Nós somos a terra; vocês são pessoas?

FSP, Tendências/Debates, p. A3 - 19/05/2022
Nós somos a terra; vocês são pessoas?
Faltam humanidade e compromisso com a vida para proteger os yanomamis

Fernanda Papa
Jornalista, é mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School (EUA) e Eaesp-FGV; trabalha com políticas públicas em direitos humanos
18/05/2022

Há quase três anos, escutei o relato de um garimpeiro das antigas. Radicado em Itaituba (PA), aprendeu a tirar riqueza da terra nos anos 1980, em Roraima. Tinha uns 14 anos quando seu pai começou a deixá-lo na floresta, junto com o irmão e um tio mais novo. Lá eles se viravam por três meses, com arroz, feijão e farinha. Precisavam garantir a caça e o ouro. Ele mostrou no braço uma cicatriz de flechada, mas não disse se também disparou alguma coisa. Perguntei sobre a visão que tinha dos primeiros brasileiros, os povos indígenas. Ele disse que à época havia respeito e medo, e parecia se perguntar: "Será que eram pessoas?"

Eu me fiz essa pergunta, em sentido totalmente oposto, quando vi a notícia do possível estupro seguido de morte de uma jovem indígena de 12 anos, na comunidade de Aracaçá, terra indígena Yanomami (TIY), no norte de Roraima. Ela teria sido arrastada para o barracão dos garimpeiros, onde teria sido violentada e morta. Uma outra criança também está desaparecida -a Polícia Federal segue investigando o caso. Oxalá os autores da atrocidade sejam responsabilizados. Será que resta alguma humanidade? Respeito não restou. Só medo. Vocês são pessoas?

É quase incontável a sequência de oxalás para a vida vencer a guerra desproporcional imposta pelo garimpo ilegal às TIY, demarcadas em 1992. É a pior ofensiva em 30 anos, com muito mais tecnologia em extração, comunicação e destruição. A maior terra indígena do país vive o momento mais violento da história, também associado ao narcogarimpo. Nas macrorregiões, as cicatrizes na terra e nos corpos avançam com a malária, a desnutrição infantil e a violência provocada pela introdução de cachaça, drogas e armas.

O mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que o número de assassinatos de yanomamis aumentou em 1.100% de 2020 a 2021. De 9 para 101. Em abril, o relatório "Yanomami sob Ataque", da Hutukara Associação Yanomami e da Associação Wanasseduume Ye'kwana, já trouxe detalhamento fundamental sobre a escalada do inferno no ex-paraíso amazônico brasileiro. Afirmam: "É central a retomada de uma estratégia de Proteção Territorial consistente".

Tecnologia para mapeamento por satélite dos avanços do garimpo, a Polícia Federal tem. Dados dos órgãos da saúde e ambientais para evidenciar as violações a que estão submetidas a população indígena e toda a biodiversidade, também. Falta o compromisso de quem tem caneta com a vida.

O abril indígena, liderado por várias organizações, foi fundamental para intensificar a denúncia na interrupção de políticas públicas que podem trazer solução a este fim de linha civilizatório, que viola todos os direitos humanos e desconhece qualquer expressão de compaixão. Demarcação pela vida das mulheres e meninas indígenas já! Na sua sabedoria, elas sempre resistirão: "A terra não é nossa, nós somos a terra".

FSP, 19/05/2022, Tendências/Debates, p. A3

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/05/nos-somos-a-terra-voces-sao-pessoas.shtml
PIB:Roraima/Mata

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