Terra indígena não é propriedade privada

FSP, Tendências/Debates, p. A3 - 18/08/2019
Terra indígena não é propriedade privada
Povos não querem plantar soja ou abrir cassinos

Sarney Filho

A política indigenista brasileira é, por várias razões, de enorme importância. Trata-se de questão humanitária e de reparação de injustiças históricas, da proteção de uma riqueza cultural e linguística incomparáveis, de honrar e reverenciar os saberes e valores dos ancestrais. Destaca-se, ainda, perante o mundo, o papel fundamental que os povos indígenas representam para a saúde ambiental do nosso planeta.

As terras indígenas (TI) foram criadas segundo critérios técnicos, a partir de análises sustentadas por estudos antropológicos, sociais e ambientais, entre outros. O processo de criação de uma TI visa que os índios tenham modos de vida consoante com suas culturas, possam manter seus costumes, suas identidades e, com isso, enriquecer o universo da diversidade dos povos. Os ianomâmis, por exemplo, são caçadores-coletores, precisando, para realizar suas atividades, de uma grande extensão de terra (grande para nós, que vivemos em centros urbanos).

O governo federal comprou a ideia de que as terras indígenas deveriam ser usadas como as terras dos não índios, arrendadas e destinadas à agricultura, à pecuária, à mineração; enfim, deveriam ter o uso de uma propriedade privada.

Os índios devem ser os donos do seu destino. Decerto, cabe a eles, desde que devidamente esclarecidos, decidir o que fazer de suas vidas e terras. Porém, caso as terras indígenas tenham o mesmo uso das propriedades privadas, não haverá motivo para que elas mantenham a mesma extensão territorial, pois fugiriam completamente dos propósitos para os quais foram criadas. Isso acarretaria, com toda probabilidade, grandes disputas judiciais.

Como todo brasileiro, os índios querem, sim, ter acesso aos benefícios da modernidade, como saúde e educação, mas isso não quer dizer -pelo menos para a grande maioria dos índios que conheço, boa parte com curso superior- que queiram plantar soja, fazer cassino ou permitir atividades que possam alterar o equilíbrio da natureza em que vivem.

As grandes extensões de TI também são hoje, na Amazônia, escudos contra o desmatamento ilegal e a grilagem. Dar uso econômico sustentável às florestas é possível, mas derrubá-las para plantar soja em terras indígenas, ou abri-las à mineração, é uma irresponsabilidade.

Devido ao protagonismo na proteção das matas e dos rios brasileiros, assim como para o clima e a biodiversidade do planeta, e com o desenvolvimento de instrumentos de pagamento por serviços ambientais, como o Fundo Amazônia e REDD+, as terras indígenas passaram a ter maior valor preservadas do que sendo exploradas.

Sem uma política indigenista adequada e com a liberação da posse de armas, os índios tornam-se mais vulneráveis a pressões e agressões. Se não tivermos um órgão de proteção bem estruturado, que ajude esses povos, dando proteção física e legal a suas vidas e suas terras, as mortes e a degradação poderão ser ainda mais graves do que têm sido ao longo dos últimos séculos.

Sarney Filho
Advogado e secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal, ex-deputado federal por nove mandatos (1983-2018) e ex-ministro do Meio Ambiente (1999-2002 e 2016-2018)



FSP, 18/08/2019, Tendências/Debates, p. A3


https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/08/terra-indigena-nao-e-propriedade-privada.shtml

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