Garimpo e desnutrição dos Yanomami na perspectiva da pesca

Nexo - https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2023 - 18/05/2023
Garimpo e desnutrição dos Yanomami na perspectiva da pesca
É fundamental que políticas de conservação ambiental, de atenção aos povos indígenas e de fiscalização da mineração sejam retomadas o quanto antes por parte do governo brasileiro, assim como, a adoção de uma agenda ESG forte, por grandes corporações de joalherias e bancos, em atenção à origem do ouro que comercializam

Eduardo Bessa 18 mai 2023(atualizado 18 mai 2023 às 13h50)

Nos últimos meses, imagens de crianças Yanomami em grave estado de desnutrição têm assombrado o mundo. Um estudo sobre o crescimento do garimpo na Amazônia pode ajudar a entender os motivos.

A desnutrição infantil não é um problema recente entre os indígenas brasileiros, um levantamento nacional de saúde nutricional indígena em 2013 apontava 25,7% das crianças indígenas em subdesenvolvimento nutricional, mas altas taxas de mortalidade têm ocorrido recentemente, especialmente entre os Yanomami. A desnutrição é apontada como uma das causas de morte, acompanhada de diarreia, malária e pneumonia.

De acordo com imagens de satélite, desde 2019 o garimpo aumentou em área 26% na Amazônia Legal. Apenas dentro de território Yanomami este crescimento foi de 4,3 vezes, passando de 363 hectares em 2018 para 1556 em 2021. O número de Requisições de autorização para garimpo de ouro aumentou 83% no mesmo período, indicando a potencialidade de um aumento ainda maior do garimpo na região.

O ouro encontrado neste tipo de ambiente precisa ser separado do restante do solo por precipitação. Para isso os garimpeiros acrescentam um metal com alta afinidade pelo ouro, bastante pesado e que evapora quando aquecido, o mercúrio. O mercúrio usado no garimpo atinge a atmosfera, mas também é descartado nos rios, onde ele se torna disponível para ser absorvido por seres vivos por um processo chamado de metilação. Após ingerido, o mercúrio tem grande afinidade pelo sistema nervoso e sofre bioacumulação, se concentrando nos organismos no topo da cadeia alimentar. Espécies de topo incluem grandes peixes e os humanos.

Preocupar-se com a condição sanitária destes rios não tem um efeito apenas local. O mercúrio presente nos peixes dos igarapés Yanomami pode chegar à mesa de todo o mundo. Os peixes das nascentes da bacia amazônica são consumidos por espécies maiores de predadores, alguns deles de grande porte que realizam migrações de milhares de quilômetros, chegando a centros urbanos

Muitas espécies de peixes vivem nestes rios, já que a Amazônia sozinha contém 15% das espécies de peixes de água doce do mundo 1. Os peixes são a base da ingestão proteica entre muitas outras populações indígenas, mas por viverem em regiões mais altas, sem rios de grande volume, a caça provê a maior parte da proteína deste povo. Cerca de 2% das calorias e 8% das proteínas ingeridas por esta etnia derivam da pesca, que consome cerca de 20% de seu tempo 2. O desmatamento por toda a Amazônia e a competição por caça com madeireiros e garimpeiros pode estar aumentando o consumo de peixes pelos Yanomami.

Cerca de 15 espécies de peixes são consumidas pelos Yanomami, cinco delas se alimentam de itens no fundo dos córregos, onde podem ingerir maior quantidade de mercúrio. Outras duas espécies são predadores que podem bioacumular mercúrio. Apesar de um estudo dos anos 1990 3 ter encontrado pequenas quantidades de mercúrio entre estes indígenas, outra pesquisa de 2018 indica que o crescimento do garimpo nestas áreas fez a concentração de mercúrio aumentar de 1,4 para 15,1 μg/g.

A poluição por mercúrio tem efeitos diretos sobre a população de peixes. Este metal reduziu a produção de ovos nas fêmeas e interferiu no comportamento reprodutivo de algumas espécies diferentes daquelas encontradas entre os Yanomami. Mesmo entre aqueles indivíduos que chegaram a botar ovos, o mercúrio tem um efeito tóxico sobre o material genético, que torna menos provável a formação de um embrião saudável. A nutrição dos embriões que se formam também é afetada, já que o mercúrio se aloja no saco vitelínico dos ovos dos peixes, a estrutura que alimenta a larva.

Superada a reprodução, o mercúrio ainda tem efeitos que se estendem por toda a vida do peixe. Alguns animais têm sua locomoção afetada pelo mercúrio, seja tornando-os mais letárgicos, seja promovendo espasmos e movimentos erráticos. Em ambos os casos o resultado é uma redução na ingestão de alimento ou um gasto energético maior. A consequência é que haverá menos peixes para serem pescados pelos indígenas e os peixes que houver estarão contaminados.

O bem-estar de povos como os Yanomami tem um valor intrínseco em termos do direito à existência. Eles também têm um papel fundamental atuando como guardiões da floresta amazônica, que serve de habitat para este povo, mas que tem uma importância global em termos de regulação climática. Mas preocupar-se com a condição sanitária destes rios não tem um efeito apenas local.

O mercúrio presente nos peixes dos igarapés Yanomami pode chegar à mesa de todo o mundo. Os peixes das nascentes da bacia amazônica são consumidos por espécies maiores de predadores, alguns deles são predadores de grande porte que realizam migrações de milhares de quilômetros, chegando a centros urbanos como Manaus e Belém. É o caso de Brachyplatystoma rousseauxii, a dourada. Outros se alimentam no fundo dos rios e migram em menor escala, como Semaprochilodus insignis, o jaraqui. Estes animais carregam consigo o mercúrio das nascentes e têm grande procura em mercados das maiores cidades. As espécies sem apelo para o consumo local, como é o caso de alguns bagres em Manaus, ganham valor no comércio internacional 4. O turismo de pesca esportiva é outro caminho para levar os efeitos da contaminação por mercúrio para pontos distantes do globo.

Para evitar este cenário, é fundamental que as políticas de preservação ambiental, de atenção aos povos indígenas e de fiscalização da mineração sejam retomadas o quanto antes por parte do governo brasileiro. Em paralelo, uma agenda ESG forte pode ser adotada por grandes corporações de joalherias e bancos em atenção à origem do ouro que comercializam. A pressão pública tanto frente ao governo quanto às corporações será fundamental. O consumo de peixes migradores também deve ser considerado com cautela.

BIBLIOGRAFIA

Jézéquel, C., Tedesco, P. A., Bigorne, R., Maldonado-Ocampo, J. A., Ortega, H., Hidalgo, M., ... & Oberdorff, T. (2020). A database of freshwater fish species of the Amazon Basin. Scientific data, 7(1), 96.

Lizot, J. (1977). Population, resources and warfare among the Yanomami. Man, 497-517.

Eduardo Bessa é professor da Pós-Graduação em Ecologia da Universidade de Brasília e pesquisador visitante na Universidade de Princeton, desenvolvendo pesquisas sobre o comportamento de peixes amazônicos no Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva.

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PIB:Roraima/Mata

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