Missionários vão ao Vale do Javari atraídos pelos índios isolados

Folha de São Paulo: https://www.folha.uol.com.br/ - 14/08/2021
Em pequena cidade na fronteira com o Peru, igrejas se multiplicam devido à proximidade de Terra Indígena

ATALAIA DO NORTE (AM)
Com casas de madeira sobre palafitas, ruas estreitas e esgoto a céu aberto, Atalaia do Norte chama a atenção pela quantidade desproporcional de igrejas e missionários para 20 mil habitantes. O motivo de tanto interesse está no vasto território: a cidade é porta de entrada da Terra Indígena Vale do Javari, que abriga sete povos e diversos grupos isolados -a maior população não-contatada do mundo.


No pequeno casco urbano de Atalaia, há ao menos 15 denominações, entre as quais a Ordem da Santa Cruz, fundada na região por um líder messiânico mineiro, a Igreja Batista Fundamentalista, de perfil mais tradicional, a Igreja Católica, a Missão Israelita do Novo Pacto Universal, que acredita que Jesus Cristo reencarnou no Peru, e a norte-americana Testemunhas de Jeová, cuja sede recém-construída é uma das maiores da cidade.

A cidade atrai missionários dos EUA, do Canadá, da Espanha, da Argentina e de outras regiões do Brasil. A disputa pelos corações e mentes dos habitantes do Javari ocorre há décadas, mas se acirrou em 2020, quando o governo Jair Bolsonaro nomeou o pastor, antropólogo e ex-missionário Ricardo Lopes Dias para chefiar a coordenação-geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (Fundação Nacional do Índio).

A escolha de um religioso se encaixava na intenção bolsonarista de abandonar a atual política indigenista, que proíbe o contato com povos que desejam permanecer isolados, e abrir o caminho para as missões evangélicas. Duramente criticado, Dias acabou deixando o cargo em novembro, após nove meses.

A resistência aos missionários da linha de Dias, que priorizam evangelizar povos isolados, tem sido liderada pela Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), que obteve decisões favoráveis na Justiça.

No campo religioso, quem melhor faz a contraposição ao proselitismo dos missionários é o pastor indígena Marcos Dunu Mayoruna, o Pepe. Com cabelos compridos, brincos de madeira e pintura tradicionais do povo mayoruna, Pepe, 43, se contrapõe à imagem do evangélico vestido de terno, gravata, calça e sapato fechado.

A mensagem é clara: para ele, a conversão não deveria vir acompanhada do abandono da cultura indígena, como tem ocorrido desde tempos coloniais, primeiro com católicos e agora com evangélicos.

Ele recebeu a reportagem em uma maloca de piso de cimento, onde, aos finais de semana, ensina a palavra de Deus a jovens indígenas que migram a Atalaia do Norte. A estrutura contrasta com os prédios das igrejas cristãs.

Pepe nasceu em uma aldeia mayoruna (ou matsés), povo mais numeroso da região, com cerca de 4.200 pessoas, no Brasil e no Peru. Ele viveu o impacto da evangelização. O contato com os brancos ocorreu na geração anterior, em 1969, por meio de duas missionárias norte-americanas.

Em pouco tempo, conta Pepe, os mayorunas deixaram de viver em grandes malocas, trocaram a vida nômade por aldeias fixas, abandonaram rituais e sofreram com doenças introduzidas pelo branco.

Na juventude, quando enfrentava problemas com álcool, Pepe sonhou que Jesus, na língua mayoruna, lhe disse que ele tinha de se consertar.

Em 2001, se mudou para o Rio por meio do Projeto Tikuna, criado por indígenas evangélicos para proporcionar formação religiosa. Ficou lá por oito anos e se consagrou pastor em seminário da Assembleia de Deus. Em seguida, voltou para o Vale do Javari.

No início, conta Pepe, se envolveu com organizações missionárias cristãs que distorcem e exageram informações sobre a prática cada vez mais rara do infanticídio para justificar a presença nas aldeias.

Em 2010, ele apareceu no documentário "Quebrando o Silêncio" contando uma falsa história de que o seu irmão gêmeo havia sido queimado vivo na aldeia aos dez anos.

O vídeo, disponível na internet, foi divulgado pelo Movimento Atini, fundado pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A organização tem sido acusada de sequestrar crianças sob o pretexto de salvá-las do infanticídio.

Pepe conta que já foi várias vezes procurado por missionários norte-americanos que buscam sua ajuda para contatar indígenas isolados, mas ele se recusa a colaborar.

"Eu sempre falo para eles que não podemos forçar. Primeiro, porque o contato não deu certo. Hoje, estamos na beira do rio. Eu concordaria em que nós, pastores indígenas, levássemos educação, saúde, mas nem isso querem. Eles querem fazer o contato e que apareça o nome deles como quem fez o primeiro contato", afirma.

Em Atalaia, a meta de Pepe é fornecer alojamentos para as dezenas de jovens indígenas que deixam as aldeias para terminar os estudos. Muitos acabam se envolvendo com álcool e drogas. Para escapar dos males, acabam atraídos pelas igrejas evangélicas, onde a contrapartida é o abandono de práticas tradicionais, como o uso da ayahuasca, da caiçuma (bebida fermentada de macaxeira), do rapé e de ornamentos corporais.

Dois sobrinhos de Pepe frequentam a Congregação Cristã no Brasil, de costumes conservadores, com entradas separadas para homens e mulheres. Convertidos, usam cabelo curto e, no culto, sapatos fechados, calça e camisa.

"Eu falo pra eles: não levem pra aldeia o que aprendem na igreja daqui. Um fala que vai usar paletó, eu pergunto: como é que vai comprar? Como vai usar lá? Se você é mayoruna e vira cristão, você não muda. Isso que tem de levar pra aldeia. Vai mudar a comida, a forma de eles viverem na aldeia? Não pode."
Com visão oposta à de Pepe está o missionário norte-americano Andrew Tonkin, mais conhecido como André.

Obcecado em fazer contato com os indígenas isolados, ele frequentou e morou por dois anos, entre 2010 e 2013, na comunidade ribeirinha São Rafael, no rio Itaquaí.

A localização é estratégica. A cerca de duas horas de barco de Atalaia, a pequena comunidade erguida sobre palafita fica antes do início da Terra Indígena Vale do Javari. Foi ali que um grupo de isolados passou a perambular com frequência, nos anos 1990.

Ali, André vivia vida dupla. Na comunidade, realizava cultos, pescava e convivia com os moradores. "Ela não veio fazer outra coisa senão pregar a palavra do Senhor. Eu não ouvia ele falar sobre os índios", afirma a agente de saúde Maria Pereira da Gama, 71, moradora de São Rafael.

Ao mesmo tempo, buscava entrar em contato com os isolados. "Fui duas vezes com o André atrás dos korubos. Ele queria ficar no meio deles para entregar a palavra de Deus. Falava: "não importa se me matem, quero ficar no meio deles". Ele queria morrer com eles", afirmou o morador Laurimar Alves, 45, o Caboclo.

Depois de São Rafael, Tonkin, à época ligado à organização missionária Frontier International, se mudou para o assentamento rural Estaca Zero, perto de Benjamin Constant (AM), outro lugar estratégico -e menos vigiado- para entrar ilegalmente na TI.

Ali ele teria organizado nova expedição atrás dos isolados, em 2019. Só foi descoberto porque indígenas matis encontraram seu acampamento.

No ano passado, após ação da Univaja, a Justiça Federal proibiu a entrada na TI de Tonkin e de outros dois missionários, Josiah Mcintyre e Wilson Kannenberg, além da organização Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB).

A reportagem entrou em contato com os três missionários, mas nenhum deles aceitou falar. O destino de Tonkin é incerto. Um morador de São Rafael disse que ele estava em Benjamin Constant em março. Em Atalaia, circula que ele foi para o Iraque, mas que um irmão seu mora na cidade.

"Eles pegam o contexto antigo", afirma Pepe, citando cinco norte-americanos mortos em 1956 pelos huaoranis, no Equador. "Eles querem morrer aqui e que saia o nome deles. Querem se martirizar."

FONTE: https://temas.folha.uol.com.br/amazonia-sob-bolsonaro/novos-missionarios-da-amazonia/missionarios-vao-ao-vale-do-javari-atraidos-pelos-indios-isolados.shtml
Índios:Pastoral Indigenista

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