O Globo, Especial Dia da Amazônia, p. 4 - 05/09/2023
Petróleo, Belo Monte e rodovias: Povos da Amazônia se mobilizam para ter mais influência sobre obras de grande impacto ambiental
Articulações propõem alternativas a projetos e cobram cumprimento da lei que prevê consulta prévia às comunidades afetadas
Por Lucas Altino
05/09/2023
Por muitos anos, o dualismo entre desenvolvimento na Amazônia e proteção de povos tradicionais ignorou uma voz fundamental: a das populações locais. Como resultado, obras de grande porte tiveram efeitos colaterais danosos sobre o meio ambiente e a sociedade. Agora, porém, essas comunidades vêm conquistando mais espaço nas negociações sobre projetos de infraestrutura na região.
Na Bacia do Xingu, uma proposta dos indígenas enviada ao Ibama pede que a Usina de Belo Monte estabeleça um padrão de vazão de água que respeite os períodos e as áreas de reprodução dos peixes. No Mato Grosso e no Pará, aldeias kayapós lutam contra a duplicação da rodovia BR-163, que na década de 1970 promoveu a expulsão de vários indígenas. Enquanto isso, lideranças, em especial dos territórios no Amapá, cobram a efetiva consulta pública sobre o projeto de exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas.
- Avançamos bastante na tomada do protagonismo, mas ainda não é o ideal - afirma Kleber Karipuna, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que aponta um marco a partir de Belo Monte - Havia muito conflito nos protestos, com derrubada de torres de energia e fechamento de rodovias. Percebemos que precisávamos entender melhor os processos para atuar na defesa dos povos indígenas. Não apenas dizer não, mas qualificar esse não, buscando informação técnicas para potencializar desenvolvimento com respeito aos direitos sociais. Se não puder evitar o empreendimento, que se tenha diálogo, transparência e mitigação de danos.
O caminho não é fácil. Mesmo com a legislação nacional e tratados internacionais (em especial a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho) determinando a obrigatoriedade da consulta prévia às comunidades indígenas sobre decisões que podem afetá-las diretamente, o esforço ainda é grande para que suas vozes sejam ouvidas. Esse processo de consulta, por exemplo, não foi respeitado nos estudos sobre a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, acusam lideranças e organizações sociais envolvidas.
Comunidades indígenas querem novo hidrograma em Belo Monte
Agora, treze anos após o início das obras da hidrelétrica, que custou R$26 bilhões e é a quarta maior do mundo em capacidade instalada, indígenas lutam pela mudança do fluxo de vazão de água liberada pela usina, o chamado hidrograma. O Monitoramento Ambiental Territorial Independente da Volta Grande do Xingu (Mati-VGX), formado por pesquisadores independentes, indígenas e não indígenas, identificou que o atual hidrograma diminuiu significativamente a vazão de água em comparação com o fluxo natural do rio. O resultado foi a seca em regiões originalmente alagadas, o que atingiu populações de cágados e de peixes, como piracemas e carimatás, com consequências graves para os povos do Xingu.
No ano passado, o Mati elaborou a proposta do Hidrograma de Piracemas, com novos valores de vazão de água e os períodos do ano mais adequados para cada fluxo, respeitando o curso natural do rio e a necessidade para sobrevivência da fauna.
- Desde 2016 não há reprodução de piracemas, pois as fêmeas não conseguem desovar adequadamente. Foram toneladas de peixes mortos, o que é um risco à soberania alimentar dos povos ribeirinhas e indígenas do Xingu - explica Thais Mantovanelli, antropóloga do programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA). - E os pesquisadores identificam que estamos próximos a um ponto de não retorno (quando a situação passa a ser irreversível).
Com a construção de Belo Monte, houve dois eixos principais de impacto: a remoção das comunidades ribeirinhas na área do projeto e, após o início do funcionamento da usina, a seca perene por causa da mudança de vazão de água, o que atinge principalmente as Terras Indígenas (TIs) Paquiçamba, Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira/Bacajá. Em dezembro, período de enchente, os volumes liberados pela usina (média de 967 m3/s) foram três vezes menores ao proposto pelo Hidrograma Piracema e quatro vezes menores que a média histórica do rio Xingu, antes da construção de Belo Monte, identificou o Mati.
A ideia agora foi aliar conhecimento técnico de pesquisadores, na maioria de universidades públicas, e o conhecimento tradicional dos indígenas, que sabem quanta água precisa chegar em cada momento do ano para que a vida na região seja garantida, em especial os povos Juruna, Tracajás, Pacus, Curimatás, além dos ribeirinhos.
- A decisão da vazão não deve caber apenas ao empreendedor. Esses volumes de água precisam ser discutidos adequadamente, com participação das populações atingidas - diz Mantovanelli.- São vozes gritando desde 2009 e que exigem ser consideradas e ouvidas.
Protestos contra duplicação de rodovia
Uma das maiores rodovias do Brasil, a BR-163 liga Tenente Portela (RS) a Santarém (PA) nos seus mais de 3.500 quilômetros. Apesar da importância para o país, sua construção impacta a sobrevivência dos povos indígenas desde as remoções de comunidades tradicionais durante as obras na década de 70.
Nos últimos anos, é o projeto de duplicação do trecho entre o Mato Grosso e o Pará que vem gerando mobilização dos kayapós e os panarás.
Após diversos protestos, foi estipulado um Plano Básico Ambiental Indígena para mitigação dos impactos, suspenso em 2021 após briga judicial.
- Fizeram só uma audiência pública na época - lamenta Doto Takak Ire, presidente do Instituto Kabu, que atua nesses territórios. - O mais preocupante é a contaminação e a invasão, que vão aumentar. A plantação de soja já encostou nas Terras Indígenas, a partir da BR163.
Ire também denuncia a obra do ferrogrão, que liga Sinop (MT) a Itaituba (PA), em traçado semelhante ao da BR-163, mas que atravessaria o Parque Nacional do Jamanxim. Outro projeto que estaria ignorando a consulta obrigatória, diz Ire.
- Estão passando por cima de todo mundo. Caso não ouçam a gente, vamos criar uma aldeia no traçado da ferrovia. Se não tem consulta, não tem Ferrogrão - anuncia Ire. - Não estamos pedindo favor. Não somos contra o desenvolvimento do Brasil, mas eles têm que cumprir a lei.
Cobrança por discussões sobre projeto de exploração de petróleo
O projeto de exploração de petróleo na Margem Equatorial Brasileira, entre as costas do Amapá e do Rio Grande do Norte, é outro ponto de discórdia entre lideranças indígenas. Segundo Kleber Karipuna, na única vez que uma comitiva da Petrobrás esteve em contato com as comunidades locais, o discurso se limitou às promessas positivas, como geração de emprego e renda. Em julho, um grupo com 12 lideranças foi a Brasília para audiências com a Funai, Ministério dos Povos Indígenas, Agência Nacional de Petróleo e Ibama.
- A Petrobrás deveria ter envolvido a comunidade desde o início desse processo. Não somos contra o desenvolvimento, mas sim contra a forma como esses projetos chegam nos territórios - avalia Karipuna, cujo povo de origem seria um dos diretamente impactados, e que acrescenta que as denúncias internacionais e a formação universitária de jovens lideranças indígenas vêm contribuindo para recentes mobilizações. - Até o setor privado começou a se policiar mais.
Ainda que o poço de petróleo fique cerca de 150 quilômetros distantes da costa, os indígenas lembram que as correntes marítimas poderiam ser suficientes para levar óleo às áreas de pesca. Um acidente poderia afetar cerca de 2 mil pessoas entre as Terras Indígenas Karipuna, Maruono e Palipu.
Órgãos se manifestam
Procurada, a Petrobras diz que o processo de licenciamento vem proporcionando "amplo diálogo com a sociedade", com 87 reuniões setoriais e três audiências públicas. A estatal destacou que houve reuniões informativas em 20 municípios do Amapá e do Pará e que um encontro em fevereiro atendeu às solicitações do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque. Em junho, a Petrobras diz que houve outra reunião com lideranças indígenas e quilombolas, mediada pelo Ministério Público Federal do Amapá e que o protocolo de consulta será respeitado.
Sobre Belo Monte, a concessionária Norte Energia, responsável pela operação, afirmou que o hidrograma foi definido pelo governo federal no leilão, com base em "estudos técnicos e ecológicos". A concessionária acrescentou que os impactos ambientais gerados vêm sendo menores que os previstos, inclusive para "velocidade da água e rendimento da pesca", e que nenhuma comunidade indígena precisou ser removida. Já o Ibama disse que o Hidrograma Piracema "não incorpora informações suficientes para a devida avaliação técnica" e que está avaliando uma nova proposta a partir de estudos solicitados.
A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) respondeu que a concessão da BR-163 e do Ferrogrão passaram por processos de Participação e Controle Social, com audiências públicas. Sobre o segundo projeto, que está paralisado pela justiça, a ANTT ressaltou a "necessidade de ajustes nas análises ambientais e consultas indígenas em coordenação com os órgãos licenciadores".
O Globo, 05/09/2023, Especial Dia da Amazônia, p. 4
https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia/2023/09/05/petroleo-belo-monte-e-rodovias-povos-da-amazonia-se-mobilizam-para-ter-mais-influencia-sobre-obras-de-grande-impacto-ambiental.ghtml
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