Parentesco e padrões de organização social entre os povos indígenas do Oiapoque

Com Ciência - https://www.comciencia.br/ - 17/08/2022
Parentesco e padrões de organização social entre os povos indígenas do Oiapoque

17 de agosto de 2022 comciencia
Por Rosilene Cruz de Araujo

No contexto atual, os povos indígenas do Oiapoque estão muito articulados politicamente entre si e desenvolveram intrincadas e complexas redes de intercâmbio material e social, de modo que, mantendo entre si as diferenças e especificidades de cada povo, articulam-se conjuntamente em relação à gestão de seus territórios e à manutenção e valorização de suas crenças e culturas.
Nesses círculos de relações existem antigas e densas redes de intercâmbios difíceis de serem pensadas de maneira encapsulada e fragmentada. Dessa forma, com o intuito de delimitar o escopo de minhas observações, pretendo mostrar aqui as possíveis relações que se estabelecem entre parentesco e organização social de alguns povos da região.
Embora possuam especificidades em relação a suas línguas, religiões e tradições culturais heterogêneas, histórias de contato e trajetórias diferenciadas, os Palikur, Karipuna, Galibi-Marworno e Galibi Kali'na possuem ampla relação de reciprocidade e compartilham entre si muitos aspectos.
Os Palikur são falantes de parikwaki, língua pertencente à família Arawak (subfamília Maipure), cuja transmissão intergeracional é bastante forte e estável. Os Galibi Kali'na falam a língua Kali'na (família Karib), porém, as novas gerações que migraram para o Brasil já não a transmitem mais aos seus descendentes. Os Karipuna e Galibi-Marworno falam variedades distintas do kheuól do Uaçá, língua crioula de base francesa. Além dessas línguas, também circulam nesta região multilíngue o português, o francês e o créole guyanais. É grande a variedade de não índios com quem essas populações indígenas têm mantido, há bastante tempo, algum tipo de relação.
Povos indígenas do Oiapoque: parentesco e padrões de organização social
Os Karipuna
Os Karipuna levam em consideração as atitudes, escolhas e estratégias desenvolvidas pelas famílias. Gow (1997) argumenta que o parentesco é, acima de tudo, "um sistema de subjetividade, pois as estruturas básicas da consciência humana envolvem necessariamente a consciência de um eu [self] em meio aos outros". Nas genealogias feitas por Tassinari (2003), a autora considera inicialmente as tendências de casamento. Evidencia o contraste de alianças fechadas, como as "avunculares e entre primos paralelos[1]", que chegam a ser consideradas incestuosas, e também trata das uniões com "pessoas de fora[2]". De acordo com Tassinari, os traços de parentesco dos Karipuna estão presentes nas genealogias que remetem ao passado e nas escolhas atuais de casamento.
Seguindo essa lógica, a proibição do incesto, segundo Strauss (1982), está no limite entre a natureza e a cultura, pois "apresenta, [...] reunidos os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditórios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas uma regra que, única entre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo caráter de universalidade". Por mais que se possa pensar que em alguns povos são permitidos casamentos com pessoas da mesma família e do mesmo sangue, sempre há algum tipo de proibição.
Nas análises formuladas por Tassinari (2003), considerando as escolhas de casamento da geração migrante e da primeira geração descendente Karipuna, percebe-se a tendência de os homens se casarem com mulheres indígenas provenientes das aldeias do Uaçá (Galibi) ou Urukauá (Palikur), e das mulheres com homens "de fora". Na primeira geração, evidenciam as escolhas endógamas[3]. Para Tassinari "essas uniões são valorizadas entre os Karipunas por corresponderem ao ideal de não espalhar o sangue".
Já na segunda e terceira geração dos Karipuna, notam-se mais alianças avunculares. Pode-se perceber também, a tendência de repetir casamentos com pessoas de uma mesma família, mesmo quando provenientes de outros grupos indígenas criando um vínculo de aproximação. O cerne de qualquer regime de relação de parentesco é, portanto, o conjunto de relações de afinidade como sugerido, por exemplo, em Lévi-Strauss. Assim como, sociologicamente, de acordo com Malinowski, o parentesco é uma rede composta e complexa de laços. Sobre a organização social dos Karipuna, Tassinari apresenta dois movimentos que vão caracterizar um padrão próprio de organização social, sendo:
As duas tendências de casamento dos Karipuna - a de fechamento, manifesta na endogamia no nível da família extensa, e a de abertura, evidente na valorização de união com pessoas "de fora"- constituem dois movimentos, aparentemente opostos, mas que se complementam na construção de um padrão próprio de organização social (Tassinari, 2003).
A organização das aldeias Karipuna, composta de poucas casas de famílias nucleares aparentadas, segue essa mesma estrutura organizacional com tendência à dispersão das famílias extensas que remete "ao tempo dos antigos"[4]. Essa organização social leva a certo isolamento, o que pode caracterizar os Karipuna como um grupo cognático[5].
A chegada da escola influencia na organização social e distribuição das residências nas aldeias de forma diferente entre os povos da região, como bem coloca Tassinari, "atualmente, e desde a chegada da escola em 1934, o padrão de residência baseada em pequenas unidades dispersas alterou-se".
Os Galibi-Marworno
Tassinari (2003) afirma que após a implantação da escola nos anos 1940, a totalidade das famílias Galibi-Marworno, antes dispersas em ilhas, passa a co-residir em uma única aldeia. Porém, com o crescimento populacional, surge uma tendência à dispersão. Nos anos de 2016-2017 e 2018 durante o desenvolvimento de atividades que consideramos como atividade de pré-campo de uma pesquisa pensada para o doutoramento[6], pudemos perceber esta tendência à dispersão. Essa situação continua operando fortemente.
O grande contingente populacional dos Galibi-Marworno, a aglomeração concentrada na Aldeia do Kumarumã, sem perspectiva de dispersão nas proximidades, tem levado à saída de grupos familiares para a criação de novas aldeias. Percebe-se ainda um processo de retorno às localidades das antigas aldeias[7]. Assim, o padrão de sociabilidade entre famílias Karipuna se estende às famílias Galibi-Marworno. Os círculos de cooperação e ajuda mútua, que unem várias famílias nucleares, formam unidades fundamentais para a reprodução de famílias extensas, sendo perceptível a organização em famílias extensas e em grupos idealmente aparentados. Para Tassinari, no caso da população Karipuna, "verifica-se que na composição desses grupos locais, como círculos de família unidas em laços de reciprocidade (alianças de casamento e cooperação de trabalho), deve haver um equilíbrio entre proximidade de parentesco e proximidade de residência". Portanto, constata-se que as famílias Karipuna procuram manter um equilíbrio de valores com as escolhas de casamentos fechados e abertos.
Os Galibi-Marworno constituem um povo de população etnicamente diversa. Entre eles prevalece a cultura de famílias extensas e o casamento matrilocal. Mantém-se o costume de o marido construir uma casa próxima dos sogros. No entanto, as condições atuais de aumento populacional dificultam a perpetuação desse costume.
Os Galibi Kali'na
O núcleo familiar Galibi Kali'na que migrou da Guiana para o Brasil nos anos de 1950, e que hoje são conhecidos como "Galibi do Oiapoque" era composto de "dois irmãos, Julien e Geraldo Lod, casados com duas irmãs, e de uma irmã dos Lod, casada com Joseph Jean-Jaque. O avô dos Lod chamava-se Emile François Zacharie e era primo de Grand Emile (Abolé Emile), avô das esposas de Geraldo e Julien Lod" (Vidal, 2000).
A observação da composição do núcleo familiar evidencia nas regras matrimoniais dos Galibi Kali'na a preferência por casamentos entre primos cruzados classificatórios. Sobre o casamento entre primos cruzados classificatórios, Malinowski explica que "o mesmo fundamento biológico do parentesco se forma invariavelmente cultural e não apenas um fato natural". Ele assegura que "há termos de parentesco usados num sentido verdadeiramente classificatórios, baseados parcial, mas nunca inteiramente, nas distinções de clã". Assim, a situação de parentesco dos Galibi Kali'na, que vivem na Aldeia São José dos Galibi, descendentes diretos destas famílias, pode ser um composto de elementos biológicos e culturais.
Tradicionalmente, quando dois jovens pretendiam se casar, geralmente a escolha era feita pelos pais. Os jovens e suas famílias realizavam uma sequência de atos ritualizados. Os jovens noivos eram submetidos "a duras provas que comprovariam a sua competência como exímios agricultores, caçadores e artesãos, para os homens, e perfeitas fiadeiras de algodão, tecelãs, ceramistas e preparadoras de caxixi, para as moças" (Vidal, 2000). Porém, nos dias atuais essa tendência não opera mais como antigamente.
Os Palikur
Entre os Palikur, observam-se laços de cooperação e obrigação bem definidos, especialmente na relação entre genro e sogro. A autoridade do sogro sobre seus genros é reforçada, segundo Capiberibe (2009), pela regra de "residência uxorilocal" pela qual, após o casamento, o genro deve ir morar junto aos sogros. A descendência, por sua vez, é determinada pela linhagem paterna, e é esta regra que define com quem se pode e não se pode casar. Entre os Galibi-Marworno, muitas famílias ainda vivem segundo o padrão tradicional, os homens após o casamento, assim como os Palikur, também passam a viver na casa dos pais de suas esposas. Nas relações de parentesco e casamento dos Palikur, de acordo com Capiberibe, a vida social nas aldeias é organizada em torno de uma divisão, clássica nas sociedades ameríndias, entre aqueles que são considerados parentes consanguíneos e afins.
Algumas considerações
Como vimos, estes povos possuem ampla relação de reciprocidade e compartilham entre si e com outros povos, aspectos de suas culturas e tradições, mantendo certa semelhança nos padrões de sociabilidade. Por outro lado, procuram manter um equilíbrio de valores inerentes a cada povo, a exemplo da escolha de casamentos, cada um com suas crenças, rituais, religiões, cultura, línguas tão distintas e modos próprios de organização social.
Considerando esse primeiro esboço, podemos dizer que o parentesco e seus padrões de organização social se estruturam a partir de estágios do seu desenvolvimento na história da vida desses povos e pode passar por longo processo de transformações. Podemos perceber as várias mudanças pelas quais passam os sistemas de parentesco humano e como são análogas umas às outras. Assim, as relações de parentesco possuem semelhanças importantes e podem estar entrelaçadas de algum modo contribuindo para a densa rede de intercâmbios entre as populações aqui mencionadas.
Conforme Roy Wagner (1977), se considerarmos uma situação em que todas as relações de parentesco e todos os tipos de parentes são basicamente semelhantes, sendo uma responsabilidade humana diferenciá-los, "a responsabilidade de fazê-lo será nossa tarefa no entendimento das relações de parentesco, como é o papel do homem em talvez a maioria das sociedades humanas". Um exemplo retirado do clássico estudo de Lévi-Strauss sobre o totemismo pode ajudar a esclarecer esse ponto. Lévi-Strauss postula uma homologia entre uma "série natural" de criaturas totêmicas e o conjunto de agrupamentos humanos que elas representam, na qual "não são as semelhanças, mas as diferenças que se assemelham".
Nessa perspectiva, a organização social e parentesco dos povos indígenas do Oiapoque se constituem num sistema complexo de relações e interações que mobilizam a ancestralidade (rituais, mitos e arcabouço narrativo), as relações familiares e comunitárias (lideranças, solidariedades e conflitos), as relações de afinidade e reciprocidade (ajuda mútua) as crenças, os desejos, vontades e sonhos, individuais e coletivos em que cada povo e/ou comunidade pode se projetar.
Rosilene Cruz de Araujo é doutoranda em antropologia social, mestra em educação e contemporaneidade e professora da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá. araujo.rosilenecataa@gmail.com
Referências
Capiberibe, A. Nas duas margens do rio: alteridade e transformações entre os Palikur na fronteira Brasil/Guiana francesa. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
Gow, P. "O parentesco como consciência humana". Mana. Estudos de Antropologia Social 3 (2):39-66. 1997
Lévi-Strauss, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Vozes. 1982.
Lévi-Strauss, C. La penseé sauvage. Librarie Plon, 1962.
Malinowski, B. "Kinship". Man, 1930.
Tassinari, A. M. I. No bom da festa: O processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá. São Paulo: Editora da USP, 2003.
Vidal, L.B. Verbete Galibi-Marworno, enciclopedia dos povos indígenas do instituto socioambiental. Publicado em http://www.socioambiental.org/pib/epi/galibimaworno/ gmarworno.shtm. 2000.
Vidal, L.B. "Outros viajantes - de Maná ao Oiapoque, a trajetória de uma migração". Revista USP, São Paulo, n.46, p. 42-51, junho/agosto 2000.
Viveiros de Castro, E. B. "O conceito de sociedade na antropologia". In A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. Cosac & Naify: São Paulo, 2000.
Viveiros de Castro, E. B. A Inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.2002.
Wagner, R. "Analogic kinship: a Dabiri example". American Ethnologist, 4:623-642. 1977.
Notas
[1] As alianças avunculares são aquelas em que acontece o casamento entre tios (as) e sobrinhos (as), ou seja, entre parentes colaterais em terceiro grau. Já as alianças entre primos paralelos vêm dos irmãos do mesmo sexo dos pais. Ou seja: os filhos do tio paterno são considerados primos paralelos, da mesma maneira que os filhos da tia materna.
[2] Maranhenses, paraenses, guianeses, crioulos e indígenas de outras etnias.
[3] Casamento entre membros do mesmo povo.
[4] Tassinari vai interpretar o tempo relatado pelos Karipuna "tempo do antigos" fazendo uma leitura "pós-escola"
[5] A filiação cognática acontece se a linhagem é traçada sem distinção, se os laços de parentesco são iguais para o lado da mãe e do pai. Os filhos herdam indistintamente do pai ou da mãe, e tanto os ascendentes maternos como paternos são considerados parentes. Assim, a filiação cognática nas culturas onde se pratica a filiação indiferenciada, a terminologia do parentesco patrilateral e matrilateral é a mesma em ambos os lados.
[6] O pré-projeto de doutorado "Etnicidade contrastada: conversão religiosa no contexto dos povos indígenas da Terra Indígena Uaçá - Oiapoque - AP" proporcionou sistematizar atividades de pré-campo. Vale salientar que o percurso do doutorado em contexto pandêmico da Covid-19 mudou o contexto desta pesquisa.
[7] Ver o projeto de conclusão de curso Gestão territorial e ambiental dos Galibi-Marworno: do passado ao presente, de autoria dos professores indígenas Galibi-Marworno - Cristina Narciso Ioiô e Romildo Santos, apresentado ao curso de licenciatura intercultural indígena do campus binacional de Oiapoque/Unifap/2020.

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PIB:Amapá/Norte do Pará

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