Dois índios foram salvos pelo acaso, para depois desaparecer

O Globo, Sociedade, p. 24 - 14/09/2018
Dois índios foram salvos pelo acaso, para depois desaparecer

SÉRGIO MATSUURA
sergio.matsuura@oglobo.com.br

Tamandua e Baita sobreviveram sozinhos nas últimas três décadas, fugindo de grileiros e madeireiros no meio da Floresta Amazônica, carregando apenas um facão, um machado e uma tocha. Mas, nos últimos três meses, os dois únicos remanescentes isolados do povo Piripkura enfrentaram sua mais difícil batalha.
Diagnosticado com um cisto no cérebro, Tamandua foi transferido para São Paulo, onde foi submetido a uma cirurgia, teve complicações no pós-operatório e precisou ser internado na UTI. Baita, tio de Tamandua, teve o diagnóstico de próstata aumentada, mas resistiu aos tratamentos. O caso ganha contornos ainda mais dramáticos porque a renovação da proteção ao território onde vivem, que vence no próximo dia 4, depende da comprovação de que a terra indígena é habitada por eles.
- O Tamandua não conseguia ficar em pé sem a poio, por consequência de uma hidrocefalia provocada por um cisto aracnoide. Sem tratamento, ele não teria como sobreviver na mata - conta Marcos Schaper, que trabalha há duas décadas no setor de Saúde Indígena do Hospital São Paulo. - O procedimento cirúrgico foi minimamente invasivo, com o uso de endoscópio. A gente espera vaque a alta acontecesse em um dia, ma sele teve complicações, precisou ser sedado, entubado e passou uns cinco dias na UTI.
RENOVAÇÃO DAS TERRAS
De acordo coma Fundação Nacional do Índio (Funai), existem no Brasil 114 registros de povos isolados, sendo 27 confirmados, que se espalham por 17 terras indígenas em estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Três delas, incluindo a Terra Indígena Piripkura, ainda não são homologadas. O uso é interditado por meio de portaria, que precisa ser renovada de tempos em tempos coma comprovação da presença de indígenas. A proteção é necessária contra a ameaça da exploração madeireira e o avanço da fronteira agrícola.
Encravada entre os municípios de Colniza e Rondolândia, no Mato Grosso, a Terra Indígena Piripkura se estende por 242,5 mil hectares de matas protegidas. Segundo dados do projeto MapBiomas, entre 1987 e 2017 Colniza perdeu 239,5 mil hectares de florestas e, em Rondolândia, as perdas foram de 131,6 mil hectares. Por viverem em isolamento, Tamandua e Baita foram salvos pelo acaso. Numa expedição no dia 16 de maio para procurar sinais da presença dos índios, funcionários da Funai encontraram a dupla. Tamandua não conseguia se locomover, estava incapacitado para a caça e a pesca.
- Se demorássemos mais, talvez não tivessem sobrevivido -diz Cleiton Gabriel, chefe de serviço da Funai na Terra Indígena Piripkura, que acompanhou Ta mandua e Baita na viagem à São Paulo. - Nós carregamos o Tamandua para a base e de lá fomos para Ji-Paraná. No dia 21 de junho, fomos para São Paulo e só retornamos no dia 13 de agosto.
Convencê-los a deixar a floresta não foi tarefa fácil. Rita, irmã de Baita e tia de Tamandua que deixou o povo na década de 1980, foi acionada para servir de tradutora e persuadi-los. Ela e o marido, Aripã Karipuna, também embarcaram para São Paulo para servir de ponte entre os índios e a equipe médica. Schaper conta que os dois últimos Piripkura foram recebidos na Casa de Saúde Indígena e, logo após a chegada, pegaram uma forte gripe. Por praticamente não terem contato com brancos, o risco de infecções era preocupação constante.
-A situação era muito delicada, posso dizer que foi uma das experiências mais traumáticas que tive aqui - lembra o médico. -Mesmo com a Rita e marido, a comunicação foi muito difícil. Por viverem tanto tempo isolados, eles acabaram desenvolvendo uma variação da língua que só faz senti dopara os dois.
As opções de tratamento precisavam considerar essa limitação e o estilo de vida dos indígenas. Para avaliara condição de Tama ndua, por exemplo, a recomendação ser iauma ressonância magnética, masa equipe preferiu a tomografia. Um dos procedimentos cirúrgicos possíveis seria o implante de um cateter para o dreno do líquido do cérebro para o abdômen.
-Imagina o Tamandua no meio da floresta com um cateter implantado? Seria inviável. Por isso optamos pelo endoscópio - explica Schaper. -O Baita era ainda mais arredio. Nós tivemos que fazer um ultrassom com ele deitado no chão, não aceitava deitar na maca. A uretrografia, que exige que ele urine durante o procedimento, nós não conseguimos fazer.
Apesar das dificuldades e dos contratempos, os índios se recuperaram e retornaram para a floresta. Tamandua precisa ser reavaliado neste mês. Mas para isso precisa ser localizado.
-Nós tentamos convencê-los aficar na base, mas eles não quiseram. Preferiram voltar para a verdadeira casa deles, a floresta -conta Gabriel.
"A comunicação foi muito difícil. Os dois desenvolveram uma variação da língua que só faz sentido para eles"
Marcos Schaper, médico


Dupla de sobreviventes assistiu ao massacre da aldeia, nos anos 1980

Os primeiros relatos sobre os Piripkura surgiram em 1985, quando uma indígena, rebatizada como Rita, foi encontrada na região. Ela contou que deixou a aldeia onde vivia com outras 13 pessoas após a morte do marido e decidiu não retornar.
Com o relato, expedições foram montadas para localizar o grupo. Foram encontrados vestígios de um acampamento, mas nenhum sinal dos índios. No dia 1o de maio de 1989, Tamandua e Baita foram encontrados.
- Tudo o que eles diziam é que o resto do povo havia morrido. Eles contaram que estavam fugindo dos brancos e precisavam cruzar um rio. Eles cruzaram primeiro, a canoa voltou para uma segunda viagem, mas foi interceptada. Eles se esconderam e assistiram ao massacre - conta o sertanista Jair Candor, que lidera a Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena da Funai, responsável pela Terra Indígena Piripkura. - Saímos da região em 1992. Quando voltamos, em 2007, eu não acreditava que eles estariam vivos. A floresta estava toda cortada por estradas abertas por madeireiros. Em 7 de agosto, os reencontrei.
Os encontros da equipe com os dois são até frequentes, mas em 2016 aconteceu um episódio único, retratado no documentário "Piripkura" (2018). Os dois índios foram voluntariamente à base da Funai atrás de fogo. Bruno Jorge, um dos diretores do filme, com Renato Terra e Mariana Oliva, lembra o momento:
- Estávamos na base quando um dos sertanistas apareceu correndo e disse: "eles chegaram". Ficou claro que eles se deixam ou não encontrar. Estavam lá, muito provavelmente nos observando, e vieram atrás de nós.


O Globo, 14/09/2018, Sociedade, p. 24

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Produção Cultural:Cinema, TV, Vídeo

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