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Os 50 anos de flagelo e salvação para um povo indígena que retomou sua história
Isolados até 1973, os Panará foram expulsos de sua região na Amazônia e quase dizimados pelas obras da BR-163, mas reconquistaram território: "Futuro do Brasil"
Por William Helal Filho
05/09/2023
O sertanista Apoena Meirelles se aproximou da aldeia chamando os moradores na língua deles. Rapidamente, várias pessoas saíram de dentro de suas casas. Um indígena idoso, com uma borduna na mão para se defender de eventuais invasores, desfez a apreensão do rosto quando reconheceu o visitante. Meirelles era parceiro dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas, que haviam liderado o primeiro contato oficial dos homens brancos com os Panará, em fevereiro de 1973.
Seis meses depois, o sertanista estava de novo na aldeia, no Vale do Rio Peixoto de Azevedo, no Norte do Mato Grosso, para seguir com o trabalho de tentar proteger a etnia, cujas terras vinham sendo varadas pela construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém), durante a ditadura militar. Àquela altura, os indígenas já haviam identificado Meirelles e os demais como amigos, mas ainda temiam o perigo que poderia chegar com o que os homens brancos insistiam em chamar de "progresso".
As obras da estrada marcaram o início de uma tragédia na história daquele povo amazônico. Nestes 50 anos de proximidade com a sociedade ocidental, os Panará quase foram dizimados por epidemias de doenças que eles desconheciam e pela remoção forçada de suas terras para o Parque Indígena do Xingu. Mas os indígenas reconquistaram seu território original e, hoje, celebram o crescimento de sua população em meio à retomada de suas tradições.
- Muitos de nosso povo morreram de doenças trazidas pelo homem branco durante a construção da estrada, até que fomos obrigados a sair de nosso território original para sobreviver - conta o líder indígena Kunity Panará, de 38 anos, comunicador da Rede Xingu +, repetindo a história passada a ele pelos mais velhos. - Mas nunca nos adaptamos à vida fora de nossas terras. Por isso, o meu povo lutou até o fim para retornar.
Desde os anos 1950, já se sabia da existência dos Panará na Serra do Cachimbo. Na época, eles eram chamados de "krain-a-kore", denominação dada por outra etnia local, e constantemente descritos, equivocadamente, como "os índios gigantes da Amazônia". Os irmãos Villas Bôas lutavam para que o povo fosse mantido isolado, mas, no fim dos anos 1960, receberam da ditadura militar a missão de travar o contato oficial, uma vez que a BR-163 se aproximava, perigosamente, das aldeias.
Temia-se confrontos e a contaminação do povo local por doenças levadas pelos peões da obra. Entretanto, sempre que uma expedição de contato se aproximava, os Panará queimavam a aldeia onde estavam e se embrenhavam ainda mais na mata. Foram anos até que, em fevereiro de 1973, Cláudio e Orlando estabeleceram diálogo com a etnia, às margens do Rio Braço Norte, onde os grupos trocaram acenos, presentes e sorrisos, na presença do fotógrafo Pedro Martinelli, do GLOBO.
- Mas o governo não havia esperado esse contato oficial para seguir com as obras e, àquela altura, a estrada já estava muito perto das aldeias, com centenas de peões trabalhando - conta o indigenista André Villas Bôas, sócio-fundador do Instituto SocioAmbiental (ISA). - Os contatos com os operários aconteciam de forma indiscriminada. A Funai não tinha controle nenhum. Houve uma mortandade absurda, e a solução encontrada foi levar todos os Panará para o Xingu. A remoção era um atestado de incompetência do governo militar.
Àquela época, a população panará estava em extrema fragilidade. Em 1974, diversos grupos de indígenas do povo foram vistos pedindo esmola às margens da estrada que levou toda aquela desgraça até eles. Quando aconteceu a remoção para o Xingu, por meio de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), restavam pouco mais de 70 indivíduos, dos mais de 400 estimados anteriormente. Mas a medida não significou a salvação da etnia.
Os Panará não se adaptaram ao novo endereço. Eles não conheciam as condições da terra local, nem a caça. Seus cultivos não cresciam da mesma forma, e havia aldeias de outras etnias na região. Eles chegaram a ser instalados perto dos Kayapó, seus rivais históricos. Era uma área do parque com comida mais abundante, mas o estado de hostilidade entre os dois povos deixou a situação insustentável, e os recém-chegados foram, de novo, reassentados.
Com o tempo, aos poucos, os Panará chegaram a uma população de mais de 130 pessoas no Xingu. Ainda assim, eram um povo "pequeno" perto de outras etnias do parque. O sonho de voltar ao antigo território não havia sido abandonado, mas eles ouviam descrições terríveis sobre as condições de sua região original. Dizia-se que "o homem branco havia comido" as suas terras. Era uma referência óbvia ao desmatamento provocado pelo "progresso" que os havia expulso de lá.
Em 1991, um grupo de líderes panarás, acompanhados de homens brancos, foi de ônibus até Matupá, município fundado três anos antes, na beira da BR-163. No entorno, os indígenas choraram ao constatar os estragos em seu mundo. Garimpos e fazendas haviam derrubado a mata onde eles viviam. Os rios estavam poluídos e assoreados. Durante um sobrevoo, os indígenas comprovaram a destruição de seis aldeias, mas identificaram uma área, perto da Serra do Cachimbo, nas cabeceiras do Rio Iriri, coberta por floresta virgem, e decidiram reivindicá-la junto à Funai.
Àquela altura, o regime militar já havia terminado, e a Constituição de 1988 reconhecera o direito dos povos originários a suas terras tradicionais, em seu artigo 231. Com base na legislação que marcou o nascimento da democracia brasileira, a Funai concluiu, em 1994, o trabalho de delimitar a Terra Indígena Panará, em uma área que pertencia à União. Livre, portanto, de pendengas judiciais. Nos anos seguintes, os membros da etnia foram levados à reserva. Em 1997, a Justiça condenou o Estado a indenizá-los em quatro mil salários mínimos devido à mortandade causada pela BR-163.
- O retorno fez bem aos Panará. Eles eram 170 pessoas e, agora, são mais de 700 distribuídas por seis aldeias. Trata-se de um povo que ressurgiu depois de ter sido quase dizimado. São parte do futuro do Brasil - celebra André Villas Bôas, que lhes deu apoio ao longo de todo o processo de retorno. -Apenas os coloquei em contato com a Funai, ajudei com a parte formal do retorno e da demarcação da reserva. O que proporcionou a volta desse povo foi a determinação inabalável de suas lideranças.
Em outubro de 2022, uma grande festa, com dança, cantos, corrida de tora e disputa de arco e flecha celebrou os 25 anos da reconquista do território. Apesar do orgulho de sua trajetória, e de ter readquirido as condições para prosperar enquanto um povo amazônico, eles não se sentem livres das ameaças que pairam sobre as terras indígenas, como a tese do marco temporal. Em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o argumento sustenta que uma etnia só tem direito a seu território se o estivesse ocupando em 1988. Algo que não se respalda na Constituição e que coloca em risco diversas terras em processo de demarcação.
- Sinto raiva quando penso nessa proposta. Nossa história é de sofrimento e luta para reconquistar as nossas terras. Muitos de nós morremos ao longo desse percurso - diz Kunity Panará. - Fomos expulsos daqui nos anos 1970, mas conseguimos retornar. Quantos povos sofreram da mesma forma e estão até hoje sem suas terras ou estão sendo atacados por invasores?
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