Gêmeas indígenas driblam enchentes e distância para cursar faculdade em SP

G1 - https://g1.globo.com - 07/08/2019
Contempladas com bolsas de estudos em universidade de Santos, indígenas se dividem entre a tranquilidade das matas e a agitação da cidade.

As gêmeas Stephanie Kawuane de Lemos Amorim e Hidaty Tuani Lemos Amorim, de 17 anos, conseguiram realizar um objetivo em comum: conquistar uma vaga no ensino superior. Stephanie se matriculou no curso de ciências biológicas e Hidaty, em filosofia. As jovens da etnia tupi-guarani, que até então passavam a maior parte do tempo na aldeia Taniguá, em Peruíbe, no litoral de São Paulo, agora se dividem entre a tranquilidade das matas e a agitação da cidade.

Elas estão entre os 40 indígenas da Baixada Santista contemplados com bolsas integrais em licenciaturas oferecidas pela Universidade Católica de Santos (UniSantos). De diferentes etnias e cidades, eles saem diariamente de suas aldeias e fazem viagens que duram até duas horas para chegar à universidade. O trajeto, dependendo local, inclui até travessia de barco - que se torna uma missão impossível nos dias de chuva forte.

A área onde fica a aldeia Taniguá, que pertence à Terra Indígena Piaçaguera, é cortada por uma linha de trem desativada. Para chegar até a universidade, as gêmeas percorrem um trajeto de 93,5 quilômetros.

Ao contrário da maioria dos estudantes da zona urbana, elas são netas de cacique e trazem em suas raízes o costume de cultivar alimentos na terra onde vivem, como alface, mandioca, cebolinha, couve e tomate.

Apesar disso, as diferenças culturais não são empecilho para que elas deixem de seguir em frente. As duas, inclusive, estudaram em uma escola estadual de Itanhaém nos três anos do ensino médio, então já estão habituadas a lidar com olhares curiosos. "Temos a ajuda da Funai, mas ainda somos muito discriminados. Na escola, alguns respeitavam, mas a maioria, não. A gente sofria preconceito por causa da nossa cultura", diz Hidaty.

A adolescente garante que se esforça para preservar as raízes da cultura indígena, mesmo com os novos costumes que tomaram conta da rotina da aldeia, como o uso de computadores e smartphones, além da própria formação no ensino superior. "Vou tentar aprender tudo o que meus antepassados fizeram para poder manter minha cultura".

Futura professora de biologia, Stephanie conta que o objetivo é levar para a aldeia o conhecimento adquirido nas aulas. "Alguns da nossa geração não se interessam muito pela cultura. Outros se casam com branco, vão morar fora. Eu quero manter a tradição", diz. A jovem conta que nunca tinha ido a uma universidade. "Eu fiquei um pouco perdida, mas depois fui me acostumando e gostei. É muito grande, tem muita gente", finaliza.

Depois dos 40

Enquanto as adolescentes celebram a conquista logo após a conclusão do ensino médio, o cacique Davi da Silva, da aldeia Aguapeú, em Mongaguá, se vê pela primeira vez em uma universidade, aos 47 anos. Ele é o mais velho do grupo de 40 estudantes. Mesmo sem formação, ele dá aulas na escola indígena da aldeia há oito anos.

Para ele, a educação é fundamental para a evolução do povo indígena. "Fica mais difícil para a criança se ela não completa a escola. Assim ela não vai saber como agir para defender a própria comunidade", diz.

Futuro filósofo

"Acho que a vontade de aprender outros conhecimentos, que não sejam do povo indígena, me motivou a ingressar no curso de filosofia", diz o cacique Sérgio Martins da Silva, de 35 anos. Ele pega o ônibus às 17h30 para chegar às 19h na universidade. O horário que sai da aldeia varia conforme o clima.

Ao sair de lá, o primeiro passo é atravessar o rio Aguapeú. O trajeto, que costuma durar cinco minutos, aumenta para 30 nos dias de chuva, com a cheia do rio. Depois, ele anda aproximadamente 40 minutos até chegar ao ponto de ônibus.

Cacique da aldeia Aguapeú, ele é formado em pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP) e dá aulas desde 2004. "Não tem como deixar de ser indígena. A gente nasce e cresce na aldeia, então a gente preserva a língua e a cultura, apesar de interferências de outras culturas, mas a gente tenta manter a cultura através das novas gerações".

Indígenas na universidade

A bolsa disponibilizada pela UniSantos aos indígenas é fruto de um convênio entre a universidade, diretorias de ensino da região, Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Diocese de Santos. Eles estão cursando pedagogia, letras, filosofia, matemática, ciências biológicas, história e música

O vestibular, voltado especificamente para a comunidade indígena, era um sonho antigo do cacique Ubiratã Jorge de Souza Gomes, da aldeia Bananal, em Peruíbe, que iniciou as tratativas junto à universidade para garantir as bolsas de estudo. "A maioria dos indígenas não têm formação superior. Alguns saíram do ensino médio e foram dar aula", diz.

Segundo levantamento do G1, os estudantes indígenas são os que menos contam com apoio público para pagar a universidade. Segundo dados do Censo da Educação Superior, 63% dos indígenas que estavam matriculados em 2016 não conseguiram vaga na rede pública e também não foram selecionados para contratos do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) nem para obter bolsas do Programa Universidade para Todos (Prouni).


https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/educacao/noticia/2019/08/07/gemeas-indigenas-driblam-enchentes-e-distancia-para-cursar-faculdade-em-sp.ghtml
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