Um helicóptero da Força Aérea Brasileira carregado de agentes de saúde e doses de vacina contra o coronavírus levanta voo em Lábrea, no sul do Amazonas, rumo à terra indígena dos Jamamadi. Povo de contato recente, os Jamamadi fazem parte, como todos os 410 mil indígenas adultos em aldeias do Brasil, do grupo prioritário para receber o imunizante.
Ao pousar, às margens do rio Purus, o helicóptero é recebido por homens e mulheres com arcos e flechas pedindo a retirada da equipe. Eles dizem temer pela própria vida se tomarem a vacina e exigem o retorno de um missionário americano proibido de entrar na região pela Funai. Querem orientações dele sobre a imunização. A aeronave tem de levantar voo com o carregamento de vacinas intacto.
O incidente, no dia 2 de fevereiro, foi descrito à BBC News Brasil por testemunhas que pediram para não serem identificadas. Temem abalar a relação entre equipes de saúde e indígenas. Esse nível de tensão é incomum, mas cada vez mais frequente. E ilustra um fenômeno grave.
Em meio à pandemia, indígenas estão vulneráveis a outro tipo de vírus, as chamadas "fake news", que se espalham principalmente pelo WhatsApp nas comunidades indígenas.
Para o comunicador e empreendedor indígena Anápuàka Tupinambá, as ferramentas de comunicação instantânea permitiram "um salto" em ações conjuntas de indígenas na área da política e da educação.
"Mas viraram também uma faca de dois gumes. Vi parentes indígenas falarem que viram que mais de 900 indígenas no Xingu teriam morrido por conta da vacina. Uma senhora com mais de 90 anos me disse que não iria se vacinar por causa disso", afirma. "Nenhuma região do país está a salvo (das notícias falsas), nem áreas isoladas como Amazônia e Pará."
A ideia da "faca de dois gumes" serve também para o efeito da inclusão gratuita do uso de dados por aplicativos como Facebook, Instagram e WhatsApp em planos de celular no Brasil. Acessar a internet, para muitos brasileiros, acaba se limitando a esses aplicativos.
Um simples clique "fora do pacote" para verificação de uma informação vista no WhatsApp, por exemplo, tem um custo adicional.
"O que nós temos hoje é uma falsa internet. Quando tem as fake news, você não tem como checar", diz Anápuàka. "Então dá aquela sensação de 'estou na internet', mas na verdade não, estou dentro de um sistema, quase uma 'intranet' de uma grande empresa."
As limitações do WhatsApp como fonte de informação e de desinformação para muitos indígenas se soma à atuação de dois grupos com influência crescente: políticos e religiosos.
"A aldeia se pergunta: 'se o presidente não tomou, como é que a gente vai tomar?', diz a enfermeira Indianara Ramires Machado, de 30 anos, vice-presidente da associação de jovens indígenas da Reserva de Dourados, no Mato Grosso do Sul, e mestranda em fisiopatologia experimental pela faculdade de Medicina da USP.
Declarações do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, ao longo da pandemia que já matou quase 300 mil pessoas no Brasil ecoam nas comunidades indígenas.
"Ninguém pode me obrigar a tomar a vacina", afirmou em setembro de 2020. No mês seguinte, disse que "o povo brasileiro não será cobaia de ninguém". Depois, que não tomaria a vacina "e ponto final".
A fala que mais repercutiu nos grupos indígenas, no entanto, foi esta: "Se você virar um jacaré, é problema de você (...) Se você virar o super-homem, se nascer barba em alguma mulher ou um homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso".
Vítimas de vídeos falsos pelo WhatsApp
Perder os pais era o maior medo de Joel Paumari, coordenador pedagógico de um polo de educação indígena do rio Ituxi, que banha o município de Lábrea, no sul do Amazonas. E sua preocupação crescia com o número de mortes. Segundo a contagem oficial da Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, morreram até agora 615 indígenas que viviam em aldeias. A população em terras indígenas é de 517 mil, segundo o último dado disponível, o censo do IBGE de 2010.
Os pais de Joel vivem na aldeia Ilha da Onça, que fica a um dia de viagem de barco de Lábrea.
"Na minha aldeia tem internet. Meus pais não têm celular, mas meus irmãos, minhas irmãs e meus sobrinhos têm. Como estão em grupos de WhatsApp e recebem esses vídeos, eles mostram para os meus pais", conta.
Joel encaminhou à reportagem da BBC News Brasil exemplos de vídeos que circulam nos grupos de indígenas em seu WhatsApp. Um traz o pastor Silas Malafaia criticando a "vacina chinesa" e defendendo o uso de ivermectina, remédio sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19. Outros dois trazem conteúdo falso. Em um deles, um homem narra como a vacina "acabou com a vida" de uma família, modificando seu DNA e tirando dela seu "Deus".
Em outro, um suposto médico diz que a vacina altera o código genético de "cobaias".
Foram três dias de explicações e conversas - tudo por áudio de WhatsApp - para convencer os pais a tomarem a vacina. "Meu pai foi muito resistente", diz.
Uma irmã e um irmão decidiram não tomar.
Áudios, textos escritos e vídeos mentirosos vêm sendo espalhados por grupos no WhatsApp há anos no Brasil. Durante as eleições em 2018, o aplicativo foi inundado por uma campanha de desinformação.
De lá para cá, o aplicativo limitou a cinco vezes o compartilhamento de mensagens e inseriu uma marcação que mostra quando uma mensagem foi encaminhada várias vezes. Para estas, o limite de encaminhamento é um contato por vez.
Procurado pela BBC News Brasil, o WhatsApp, que pertence ao Facebook, disse que não tem acesso ao conteúdo das mensagens e não faz mediação de conteúdo, mas que tem agido para combater a desinformação no aplicativo. Em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), lançou um serviço gratuito com informações em português sobre a covid-19 acessado pelo próprio aplicativo (leia mais no fim da reportagem).
Um porta-voz do Facebook disse que a empresa está trabalhando com ONGs em formas de ampliar campanhas sobre vacinação para atingir populações altamente vulneráveis, como comunidades indígenas.
Rejeição a vacinas e 'fake news' via barco
Uma das perguntas cruciais quando se analisa o fenômeno da desinformação é qual é o impacto concreto do conteúdo falso ou de baixa qualidade em quem recebe a desinformação. E um dos riscos claros em meio à pandemia é o aumento da rejeição à vacinação. São preocupantes os casos identificados pela BBC News Brasil e os índices de vacinação até agora. Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), durante quase três meses de vacinação, receberam a primeira dose apenas 68% dos 410 mil indígenas que vivem em aldeias e são maiores de 18 anos.
Para comparar o resultado com o de campanhas anteriores, a BBC News Brasil obteve, via via Lei de Acesso à Informação, dados da imunização de indígenas no Brasil desde 2011. De lá para cá, a cobertura vacinal da população indígena vinha aumentando. A vacina contra a gripe, que é aplicada em adultos, por exemplo, saltou de 75% em 2011 a 90% em 2019. Além disso, nos últimos anos, a adesão a vacinas como a tríplice bacteriana, BCG (contra tuberculose), tetravalente, tetra viral, tríplice viral e varicela tem sido superior a 90%.
O risco é que esse possível retrocesso se consolide. "Sempre houve adesão. A vacina de gripe é dada duas vezes ao ano e aceitam numa boa, sem problema algum", diz a antropóloga médica Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, professora da USP (Universidade de São Paulo) que trabalha em campo, na Reserva Indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul, onde vivem mais de 15 mil indígenas.
Os maiores gargalos estão na região amazônica, onde, além da rejeição, há dificuldade para se chegar a determinadas regiões. Nas regiões do Alto Rio Juruá, no Acre, do Kaiapó e do Rio Tapajós, no Pará, menos de um quarto dos indígenas recebeu a primeira dose da vacina.
Uma agente de saúde da região amazônica que não quis ser identificada diz à BBC News Brasil que a situação é tão grave que está criando uma instabilidade na frágil e preciosa relação entre os trabalhadores de saúde e os indígenas. "Tinha aldeias em que a relação com a equipe era muito boa e agora está estremecida justamente por causa da insistência na vacinação, da equipe ir, orientar, conversar, tentar uma, duas, três vezes. Eles se sentem afrontados porque já disseram que não querem, já explicaram suas razões e a gente continua insistindo. É um trabalho de formiguinha", diz ela.
A rejeição "gerou trabalho duplicado para a Sesai", diz o educador indígena Eliel Benites, professor da Universidade Federal da Grande Dourados, que viu conhecidos rejeitarem a vacina na Reserva Indígena de Dourados. As equipes de saúde tiveram de ir e voltar duas vezes para tentar vacinar a população. "Estão cansados."
À BBC News Brasil, a Sesai informou que continua com uma campanha em aproximadamente seis mil aldeias envolvendo 14 mil profissionais de saúde indígena. "Mesmo as equipes enfrentando dificuldades de acesso às aldeias, que é feito por meio de transportes aéreo, fluvial e rodoviário, e depende também de condições climáticas favoráveis para voos e deslocamentos, a vacinação indígena continua em ritmo favorável", disse, em nota. "Os profissionais de saúde reforçam a importância de que todos sejam imunizados, ressaltam a não obrigatoriedade da vacinação, e reafirmam que as vacinas são seguras e possuem autorização da Anvisa", acrescentou.
Beto Marubo, de 44 anos, faz parte do movimento indígena do Vale do Javari, região com a maior concentração de povos isolados do Brasil. Marubo diz que o discurso antivacina de um governo negacionista está em sintonia com a pregação antivacina de um ramo da igreja evangélica e de missionários.
"As aldeias que não querem receber vacina têm um grande vínculo com as igrejas. Fake news no Vale do Javari anda por barco e terra, não por celular. São os próprios indígenas vinculados às agremiações religiosas que levam", disse.
Marubo relata que precisou enviar um vídeo a seus contatos no WhatsApp rebatendo a informação de que vários indígenas haviam morrido após tomar a vacina. "Temos que conter essa onda de informação falsa, que o Nawa ("o Nada" ou o não indígena) chama de fake news. Enquanto Marubo, tenho que dizer pra vocês que nenhum Marubo morreu após a vacinação. Lembrando sempre que se essa vacina fosse ruim, os o Nawa não iam aplicar neles mesmos, nos avós deles", diz o indígena no vídeo.
O papel dos missionários estrangeiros em terras isoladas
Em 1963, o casal de missionários norte-americano Robert e Barbara Campbell chegou à terra indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamati, no sul do Amazonas e começou um trabalho de tradução da Bíblia para a língua jamamadi. Foi ali onde o episódio do helicóptero que abre este texto aconteceu no mês passado.
Um dos filhos do casal, Steve Campbell, foi criado na terra indígena, fala a língua e conhece a cultura do povo. Ele seria, segundo testemunhas, o pivô da recusa à vacinação por parte dos Jamamadi.
"Nesses anos todos, a assistência à saúde jamamadi se firmou como a principal estratégia dos pastores norte-americanos: o Deus cristão, através da mão benéfica dos Campbell, garantiria aos Jamamadi a proteção das doenças dos brancos", escreveu o antropólogo Miguel Aparicio, pesquisador do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato em um texto sobre o tema.
Isso explicaria em parte a confiança que muitos depositam no missionário.
Mas desde março de 2020, uma portaria da Funai estabeleceu que está proibida a entrada de pessoas não essenciais em terras indígenas para evitar a propagação do coronavírus. Além disso, o Ministério Público Federal investiga se Steve Campbell usou os Jamamadi para entrar ilegalmente em uma terra de indígenas isolados, os Hi-Merimã.
O missionário, portanto, não acompanhou a equipe de vacinação, que teve de se retirar, como registrado no início desta reportagem. "Essa operação de helicóptero em aldeias é muito solene, ela chama a atenção. É feita em missões de vacinação ou de acidente grave. Tem que ter uma atitude muito marcada de rejeição para rejeitar um helicóptero da FAB e membros da Funai", diz o antropólogo Miguel Aparicio.
"Em quase 30 anos na região, nunca vi a rejeição de um helicóptero. Ela está atrelada a essa polêmica recente, ligada à política desse governo e à presença do missionário", avalia.
Segundo ele, o povo Banawá, que é vizinho ao povo Jamamadi e próximo à sua cultura e história, foi totalmente vacinado. A diferença? "A presença missionária, ali, não é forte", diz o antropólogo.
A BBC News Brasil apurou que alguns dias depois, um cacique da aldeia São Francisco, a maior aldeia dos Jamamadi, fez contato com a Sesai dizendo que queria tomar a vacina. A equipe voltou e vacinou alguns indígenas.
A Funai e a Sesai continuam tentando resolver o problema das outras aldeias.
Procurada, a Funai disse somente que não autorizou o ingresso de Campbell na Terra Indígena Jamamadi. Em busca de um contato com Campbell, a BBC News Brasil pediu um posicionamento, por e-mail, à Greene Baptist Church, no Maine, e à Faith Baptist Church, no Texas, que o apresentam em seus sites como um de seus missionários apoiados pelo mundo, mas não obteve resposta das igrejas americanas.
'Pastor fala que vacina tem o chip da besta'
O caso dos Jamamadi é apenas um exemplo do impacto da multiplicação de missionários e igrejas evangélicas - principalmente pentecostais e neopentecostais - em territórios indígenas no Brasil.
A pressão que muitas vezes exercem é tão forte que, em fevereiro de 2020, um ex-missionário evangélico que trabalhou na Amazônia por uma década foi nomeado chefe do órgão da Funai responsável justamente pela proteção a indígenas isolados. Ricardo Lopes Dias, exonerado do cargo nove meses depois, atuou entre 1997 e 2007 na Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização com origem nos EUA que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950.
Indianara Ramires Machado, da associação de jovens indígenas da Reserva de Dourados, diz que muitos dos vídeos que circularam nos grupos de WhatsApp de indígenas eram de pastores indígenas fazendo cultos.
"Vão na igreja, o pastor fala para não tomar a vacina, que ela tem o chip da besta, eles gravam e compartilham nos grupos de WhatsApp", diz ela.
Segundo o último Censo do IBGE, o percentual de indígenas evangélicos cresceu de 14% a 26% entre 1991 e 2010. O Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei) disse à BBC News Brasil haver 4 mil lideranças que atuam em comunidades indígenas no Brasil hoje "com a visão de ver Deus glorificado entre as tribos do Brasil". Um slogan do grupo é: "Em cada povo uma igreja genuinamente indígena".
O pastor Henrique Terena, presidente da Conplei, admite que no Mato Grosso do Sul há "um segmento neopentecostal que afirma que as vacinas não são boas, são do Diabo, e colocaram seus membros dizendo que não pode vacinar".
Em entrevista por vídeo à BBC News Brasil, Terena diz que nem é a igreja evangélica, nem são pastores indígenas que estão professando palavras contra a vacina. São pessoas "que se dizem evangélicas, que são pastores", mas que não são. "São pessoas individualistas, tipo aventureiros, que vêm aí e começam a disseminar situações que não são verdades. São pastores de fora que vêm disseminar dentro da comunidade. E aí o indígena escuta tudo e acaba disseminando isso."
Reação com campanhas indígenas
Diante da crescente rejeição, membros da própria comunidade criaram diversas campanhas pró-vacina. Na Reserva de Dourados, a associação de jovens colheu relatos e produziu "cards" para serem distribuídos por WhatsApp.
"Perdi um tio amado por causa dessa terrível doença. Proteja sua vida e de sua família! Jau'ke vacina" ("Vamos tomar a vacina"), diz um com a foto de uma jovem indígena.
O educador indígena Eliel Benites, da Reserva de Dourados, está fazendo um livro com financiamento da Fiocruz explicando a pandemia do ponto de vista da cosmologia indígena do seu povo guarani. "Os indígenas acreditam muito que cada doença tem seus donos", diz. A partir dessa lógica, ele explica como o vírus "tem donos de outros lugares" e, por isso, são necessários remédios, como a vacina, de outros lugares.
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) lançou em janeiro a campanha "Vacina, parente!" e há iniciativas pipocando pelo Brasil, como programas de rádio transmitidos justamente via áudios de WhatsApp.
Mas as iniciativas são "limitadas" e falta apoio do governo, segundo Eliel. "Há uma ausência de comunicação adequada do governo à população indígena", critica. Para Indianara, a enfermeira indígena de Dourados, "é preciso haver um 'choque' de educação em saúde para combater as fake news".
"Tem que fazer, tentar sensibilizar, uma hora alguém vai ouvir", diz ela. "Com esse governo e infelizmente com a igrejas, a gente tem que se desdobrar. Se não tivesse o negacionismo do governo e a frente radical das igrejas pentecostais, estaríamos em uma melhor situação de vacinação."
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56433811
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Confira as raízes e as consequências desse problema.
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