Às vésperas de julgamento no STF, Davi Kopenawa diz que marco temporal vai permitir 'roubo de terras'

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente - 30/08/2021
Às vésperas de julgamento no STF, Davi Kopenawa diz que marco temporal vai permitir 'roubo de terras'
Em entrevista ao GLOBO, líder yanomami premiado na ONU critica políticas do governo federal e diz que 'o futuro da Amazônia vai ser triste'

Leandro Prazeres
30/08/2021 - 12:27 / Atualizado em 30/08/2021 - 12:37

BRASÍLIA - Passava pouco mais de 9h da última quinta-feira quando o líder yanomami Davi Kopenawa chegou a uma casa de retiros na Asa Norte de Brasília para uma reunião com os "parentes", um dos termos usados pelos indígenas para se referirem uns aos outros. Na chegada, um cacique kayapó o recepciona e os dois se abraçam efusivamente.
- São muitos anos na mesma luta - diz o yanomami.
Aos 65 anos de idade, Davi Kopenawa é uma das principais faces do movimento indígena brasileiro e é reconhecido internacionalmente. Seu papel de líder começou no final dos anos 1980. Em 1988, ganhou fama mundial ao receber o prêmio Global 500, um dos mais prestigiosos da ONU. No início dos anos 1990, foi uma das vozes mais fortes no processo que resultou na demarcação da Terra Indígena Yanomami. Em 1992, ajudou a denunciar o massacre de Haximu, quando que 12 indígenas yanomami foram mortos por garimpeiros.
Em Brasília, ele ajuda a dar peso à mobilização de milhares de índios de diferentes etnias na capital federal para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a votar contra a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Segundo essa tese, os povos originários só poderiam reivindicar novas áreas se houvesse comprovação de eles as ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição de 1988 foi promulgada. A tese é defendida por ruralistas, mas criticada por ativistas, como Kopenawa. Segundo eles, se a tese for aceita, indígenas que foram expulsos de suas áreas durante a colonização do país não poderiam, jamais, retornar às suas terras originárias. O julgamento começou na semana passada, mas deve ser retomado nos próximos dias.
Em entrevista exclusiva ao GLOBO, Kopenawa sintetiza em poucas palavras como ele vê o impacto que o julgamento pode ter. "O marco temporal vai permitir que continuem roubando nossas terras", afirma.
Na entrevista, Kopenawa faz duras críticas ao governo federal que, na sua opinião, apoia garimpeiros ilegais que vêm invadindo terras indígenas, ameaçando aldeias e destruindo a natureza. "Aumentou (o número de garimpeiros), sim, por conta do apoio do governo. O governo não quer nos proteger", diz.

O GLOBO - Na semana passada, o STF deu início ao julgamento do marco temporal. Qual a consequência para os índios se o STF adotar essa tese para as demarcações de terras indígenas?
Davi Kopenawa: Foi o povo indígena que ocupou todo o Brasil. O marco temporal não é bom para os povos indígenas do Brasil. Já sofremos muito no tempo em que não sabíamos o que era bom ou ruim para o nosso povo. Quando eles (brancos) ficavam mentindo pra gente. O marco temporal é uma tentativa de prejudicar o nosso povo. O marco temporal vai permitir que continuem roubando nossas terras e até mesmo diminuir as que já temos, porque eles falam que elas são grandes demais. O pensamento do branco é de querer mais terra, mais riqueza. Então, pra mim, isso é muito negativo.

Os yanomami enfrentam diversos tipos de ameaças há pelo menos quarenta anos. Na sua avaliação, o cenário hoje é do que o do final dos anos 80 e início dos 90, quando houve o massacre de Haximu?
É pior, sim. Porque aumentou o preço do ouro, aumentou o número de garimpeiros e junto ainda tem a liderança... e não falo de liderança indígena, não, falo da liderança da cidade. Eu quero dizer: Jair Bolsonaro. Jair Bolsonaro é ditadura. E governo militar não presta. Então, piorou, sim. Hoje, temos entre 50 mil e 100 mil garimpeiros na floresta e na cidade e as autoridades não fazem nada.

O senhor citou o presidente Jair Bolsonaro. Na sua opinião, esse aumento no número de garimpeiros se deve ao apoio que o presidente dá a essa atividade?
Sim. Aumentou por conta do apoio do governo. O governo não quer nos proteger, não quer preservar a natureza. Por isso é que eles meio que autorizaram (o garimpo). Aumentou a quantidade de aviões, mercadorias, armas de fogo e circulação de bebida. Até prostituição aumentou. Antigamente, era pouco. Antigamente, o governo e a Funai escutavam a gente. Não era fácil, mas escutava. Hoje, a Funai está com eles.

Ativistas afirmam que o atual governo promove um "genocídio". O senhor concorda com esse termo?
O genocídio do meu povo indígena é geral. Ele (Bolsonaro) fala que não aconteceu nada porque estão escondendo o genocídio do meu povo indígena do Brasil. (Genocídio) dos yanomami, dos guarani-kaiowá... Agora, mesmo, no dia 10 de maio, aconteceu na comunidade Palimiú e ele não quis resolver nada [No dia 10 de maio, um grupo de garimpeiros ilegais atirou contra indígenas yanomami da aldeia Palimiú. Uma pessoa ficou ferida. O episódio foi registrado em vídeo. Nos dias seguintes, foram registrados novos ataques]. Então, ele acha bom que o índio morra como bicho.
Há relatos de que os ataques à aldeia Palimiú tenham relação com a ação de facções que hoje atuam dentro dos garimpos.

Como a chegada dessas facções afetou as aldeias?
A gente sabe que as facções entraram (nos garimpos), sim. Entraram junto com os garimpeiros. Eles chegaram dizendo que são garimpeiros, levando arma de fogo. Isso está acontecendo, mesmo. Nós enfrentamos eles (durante o ataque à aldeia Palimiú). Usamos arco e flecha. Mas o nosso pessoal ficou doente porque atiraram bomba de gás.
O presidente Bolsonaro e pessoas que o apoiam afirmam que o movimento indígena brasileiro atende a interesses estrangeiros e que vocês só fariam os "gringos" querem.

Como o senhor responde a essa crítica?
Eu conheço os gringos. Quem autoriza a chegada dos gringos aqui no Brasil é o governo brasileiro. Não é a gente. Como é que ele fala que a gente faz o que eles querem? Quando um estrangeiro chega, a gente conversa primeiro pra saber o que ele quer fazer na nossa terra. Tem gente que vem fazer entrevista, outros querem fazer pesquisa. Eles não chegam como o garimpeiro chega, feito urubus. Na minha terra, eles não fazem isso, não.
O presidente e alguns dos seus apoiadores também afirmam que os indígenas precisam encontrar formas de serem "produtivos" em suas terras.

O senhor concorda com essa alegação?
Eu não vou aceitar esse tipo de pensamento. Não precisa um grupo da cidade vir ensinar a gente a trabalhar. Nós sabemos e já trabalhamos. Sabemos cuidar do alimento que a gente conhece. Não queremos pegar os costumes dos povos da cidade. Os costumes do povo da cidade são destruidores. Ninguém quer apoio do governo pra criar boi. Mesma coisa com a soja.

O senhor já disse que a pressão internacional no início dos anos 1990 foi fundamental para conquistas como a demarcação da Terra Indígena Yanomami. Hoje, vocês continuam a enfrentar ameaças graves. Na sua avaliação, falta mobilização internacional sobre o governo brasileiro em relação às políticas ambientais e indígena?
Falta, sim. Em 1988, 40 mil garimpeiros estavam lá. Eu era um guerreiro sozinho. Hoje, estamos juntos. Aqui no Brasil, eu não conseguia nada. Aconteceu que a ONU, os países da Europa, Estados Unidos, todos eles apoiaram a minha luta. Mas hoje, estão em silêncio. Está faltando isso.
Muita gente no Brasil repete a tese de que haveria "muita terra para pouco índio" e que o indígena que usar telefone celular ou estudar não poderia mais ser considerado "índio" e, por isso, deveria ter direito à terra.

Como o senhor responde a esse argumento?
Na minha terra, uma minoria usa internet, energia elétrica, fala português. Eu uso roupas de branco aqui fora, mas na minha terra, eu não uso. Hoje, nós podemos aprender a falar português e usar computador. Se a gente não fizer isso, estamos mortos. Eles (brancos) ficam assustados porque nossos filhos sabem falar português e ligar o computador pra falar com outros países. Eles estão assustados e ficam se perguntando: como é que nós vamos enganar os índios dessa vez? E aí eles jogam a culpa na gente.

Você é otimista ou pessimista em relação ao futuro da Amazônia?
O futuro não se entende, né? O futuro chega até nós. Hoje, está ruim. Faz 40 anos que os brancos dizem pra nós que o futuro vai ser melhor, mas eles só estragaram a beleza da nossa floresta, do Brasil, estragaram a beleza da Amazônia. O futuro não vai ter árvore nativa. Não vai ter caça da terra e peixe nos nossos rios. Não vai ter água limpa para o branco e nem pros índios. O futuro vai ser pior. Eu estou falando isso porque eu sou xamã. Eu sonho, eu enxergo. O futuro da Amazônia vai ser triste.

https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/as-vesperas-de-julgamento-no-stf-davikopenawadiz-que-marco-temporal-vai-permitir-roubo-de-terras-25176874
PIB:Roraima/Mata

Related Protected Areas:

  • TI Yanomami
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.