OESP, Política, p. A12 - 05/02/2020
Tocantins, um rio que deixou de correr no Brasil Central: entenda este e outros conflitos pela água no País
ESPECIAL | GUERRA DAS ÁGUAS
RIOS MORTOS
Texto: Patrik Camporez / Fotos e vídeos: Dida Sampaio
Um dos rios do cerrado que mais fascinaram antigos naturalistas pela variedade de plantas e animais, o Tocantins deixou de correr em muitos trechos. O curso foi afetado pelas hidrelétricas construídas nos governos Lula e Dilma Rousseff. O uso de suas águas para mover turbinas impactou o fluxo. Das cabeceiras, no interior de Goiás, às grandes usinas no Estado do Tocantins, a reportagem registrou histórias de ribeirinhos que foram deslocados das margens do rio para áreas sem acesso à água.
A Vila Retiro, município de São Salvador do Tocantins, uma comunidade de pescadores e pequenos agricultores nas proximidades do Tocantins, foi impactada em 2006 pela construção de uma barragem para geração de energia. Centenas de propriedades rurais foram alagadas. A obra da Usina Hidrelétrica Peixe Angical represou o Tocantins na altura de Retiro. Após o início de sua operação, os moradores foram impedidos de tocar na água. O lago é vigiado por seguranças da usina e policiais militares. Os sitiantes, por sua vez, reclamam da dificuldade de vencer a burocracia da outorga da Agência Nacional de Águas (ANA).
Os moradores lembram que o rio corria sem interrupção antes das barragens. "Tinha mais gente, fartura e roça. Hoje, Retiro é uma vila fantasma. Os mais novos foram para Goiânia. A vila não tem nada para oferecer", diz o comerciante Olício Tavares, de 55 anos. "Antes, todo mundo morava na beira do rio, tinha fartura, tinha produção de cana, banana. Hoje, a terra boa está debaixo da água. Fizeram um assentamento, mas à água o povo não teve mais acesso."
Preciso buscar água um dia em cada canto, com um riozão desse tamanho passando ao lado."
Olerina Moura dos Santos, agricultora, Vila Retiro, São Salvador do Tocantins
Tavares conta que, antes de a água subir, a vila tinha 800 moradores. Com a cheia, só 300 permaneceram. "Ficou apenas o pessoal que vive de Bolsa Família. De produção não tem como viver", afirma ele. O comerciante chegou a pedir uma reunião com representantes da companhia. "Disseram que, se tirar um pouco para irrigar abacaxi, está tirando o dinheiro deles. Eu me assustei. Se colocar bomba de água a multa é muito cara. Por causa da fiscalização dia e noite, o cabra tem medo de ser preso e o povo, de enfrentar. Mas vai ter uma hora que não vai ter jeito."
Assim que a barragem começou a encher, as águas dos córregos e das nascentes foram "roubadas" pelo lago. O agricultor Teodoro Conceição dos Santos, de 74 anos, diz que levou menos de dois anos para o córrego Mato Seco "desaparecer do mapa". "Agora só se tem água nos poços e nas cisternas abastecidas pelos pipas", afirma ele, em uma referência ao caminhão usado para o abastecimento. Ex-morador da beira do Tocantins, Santos escuta com ajuda de aparelho. Ele conta que a água distribuída pela prefeitura tem cor de Coca-Cola e cheiro ruim. "O pipa aparece uma semana depois que a água acabou e o povo já está com sede, mesmo tendo esse lago imenso aqui do lado."
Manoel Araujo dos Santos, de 84 anos, viu sua propriedade ser completamente alagada pelas águas da usina. Em 2006, ele recebeu uma indenização pela terra que não deu para construir uma casa. Chefe de uma família de oito pessoas, deixou de ser agricultor para viver de auxílio do governo. "Com o decorrer do ano, o poço vai secando e afundando cada vez mais", lamenta.
A agricultora Olerina Moura dos Santos, de 59 anos, organiza a Folia de Reis e a festa junina da vila. Faz de tudo para a comunidade não acabar. "Sem água, as pessoas vão embora", diz. "Preciso buscar água um dia em cada canto, com um riozão desse tamanho passando ao lado. Dá vontade de ir lá (na usina) e quebrar tudo, mas, se quebrar, a gente vai para a cadeia. É aguentar sossegado."
Procurada pelo Estado, a Agência Nacional de Águas nega que esteja dificultando as autorizações, responsabiliza a hidrelétrica e aponta problemas agrários na região. "Não há qualquer restrição de parte da ANA à emissão de outorgas para captação de água no reservatório", destacou a agência, em nota. "A água ali armazenada é um bem público, portanto não pertence à hidrelétrica. É possível que haja alguma confusão sobre a propriedade, áreas lindeiras ao reservatório (...). Um conflito fundiário e não de uso de água."
Concessionária da Usina Hidrelétrica Peixe Angical, a Enerpeixe respondeu que as famílias interessadas em retirar água do Tocantins devem procurar a ANA. "A companhia acrescenta que foram desenvolvidos vários projetos agrícolas com as 97 famílias ribeirinhas afetadas pela formação do reservatório, realocadas nos seis projetos de reassentamento rural implantados pela Empresa", ressaltou a assessoria.
Declarados extintos, índios ofaiés estão vivos, mas longe do Rio Paraná
Os índios ofaiés-xavantes, antigos moradores das margens do Rio Paraná, região onde atualmente é Mato Grosso do Sul, vivem agora a 40 quilômetros das águas. O governo retirou a aldeia de perto do curso, em 1997, para a construção da Usina Hidrelétrica Porto Primavera, atual Engenheiro Sérgio Motta. Mas o lago formado não atingiu o lugar onde ficavam suas malocas.
Em 1948, o antropólogo Darcy Ribeiro escreveu que eles estavam próximos da extinção. Darcy registrou que poucas famílias restavam da tribo, quase dizimada por conflitos por terra. "Os xavantes têm músicas bonitas. Sendo, porém, a língua ofaié gutural e áspera", registrou. Dez anos mais tarde, antropólogas vinculadas ao Summer Of Institut Oklahoma, dos Estados Unidos, encontraram poucos nativos trabalhando em uma fazenda e descreveram a tribo como extinta.
Formada por 25 famílias, a atual aldeia ofaié fica no norte de Brasilândia, município de 12 mil habitantes, em Mato Grosso do Sul. O Estado chegou lá numa tarde de sábado de outubro. Depois de percorrer estradas de Minas Gerais e São Paulo e adentrar mais de 400 quilômetros por Mato Grosso do Sul, a equipe avistou uma região de descampados e pastagens, úmida e quente. Uma placa fincada na estrada estreita de terra informava que ali começava o território dos ofaiés.
Crianças acompanharam com atenção e desconfiança a chegada da reportagem à aldeia. Os homens disputavam um campeonato de bocha, um grupo de adolescentes escutava funk em volume alto e outros meninos e meninas jogavam futebol com uma bola de couro murcha.
Se você joga uma criança dentro da água é igual lançar um machado sem cabo. Cai e afunda, pois não sabe nadar."
Silvano de Moraes, professor indígena, Brasilândia
O professor ofaié Silvano de Moraes, de 30 anos, coordenador de educação indígena, conta que a aldeia sempre considerou o Rio Paraná sua casa. "Eu nasci lá, num lugar abundante de água, que era o encontro de dois rios, o Verde e o Paraná. Tinha a relação das crianças com o rio e a dos grandes com a pesca. Aí jogaram a gente aqui, nesse cerrado, sem água."
O nome ofaié-xavante significa savana na beira do rio. Atualmente, o único contato dos ofaiés mais jovens com o território antigo é uma visita anual promovida pela escola. "Se você joga uma criança dentro da água é igual a lançar um machado sem cabo. Cai e afunda, pois não sabe nadar", afirma Silvano. A resistência para voltar para perto das águas continua. "Nós brigamos sem armas. Nossa arma hoje é o lápis e a caneta. Temos que estudar a Constituição de 1988."
No fim de tarde, o índio Kamilo Martins, de 48 anos, voltou de bicicleta para a aldeia depois de um dia na roça. Logo atrás estava sua cachorra, a vira-lata Shakira. Ali o roçado de mandioca é coletivo. Não há perspectiva de aumentar a plantação em razão da dificuldade de irrigar. "Índio agora vive de água feita", constata.
Os índios chamam de "água feita" aquela retirada de poço - a única que agora possuem. Para eles, essa água tem qualidade inferior à de rio, a que "Deus oferece por meio das chuvas". Ao chegar à nova terra, um lugar seco, os índios só foram encontrar um rio a sete quilômetros de onde teriam que fazer suas casas. Numa luta que envolveu ações do Ministério Público Federal na Justiça Federal, os ofaiés conquistaram a terra por onde passava o Rio Sete. Mas a batalha demorou demais: duas décadas, o suficiente para que a mesma área fosse ocupada por plantios de eucaliptos, pastagens e canaviais. As bombas de irrigação sugaram o rio, que hoje está seco.
Desde 2018, a Hidrelétrica Sérgio Motta está sob controle da Companhia Energética de São Paulo (CESP). O Estado procurou a empresa para esclarecer as denúncias dos índios. A assessoria enviou uma nota. "A companhia informa que, neste período de mais de um ano de operações na região, nunca tomou conhecimento de questões ou recebeu demandas relacionadas a este assunto. Por esta razão, opta por não comentar o tema mencionado". As lideranças ofaiés, no entanto, contestam.
Márcio Ofaié da Silva, 31 anos, foi destacado pela comunidade para fazer a vigilância do curso da água. Virou uma espécie de guardião. Casado e pai de três filhos, ele passou a infância na margem do Paraná. "Os mais velhos entristeceram quando perdemos o rio", conta. "Na época, falaram que ia chegar a água da barragem. Aí chegou um caminhão jogando nossas tralhas em cima. Fomos para o meio da mata. Ficamos sem água."
Agora, a aldeia pretende reflorestar as cabeceiras do Rio Sete, pois um ofaié só existe mesmo quando vive perto da água. "É para ver se o morto ressuscita", diz o guardião.
Em São Paulo, seis conflitos por água a cada dia
Em São Paulo, seis casos de disputa por água são registrados por dia
Para encontrar água, produtores rurais, companhias de abastecimento e fábricas do Estado de São Paulo precisam cavar cada vez mais fundo. O uso descontrolado dos mananciais, sem qualquer fiscalização do poder público, fez aparecer o fenômeno das cidades sem rio. A redução drástica do volume dos cursos de água transforma os municípios em territórios de conflitos.
As delegacias paulistas registram uma média diária de seis casos de disputa por água. Há dez anos, porém, esse índice era próximo de zero. Dados inéditos do Departamento de Águas e Energia Elétrica, contabilizados a pedido da reportagem, revelam que os conflitos passaram de 134, em 2009, para 1.097 em 2018, um aumento de 718% em dez anos.
Em uma década, o Estado de São Paulo registrou 8.974 casos de disputa por água. São notificações de infrações onde usuários do manancial tentam burlar o sistema de captação para retirar mais água do que o permitido, prejudicando os demais setores e pessoas que fazem uso da bacia hidrográfica. Esses números não levam em conta as ocorrências de furto de água, ameaças e casos de construções irregulares de barragens e desvios de rios registrados pela Polícia Militar, por meio do policiamento ambiental - 2.942 de ocorrências, nos últimos três anos.
A água nossa aqui é tudo de poço. Não tem córrego, não tem rio, não tem nada. Tem um córrego lá embaixo, mas não tem água suficiente. A água vai indo cada vez mais embora."
Ednaldo Eder Zambom, agricultor, Jales
Somados os números da Polícia Militar com os do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), chegaríamos a um total de 7.017 ocorrências, apenas nos últimos três anos, uma média de 6,4 conflitos por dia, o que põe São Paulo entre as regiões com maiores focos de tensão do País. Em muitos casos, os conflitos por causa de água se travam em regiões onde nem mesmo existem rios. As águas do solo já foram todas sugadas pelas bombas de irrigação e a BRIGA se trava agora pelo líquido do subterrâneo, dos aquíferos.
Quem percorre o Rodovia Euclides da Cunha, no interior de São Paulo, observa diversas placas de propaganda de empresas com maquinários que perfuram poços artesianos.
Na principal rua de Jales, município de 50 mil habitantes, funcionam três perfuradoras. Um comerciante lembrou "de memória" nomes de córregos que já morreram ou estão, nas palavras dele, "penando". Citou o Marimbondo, Ribeirão Matão, Perobinha, do Café, dos Coqueiros, do Figueirinha e do Matãozinho. Fomos atrás deste último.
O agricultor Ednaldo Eder Zambom, de 47 anos, lembra que até pouco tempo atrás havia mais água nos rios e riachos da região. O córrego Matãozinho foi tragado pela irrigação e pela abertura de poços artesianos de grande profundidade. "Agora, a água nossa aqui é tudo de poço. Não tem córrego, não tem rio, não tem nada. Tem um córrego lá embaixo, mas não tem água suficiente. A água vai indo cada vez mais embora", afirma Zambom.
Até 1975, a economia de Jales girava em torno do café. Depois de uma geada histórica na região naquele ano, que dizimou a maior parte das plantações, os produtores decidiram pela fruticultura, com foco no morango e na uva.
Ednaldo Zambom usa irrigação por microaspersão
Consciente da importância da economia da água, o produtor usa a irrigação por microaspersão. Ele exibe com orgulho seu sistema de bombeamento que retira água do subterrâneo e mantém produtiva a propriedade de pouco mais de seis hectares. O poço tem 110 metros de profundidade, do tamanho de um edifício de 35 andares.
Por causa da redução de água, famílias vizinhas de Zambom desistiram da agricultura. "Falta estímulo. O dia a dia na roça é difícil. As pessoas novas foram indo embora", diz. "A cada ano vai acabando mais, ficando pouco produtor. Outros fizeram pastos. As coisas tudo sobem de preço. Veneno acompanha o preço do dólar. Faz 10 anos que a gente vende uva a R$ 3. Desistimos da uva. Agora mexemos com legumes. Se não tem água, não tem produção."
No Estado de São Paulo, 6.436 produtores rurais contam com outorgas para retirar água dos mananciais, mas uma parcela muito maior de agricultores, admite o governo, permanece na clandestinidade. Tanto que, em setembro do ano passado, o secretário executivo da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, Ricardo Santoro, publicou portaria para facilitar a regularização de quem usava água de forma irregular. A norma alterou a medição do fluxo de água para irrigação, que era feita por meio de dois hidrômetros diferentes. "Com essa nova portaria, vamos possibilitar que produtores que estejam na clandestinidade venham oficializar a outorga", avalia o secretário.
Santoro afirma que 5 mil produtores têm outorgas. "Precisamos ter o controle para distribuir a água de forma mais democrática. E como ter o controle? Medindo", observa. "Também precisamos saber quanto efetivamente a pessoa tira de água e quanto o curso hídrico está sendo sacrificado. É uma forma de incentivarmos a pessoa a vir para o sistema oficial."
Um estudo da Agência Nacional de Águas obtido pelo Estado revela que a crise hídrica no Sudeste tem provocado impacto nos sistemas de abastecimento de água de regiões populosas, como a bacia do Paraíba do Sul. "Naturalmente, essa bacia caracteriza-se por conflitos entre usuários de água, estando localizada entre os maiores polos industriais e populacionais do país", diz o relatório.
O documento destaca que, em São Paulo, o Sistema Cantareira foi abalado pela crise hídrica ocorrida em 2014 e 2015. "Houve uma série de conflitos internos no Estado, envolvendo o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), na bacia do Alto Tietê, e da Região Metropolitana de Campinas, na bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí".
Os dados da DAEE reforçam o que sustenta o relatório. Do início de 2013 para o fim de 2015, ápice da crise, o número de infrações envolvendo disputa por água no Estado saltou de 260 para 1.874.
OESP, 05/02/2020, Política, p. A12
https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,rios-mortos,1063349
Recursos Hídricos:Política Hídrica
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