Terras Indígenas impactadas pela BR-163 estão sem acesso a recursos de mitigação
Garimpo e outros crimes ambientais aumentaram a degradação nas TIs Baú, Mekrãgnoti e Panará depois de corte de verbas, que inviabilizou projetos para o fortalecimento da proteção aos territórios
Débora Pinto
16/02/2023
Acusado de estimular a invasão e o garimpo em terras indígenas, o governo Bolsonaro também foi responsável por paralisar projetos e suspender repasses, mesmo com aumento do desmatamento e da invasão destes territórios. Um dos exemplos desta prática ocorreu com os povos diretamente impactados pela construção da BR 163, no trecho que corta o Mato Grosso e o Pará. Desde 2019, os repasses dos valores referentes à mitigação dos impactos da rodovia foram suspensos.
No seio do imbróglio estão as Terras Indígenas Baú, Mekrãgnoti e Panará, diretamente impactadas pela BR, e a área de licenciamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) do governo Bolsonaro. Por uma série de entraves burocráticos, os repasses do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI) relativos à mitigação dos danos de longo prazo foram suspensos e até o momento não houve uma resolução do impasse.
Sufocamento financeiro
Os subprogramas previstos no Termo de Cooperação entre a Funai e o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte) eram executados pelo Instituto Kabu, nas Terras Indígenas Baú e Menkragnoti, e pela Funai, por intermédio da CR Norte do Mato Grosso, em Colíder, Mato Grosso, na Terra Indígena Panará. Os subprogramas têm o objetivo de fortalecer os territórios e suas comunidades.
A elaboração e implementação dos planos de manejo a partir de oitivas realizadas junto aos indígenas, dando conta de ações como proteção e fiscalização, geração de alternativas econômicas sustentáveis, educação ambiental, entre outras, eram realizados pelo Instituto Kabu há dez anos sem que nenhuma irregularidade administrativa tenha sido apresentada.
Até que, em 2019, o plano apresentado para a renovação de mais um ciclo de cinco anos para a Funai passou por uma série de questionamentos, colocando em dúvida a sua legitimidade e travando o acesso aos recursos legalmente destinados à mitigação ambiental da BR-163.
De acordo com documentos reunidos por ((o))eco com o apoio de fontes locais, durante o processo se instaurou um labirinto administrativo, dificultado um consenso claro sobre o repasse dos recursos referentes à mitigação.
Dentre elas, está o envolvimento do Dnit, que realizou questionamentos orçamentários e solicitou informações fora de sua esfera de atuação, apresentou documentação sem os pareceres técnicos necessários, solicitando a partir desse método por alterações no PBA-CI apresentado pelo Instituto Kabu.
O ponto considerado como o mais ofensivo para as lideranças indígenas locais foi a nota técnica enviada em julho de 2020, que evidenciou não apenas um desconhecimento do caso por parte da Funai mas, também, um grande descaso em relação aos esforços em prol da resolução da questão.
"Foi de uma escolha deliberada que transformou a Funai em uma organização com a qual não conseguíamos mais estabelecer um diálogo propositivo, mesmo tomando todos os cuidados técnicos e legais.", explica Melillo Dinis, advogado do Instituto Kabu.
"É muito grave que a Funai tenha se transformado em uma instituição da qual foi necessário prescindir. E é evidente que a ascensão da extrema direita, com todo o seu modo de enxergar os territórios protegidos como fonte de recursos econômicos, gerou consequências drásticas no que se refere ao desmatamento. A área de licenciamento ambiental, que gerou as dificuldades na BR-163, é extremamente sensível neste contexto", explica a antropóloga Luísa Molina, do Instituto Socioambiental (ISA).
"É possível observar um modus operandi, um estrangulamento consistente nos recursos que seriam necessários para manter a integridade do território", completa o advogado Melillo Dinis.
Em 2020, ainda durante a pandemia, a falta de resolução do governo federal, a ausência de ações para a proteção efetiva dos territórios e o avanço dos invasores motivaram a ocupação da BR-163 pelos indígenas.
A principal reivindicação era a presença de membros do governo para conversarem com as lideranças locais, com o intuito de resolver os impasses e as incongruências das respostas técnicas apresentadas pela Funai.
O preço da estrada
A BR-163 liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA) e é uma das mais significativas obras viárias da Amazônia. Sua construção foi iniciada em 1971, seguindo o intento do governo militar à época de ocupar o território brasileiro. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), a partir de 2003, com a concretização do projeto de pavimentação da rodovia, o desmatamento e a grilagem ganharam ainda mais força na região.
No corredor do Xingu, entre os estados do Mato Grosso e Pará, na mesma região cortada pela BR-163, ficam as TIs Munduruku e Kayapó. Estudo realizado por pesquisadores do INPE com a Universidade do Sul do Alabama, nos Estados Unidos, apontam que a mineração em terras indígenas na Amazônia Legal cresceu 1.217% nos últimos 35 anos (1985-2020), passando de 7,45 km² para 102,16 km². Do total, cerca de 95% das áreas de garimpo ilegal estão concentradas justamente nas terras indígenas Yanomami, Kayapó e Munduruku.
Modus operandi
A Funai sob Bolsonaro, presidida por Marcelo Xavier, chegou a ser considerada nociva para a manutenção da integridade dos territórios e das populações que tinha por função defender. Relatos reunidos por ((o))eco dão conta de que os Kayapó que vivem nas TIs Baú e Menkrãgnoti vivenciam diariamente a pressão territorial através da ocupação fundiária e do desmatamento promovido para a produção de gado e soja, impulsionados pela BR-163.
O garimpo também voltou a crescer. Na Terra Indígena Baú, os garimpos que já estavam desativados voltaram a operar, com o uso de grandes dragas em barcaças que revolvem a lama do fundo dos rios, tornando a água turva e contaminando a fauna. De acordo com dados do INPE (Instituto de Pesquisas Espaciais), o garimpo nas TIs brasileiras aumentou 787% entre 2016 e 2022. A TI Baú voltou a figurar a lista das mais utilizadas para a atividade ilegal.
Em maio de 2022, um grupo de indígenas chegou a se organizar para localizar e retirar garimpeiros ilegais da TI Baú. Conforme reportou a agência Amazônia Real, os indígenas mantiveram nove garimpeiros presos dentro da TI, que é habitada por indígenas isolados Pu´rô, pelos Mebengokre Kayapó e os Mebêngôkre Kayapó Mekrãgnoti.
Futuro incerto
Em 2020, o Ministério Público de Altamira chegou a fixar o prazo de 15 dias para que o Dnit apresentasse planos de trabalho para cumprir o licenciamento ambiental do asfaltamento da BR-163 e promovesse a mitigação dos danos causados pelas obras aos povos indígenas Panará e Kayapó Mekrãgnotire.
Também foi estabelecido um prazo de cinco dias para que a Funai e o Dnit apresentassem garantia de que as ações de mitigação de danos não seriam paralisadas. O Ibama, por sua vez, foi proibido de emitir a licença de operação definitiva para a estrada enquanto todas as obrigações previstas no licenciamento ambiental não fossem cumpridas.
Em uma segunda liminar, em junho de 2021, o MPF de Altamira ressaltou que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) considerou os impactos negativos do empreendimento como de longo prazo, havendo tendência de aumento da pressão sobre terras indígenas a partir da pavimentação da rodovia, seja em razão do fluxo migratório ou de investimentos na região, seja em função da intensificação de conflitos entre indígenas e não-indígenas por territórios e recursos naturais.
A suspensão foi derrubada pelo TRF-1, que atendeu a um pedido da União e da Agência Nacional de Transportes (ANTT), sem a devida escuta aos povos indígenas. Com a instabilidade jurídica, apenas um consórcio, o Consórcio Via Brasil, se apresentou e venceu o leilão de concessão do estratégico trecho entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), às margens do rio Tapajós.
"Estamos transformando a logística do Brasil, estamos interiorizando a logística do Brasil, tornando nosso produtor mais competitivo. E esse é um movimento que não vai parar", afirmou o ministro da Infraestrutura, à época, Tarcísio Gomes de Freitas, logo após o anúncio do vencedor do leilão na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo.
Atual governador de São Paulo, Freitas, enquanto ministro de Bolsonaro, foi também um dos defensores da Ferrogrão, obra que representa outra ameaça aos territórios do Xingu, seguindo a mesma lógica de favorecimento à expansão do agronegócio. A ferrovia de 933 quilômetros é planejada para seguir o traçado da BR-163.
Recomeços
Embora as Terras Indígenas sejam importantes ferramentas de impedimento ao avanço indiscriminado da exploração e destruição dos recursos naturais do país, ocupando 13% de seu território, como observado na crise ambiental e humanitária na Terra Indígena Yanomami, a degradação ambiental pode atingir níveis alarmantes também dentro de seus limites.
Na tentativa de evitar esses agravamentos, um grupo de indígenas representantes do Instituto Kabu esteve em Brasília para um encontro com a presidenta da Funai, Joênia Wapichana, na semana passada. A Fundação foi transferida do Ministério da Justiça para o Ministério dos Povos Indígenas no novo governo.
Joênia Wapichana se comprometeu a buscar soluções para que as TIs impactadas pela BR-163 recebam os recursos a que têm direito, além de contarem com uma atuação mais atenciosa no combate aos ilícitos ambientais presentes na região, juntamente com outras instituições governamentais.
"Nós estamos nos organizando. Foram muitos anos de retrocesso que agora precisam ser revertidos", explicou a presidenta, deixando claro que o desafio de criar mecanismos efetivos de proteção das TIs demandará tempo.
Nesta segunda-feira (13) a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) apresentou ao Ministério dos Povos Indígenas uma petição alegando a inconstitucionalidade do Projeto de Lei no 191/2020, que regulamenta a exploração de recursos minerais em Terras Indígenas, em trâmite na Câmara dos Deputados. O documento aponta irregularidades do PL em relação a Tratados Internacionais e a Constituição Federal, recomendando, assim, a rejeição e arquivamento da proposta apresentada pelo Executivo no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
https://oeco.org.br/reportagens/terras-indigenas-impactadas-pela-br-163-estao-sem-acesso-a-recursos-de-mitigacao/
Estradas:BR-163
Related Protected Areas:
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