Biblioteca? Oca? Não, Biblioóca.
Julie Dorrico
Os Erikbaktsá são exímios nas artes plumárias. O artesanato faz parte da estética e da economia do povo, como herança dos antepassados. A própria divisão de seus clãs, da arara cabeçuda e amarela, chama atenção para a relação com as penas. Contemporaneamente soma-se à esta herança a Biblioóca, espaço para a defesa da memória, história, cultura e identidade do povo.
O povo indígena inaugurou, em dezembro de 2020, a Biblioteca Comunitária Indígena - Biblioóca Nelson Mutzie, no distrito de Fontanillas, município de Juína, estado do Mato Grosso. O nome da Biblioóca é em homenagem à liderança Erikbaktsá, que coordenava toda a implementação do projeto, mas foi vítima da covid-19 pouco antes da inauguração. Esta epidemia viral é mais uma que também enfrenta o povo, e outros 304 existentes no Brasil (IBGE, 2010).
Sobreviventes de etnogenocídio na década de 1960
Sinalizar a importância deste projeto significa lembrar o passado de violência que resistiu bravamente os Erikbaktsá. Na década de 1960, os Erikbaktsá sobreviveram ao genocídio perpetrado pelas missões jesuíticas financiada pelos seringalistas, entre 1957 e 1962, que causou a depopulação de 75% do povo por epidemias de gripe, sarampo e varíola, conforme o Instituto Socioambiental (ISA). Outro ato cruel foi a desarticulação social ensejada também pelos jesuítas sobre as crianças Erikbaktsá, que foram retiradas à força de suas aldeias e famílias, e levadas para o Internato Jesuítico de Utiariti, no rio Papagaio, distante cerca de 200 km do território tradicional.
Esse segundo episódio é uma violência similar à denunciada na Austrália, na obra da indígena Doris Pilkington Garimara, intitulada Rabbit-Proof Fence, que expõe o etnogenocídio nas políticas estatais sobre a desarticulação dos povos aborígenes por meio da captura compulsória de crianças, consideradas mestiças, de suas famílias. O processo político iniciado pelos povos aborígenes intitulou esse crime de "Stolen Generation". As crianças eram levadas por agentes do estado para internatos que as "educariam" para serem domésticas ou trabalharem nas fazendas de brancos. A diferença entre os países é nítida: na Austrália, embora tardiamente, os governantes reconheceram o crime contra a humanidade, fazendo um pedido formal de desculpa em 2008, e implementou algumas políticas de reparação/indenização, que estão em curso; aqui, no Brasil, imperam o silêncio e a negação sobre o genocídio, escravidão e gerações de crianças roubadas de suas famílias indígenas, tanto dos Erikbaktsá quanto de outros povos, que seguem com seus poucos direitos ameaçados.
Os Erikbaktsá e a primeira biblioóca comunitária de Juína, Mato Grosso A Biblioóca é a primeira biblioteca comunitária indígena do estado. Ela apresenta uma arquitetura que baseia como modelo a Casa de Saber do povo, lugar de reuniões para discussão política, cultural e social, como diz a parenta Domingas Rikbaktsá. Foi construída pelos próprios Erikbaktsá com subsídios da prefeitura, mostrando a importância da parceria estatal na reconstrução de espaços de defesa e fomento da memória indígena. Está composta por um acervo de livros temáticos de culturas indígenas, laboratório de informática com acesso à internet, uma galeria de memória das lideranças, e, ainda, espaço para aquisição de artesanato, sobretudo feito de plumárias, pelas quais são famosos. O espaço conta com a presença de Oziel Apopi, sobrinho do Nelson Mutzie, que iniciou o curso de Bibliteconomia para dar continuidade ao trabalho do tio. O sistema da Biblioóca integra o sistema municipal de bibliotecas de Juína, revitalizadas recentemente na gestão do ex-secretário da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel), Adriano Souza, que em entrevista contou a história da construção do projeto e sua participação nela; numa parceria entre a prefeitura de Juína com a comunidade indígena. Importante destacar que a incorporação do sistema da Biblioóca ao sistema de biblioteca da rede municipal de Juína estabelece uma conexão com o povo Erikbaktsá, diminuindo por um lado o desconhecimento da identidade, da história e da memória indígena frente ao estado nacional; e por outro, tornando possível o projeto de autonomia do povo, ao estabelecer a condição de possibilidade de ponto turístico como espaço cultural.
Educação específica e diferenciada indígena e a Lei 11.645/2008 Essa ligação levanta o debate sobre a necessidade de parcerias entre sociedade nacional e povos indígenas na construção de espaços que atuem concomitantemente no fortalecimento dos povos e suas respectivas culturas; e, ao mesmo tempo, no estabelecimento do diálogo com os povos indígenas, como preconiza a Lei 11.645/2008 que torna obrigatório o ensino das culturas afro e indígenas em todo o currículo escolar. Amparados pelo artigo 210 da Constituição Federal, as comunidades indígenas têm direito a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. A Biblioóca ao voltar-se para a construção de um acervo temático atua na consolidação da representatividade estética e indígena, pela literatura indígena e obras de autoria indígena, lutando contra a opressão representacional brasileira que questiona a humanidade e a identidade indígenas há 521 anos. Além disso, ao incorporar o artesanato e projeto da cozinha comunitária, em andamento, reitera a cultura como ponto central na educação do povo. Em conversa com dona Domingas e Oziel, sinto que a Biblioóca é lugar de orgulho, valorização da memória e educação, e passa a ser também, de esperança para eles, e para nós. Saiba mais: Vídeo da inauguração da Biblioóca:
No facebook Instituto Socioambiental: Rikbaktsá - Povos Indígenas no Brasil
Verdade e reconciliação para as "gerações roubadas": revisitando a história da Austrália (scielo.br)
Redes Sociais da Biblioóca: Instagram: Biblioóca (@bibliooca8) Facebook: Biblio Oca
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julie-dorrico/2021/03/10/biblioteca-oca-nao-bibliooca.htm
PIB:Oeste do Mato Grosso
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