpeiros, grandes empreendimentos, loteamento de terra, entre outros e a recente medida do presidente Temer vem legitimar estas invasões", afirma.
"Já existe uma reação muito grande por parte do movimento indígena, das organizações, se posicionando contra esta medida [parecer da AGU]. E a gente sabe que muita coisa ainda não ficou pior dentro da questão indígena graças à mobilização, porque durante todo este tempo, mesmo no governo do PT, nos governos de esquerda ou direita, um dos poucos movimentos que se manteve organizado foi o movimento indígena, que não deixou de pautar as suas lutas", afirmou Laura Manso.
A luta pelas demarcações
O coordenador da Organização dos Povos Indígenas de Rondônia, Noroeste do Mato Grosso e Sul do Amazonas (Opiroma), José Luiz Cassupá (o sobrenome é da sua etnia indígena Kassupá) disse que as lideranças avaliam como grave o parecer de Temer para a garantia do reconhecimentos dos territórios tradicionais.
"O problema é muito grave. Este parecer acaba com todo este reconhecimento dos índios, que têm sua cultura e o idioma e estão reivindicando os seus direitos, como é o caso dos Puruborá, Miqueleno, Kassupá, Salamãe, Ajiru, e outros grupos de Rondônia. São povos que estão na luta pela demarcação das suas terras. Sabem da existência de cemitérios e aldeias antigas, que foram apagados pelas invasões. Mas, os mais velhos têm lembrança destes locais e pedem a reparação do Estado brasileiro com a demarcação," disse José Luiz Cassupá.
Ele cita como exemplo de territórios invadidos por fazendas, a Terra Indígena dos Guarassungue, que fica na região de Pimenteiras, no Vale do Guaporé, em Rondônia. "Muitos indígenas Guarassungue foram expulsos, perseguidos e mortos. Outros fugiram para a Bolívia e retornaram como um povo que não tem terra, mas eles sabem onde estão suas aldeias antigas e buscam esta reparação do Estado brasileiro", afirmou o coordenador da Opiroma.
O agronegócio e os garimpos
José Cassupá conta que até os índios de sua etnia vivem fora de seus territórios ou em terras de outras etnias. "Nós, os Cassupá, temos parentes vivendo na Terra Indígena Sagarana, em Guajará-Mirim, e em Porto Velho. São várias situações que exigem reparação do Estado brasileiro para estes povos", afirma.
Para o coordenador da Opirama, "o momento político é muito preocupante" devido à atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional. "O interesse deles é a concentração de terra para a produção do agronegócio, facilitando o desmatamento, a degradação do meio ambiente pelos garimpos." Em Rondônia, diz ele, não é diferente.
"Aqui nós sempre buscamos apoio dos políticos e do próprio Supremo, mas não conseguimos levar adiante as demandas dos povos indígenas. Tanto que não temos nenhum processo de homologação de TI em Rondônia em andamento. Infelizmente estão todos engavetados," afirma José Cassupá.
http://amazoniareal.com.br/marco-temporal-indigenas-purubora-temem-perder-a-terra-aperoi-em-rondonia/
PIB:Rondônia
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