Mesmo com vitória no STF sobre o Marco Temporal, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrenta os impactos de uma enchente sem precedentes, enquanto luta pela demarcação de suas terras
Fábio Bispo - Jornalista freelancer Equipe ISA - Direto da redação
Quarta-feira, 22 de Novembro de 2023 às 16:34 46min de leitura
Na noite de 13 de outubro de 2023, o povo Laklãnõ-Xokleng enfrentou uma tragédia em seu território: uma enchente sem precedentes, causada pelo fechamento, com uso de força policial, das comportas do reservatório da Barragem Norte. A ordem foi dada pelo governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL).
Mais de 300 pessoas tiveram de ser levadas às pressas para uma área segura, próxima à barragem, onde armaram barracas enquanto viam suas casas sendo invadidas pelas águas e suas comunidades isoladas - uma saga que se repete desde a década de 1970, a cada nova enchente.
Dessa vez, os Xokleng que resistiram ao fechamento das comportas também foram alvo de uma truculenta operação da Polícia Militar de Santa Catarina, com tiros, gás de pimenta e bombas de efeito moral. A operação é objeto de uma apuração por parte do Ministério Público Federal (MPF). Uma das vítimas foi Anergo Camlem, indígena de 29 anos, que passou por cirurgia para retirar um projétil alojado no braço.
"O que fizeram e estão fazendo com o nosso povo é desumano, humilhante. Lembro como se fosse hoje, do meu pai sentado com o prefeito e os secretários falando que essa barragem era um absurdo, que iria acabar com a vida dos índios", rememora Iraci Nunc-Nfôonro, 66, da aldeia Toldo, que ficou totalmente isolada. Sem banheiro ou água encanada, como todos os Xokleng acampados emergencialmente na área próxima à barragem - que forma a aldeia Plipatól - Iraci espera a água baixar sob uma barraca de lona.
No dia 7 de outubro, a Justiça Federal já havia determinado que o governo do Estado atendesse as comunidades indígenas com cestas básicas, água potável, barcos, atendimento de saúde e um plano de construção de moradias emergenciais, mas segundo a reportagem do ISA constatou em campo, as medidas não foram cumpridas.
Segundo os indígenas, na aldeia Figueira todas as moradias estão condenadas e 30 famílias ficaram desabrigadas. De acordo com os relatos, quando o rio enche a terra fica mole, e quando baixa provoca erosões - um processo que se repete a cada cheia e que coloca novas áreas em risco.
As cestas básicas que chegaram estavam incompletas. Mães relataram falta de fraldas para crianças e de roupas. Renato Covika Camlem, 57, diz que a comunidade está sendo engolida pelo rio e que as autoridades não tomam providências. "Todas as nossas casas estão condenadas, uma parte do prédio da escola desabou e as áreas de roça e para criação de animais estão debaixo d'água", afirmou ao ISA Covika Camlem.
Nas últimas semanas, a missão da vice-cacica da TI, Fabiana Patte dos Santos, 40, tem sido a busca para assistência das famílias que estão no abrigo improvisado na área da barragem. "Eu sei que é muito importante a nossa luta a longo prazo, para demarcação definitiva de nossas terras, mas também precisamos garantir a dignidade para essas famílias hoje. Não é possível que elas continuem nessa situação, sem banheiro, sem acesso à água potável", afirma.
Os indígenas ainda reclamam da falta de assistência à saúde e que o polo de atendimento da Saúde Indígena está fora do território, inacessível a muitos deles.
A barragem estava há mais de 14 anos sem operação, sem qualquer tipo de manutenção e, já em 2021, um laudo apontava falhas e problemas na estrutura, expondo não apenas o descaso com os indígenas, mas também o descumprimento de uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA), que determina a inspeção regular de barragens no Brasil.
Além disso, o governo catarinense enviou laudos antigos e documentos que não foram aceitos pela Justiça para assegurar que a estrutura da barragem estava em boas condições. Apenas um barco foi disponibilizado para atender todas as comunidades, o que, segundo os indígenas, era insuficiente para a demanda, e que só operava em horário comercial, das 8h às 18h. O envio de cestas básicas e água potável também não estava regular, e em muitas comunidades faltavam itens básicos para alimentação.
Novas informações foram solicitadas ao governo do estado, mas segundo a assessoria do MPF, ainda não foram respondidas. A reportagem também questionou o governo catarinense sobre a execução do plano de emergência e sobre as indenizações ao povo Xokleng por causa dos impactos da barragem.
Em resposta, o governo de Santa Catarina afirma que "busca o diálogo com a comunidade indígena para retomar as operações na Barragem Norte", que se comprometeu em realizar ações na comunidade para voltar a operar a estrutura e que tem cumprido com ações emergenciais.
No entanto, esta semana, o governador Jorginho Mello (PL) recusou uma visita da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para tratar da crise humanitária vivida pelos Xokleng. Mais de 300 pessoas na comunidade indígenas denunciam estarem sem acesso à água potável e sem instalações sanitárias no abrigo onde estão alojadas.
Governo federal aprova Reserva Indígena
Para mitigar os impactos da tragédia, o governo federal aprovou ainda em outubro a Reserva Indígena Barragem Norte, com 860 hectares de extensão, onde os Xokleng encontraram um local seguro para se abrigar da enchente.
Em visita ao território indígena, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, ouvia as súplicas do povo: "Eu vim aqui trazer minha solidariedade e trazer respostas para essas famílias que aguardam há anos a regularização desta área da União. É uma área para que eles possam se manter, erguerem moradia e terem acesso à políticas públicas", explicou Joenia, em entrevista ao ISA.
Antes do ato de Joenia, a área da barragem estava em poder do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), órgão que construiu a barragem e transferiu sua operação ao governo catarinense. O local é um dos poucos no território que está seguro durante os períodos de chuvas e cheias e agora se torna oficialmente de usufruto exclusivo dos indígenas.
Setembrino Camlem, que é cacique-geral da área, comemora a medida: "Foi bom garantir essa área para nossas comunidades, porque a verdade é que nós já estamos aqui há anos nesse movimento. Agora podemos ficar mais tranquilos e os parentes podem construir suas casas sem os riscos de novas enchentes. É um passo importante para o reconhecimento da nossa luta em busca da demarcação de todo nosso território".
Perseguição histórica
Originários de uma vasta região que hoje compreende os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, os Xokleng enfrentam uma histórica perseguição desde o século XIX, quando o processo de colonização europeia tomou forma na ocupação de terras no sul do Brasil, e que deixou esse povo constrito entre as montanhas do Vale do Rio Itajaí-açu. Conforme consta no laudo de perícia da Justiça no processo de demarcação da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, o território xokleng é ocupado há "pelo menos cinco mil anos".
A demarcação definitiva dos 37 mil hectares que compõem o seu território tradicional é, hoje, a principal demanda dos Laklãnõ-Xokleng na luta por direitos territoriais. O caso da TI Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, ganhou holofotes com o julgamento da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF).
No último dia 21 de setembro, o plenário da corte decidiu em favor dos Xokleng, negando que a demarcação como Terra Indígena possa ser condicionada à presença na terra na data da promulgação da Constituição Federal - afastando o principal argumento do recurso movido pelo órgão ambiental de Santa Catarina, a Fatma.
Leia: STF enterra tese do 'marco temporal' das demarcações de Terras Indígenas
A decisão do Supremo abriu caminho para a demarcação definitiva da TI Ibirama-La Klãnõ, esperança desse povo em favor de um modo de vida diferente de tudo que passaram até aqui pelas mãos dos não indígenas.
Uma trajetória que teve início com a violenta matança promovida pelo governo e colonizadores no final do século XIX e início do século XX, quando bugreiros foram contratados para dizimar os indígenas, então pejorativamente chamados de "bugres". Para escapar da morte, os indígenas ficaram quase 40 anos confinados em isolamento forçado, resultado de uma iniciativa do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1914 .
Os ciclos de violência nunca cessaram, e até hoje se atualizam, como é o caso da Barragem Norte, que impacta a comunidade indígena desde a década de 1970.
"Eu acredito que a barragem é um simbolismo, é uma forma de o Estado demonstrar seu controle sobre nossas vidas, é uma forma de apagamento da nossa história e uma forma de violência. Quando ela foi construída aqui, de uma maneira mais indireta, foi pensando em nos matar", desabafa Txulunh Gakran, 26, liderança da Juventude Xokleng, uma organização que busca a reafirmação do direito originário dos Laklãnõ-Xokleng.
"A barragem representa um projeto de assassinato a longo prazo. Como nos dias de hoje não é mais permitido contratar os bugreiros, de certa forma, ela está permanentemente nos matando aos poucos", afirma Txulunh. "Nós estamos sofrendo diretamente essa guerra que está travada sobre a questão climática há muito mais tempo do que as pessoas imaginam. Se fala muito que populações serão afetadas e nós estamos vivendo isso agora. E a gente precisou se adaptar a todas essas violências e mudanças que o estado impôs para nossas vidas", reclama a jovem.
Iraci foi cacica-geral de 2000 a 2002. Na época, denunciou na tribuna da Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina que as terras dos povos indígenas estavam sendo vendidas e cobrou respostas sobre a demarcação do território. Essa é uma luta que Iraci herdou dos mais velhos, que também tinham no sangue - e na memória - a força dos parentes que resistiram desde os primeiros contatos com os colonizadores.
"Gostaria de fazer aqui um apelo ao Sr. Ministro para que assine aquele documento que ele tem na sua mesa e dê a terra do Xokleng, pois é dele desde 1926! Alguém a vendeu e nós não temos nada com isso!", denunciou, como mostram registros históricos da Assembleia, sem nunca receber as respostas.
Lino Nunc-Nfôonro, pai da ex-cacica, foi o primeiro professor indígena da aldeia e até o fim da vida lutou contra a barragem e a opressão contra os Xokleng. "Ele não viu, mas eu quero ver. Eu luto para que possamos um dia ter nossos direitos reconhecidos", conta Iraci.
"A barragem tá aqui ela não vai sair daqui. O sofrimento, a perda, a vida, não tem volta", diz Iraci apontando, como solução, um pagamento contínuo por parte do governo aos indígenas: "porque o nosso sofrimento é contínuo", completa. Um dos pedidos da comunidade no acordo firmado em 2015 prevê uma compensação financeira pelos impactos da barragem, mas a forma deste pagamento até hoje não foi definida.
Mais de 20 anos depois da denúncia, Iraci presenciou a presidenta da Funai assinando a transferência da área de 860 hectares no entorno da barragem para os indígenas. Ainda que a Reserva Indígena Barragem Norte tenha uma extensão pequena se comparada com os 37 mil hectares da TI Ibirama-La Klãnõ à espera de homologação, o gesto de Joenia Wapichana, sem alardes e sem cerimônia, teve um papel importante para assegurar aos indígenas uma terra até que a demarcação de seu território seja concluída.
O Estado e os interesses dos invasores
Para a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), o processo de demarcação do território xokleng representa muito mais do que a demarcação ou revisão de limites de uma Terra Indígena. É também um reconhecimento dos seguidos ciclos de violências praticados contra os Xokleng com a participação direta do Estado brasileiro.
"Os Xokleng não estavam ocupando as suas terras porque tinham um impedimento real, gerado por todas as circunstâncias que marcaram sua história naquele território. Essa terra é absolutamente necessária para uma população que sofreu com a construção de uma barragem no seu território e que deixa aldeias inacessíveis, eles precisam de uma ação humanitária e que garanta a sua subsistência a médio e longo prazo", afirma a advogada.
A decisão do STF que afastou a tese do Marco Temporal com base na ação da TI Ibirama-La Klãnõ é considerada como uma das mais importantes para os direitos indígenas na história recente.
Mas a demarcação definitiva ainda depende de uma ação efetiva do governo federal para a homologação e desintrusão da terra, que foi declarada como de posse dos Xokleng em 2001. Isso permitirá que os indígenas retomem sua terra e construam suas vidas em locais mais seguros, longe das margens e das enchentes do rio.
Uma disputa que precisa desmobilizar agentes locais, como políticos, fazendeiros e demais invasores, que mesmo após a decisão do STF não desistem das investidas contra os indígenas. As comunidades continuam recebendo ameaças de agricultores que ocupam áreas reivindicadas historicamente pelos Xokleng, como denunciou o cacique Tucun Gakran.
Segundo informações do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, existem aproximadamente 490 ocupações não indígenas dentro do território reconhecido como de uso tradicional, com 257 imóveis titulados e 180 posses. As maiores ameaças ao território são o roubo de madeira, plantações de fumo com alto uso de agrotóxicos e as invasões por fazendeiros, posseiros e grileiros, e que seriam os principais beneficiados com uma eventual aprovação da tese do Marco Temporal.
Para a advogada Juliana de Paula Batista, os argumentos usados na ação demonstram mais uma vez quais interesses o Estado quer defender. Um deles é o de que a demarcação interferiria na Reserva Biológica (Rebio) do Sassafrás, criada em 1977. Segundo a advogada do ISA, o argumento seria apenas um pretexto para proteger as posses e interesses que existem sobre a terra dos Xokleng.
"É uma ação onde o Estado está litigando em nome de terceiros. Só que ele não tem essa competência para defender a propriedade privada em detrimento do direito originário", afirma a advogada, que acompanhou o julgamento no STF do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365.
Governador de SC garantiu festa alemã fechando comportas à força
Imposta sem qualquer tipo de diálogo, consulta ou contrapartidas justas, a construção da Barragem Norte foi uma demanda de empresários da região do Vale do Itajaí que, nas décadas de 1950 e 1960, pediram projetos para resolver problemas das chuvas. A obra foi iniciada em 1976, durante a Ditadura empresarial-militar, e durou quase 20 anos, mas nunca foi de fato concluída.
Ao longo de quase meio século, essa estrutura se transformou em uma dolorosa cicatriz na vida e na cultura dos Xokleng para que o Estado catarinense pudesse diminuir a incidência de enchentes em cidades construídas em áreas de alagamento natural dos rios do Vale do Itajaí.
Com apoio de empresários, imprensa e outros atores interessados no apagamento do território dos Xokleng, as obras da barragem eram anunciadas como um grande plano para contenção de catástrofes climáticas. No entanto, apenas não indígenas foram indenizados pelos impactos da obra, e mesmo assim, muitos nunca deixaram a área.
Historicamente - e estrategicamente -, o governo do estado de Santa Catarina, que é o responsável pela operação da barragem, tem negociado com indígenas Xokleng justamente nos momentos críticos de chuvas para o fechamento das comportas. E esse ano não foi diferente.
A previsão de um El Niño levou o governo a buscar um acordo que deveria ocorrer mediante melhorias de infraestrutura, inclusive com um cronograma para construção de casas. E, mais uma vez, o governo catarinense não cumpriu o acordo e fez o fechamento das comportas à força, com violência policial.
A medida tinha como objetivo proteger as cidades abaixo da barragem, principalmente Blumenau, que nesse mesmo período realizava a Oktoberfest, maior festa alemã fora da Alemanha. A cidade é considerada a mais bem sucedida das colônias que, no início do século passado, forçaram o contato com os Xokleng da região. Na internet, o governador justificou a decisão: "Nosso maior bem é a vida dos catarinenses. E faremos todo o possível para protegê-los", escreveu.
A primeira enchente registrada no território dos Xokleng ocorreu em 1978, durante o processo de construção da barragem, e condenou toda a obra feita até então. Mas a construção foi retomada e as consecutivas enchentes também levaram ao deslocamento forçado dos indígenas pelo território, além de as seguidas mobilizações para denunciar o descaso.
Em 1981, os indígenas chegaram a prender um funcionário da Funai cobrando as indenizações das suas terras por causa dos impactos causados pela barragem. Em 17 de julho daquele ano, o governo federal assumiu através do Convênio 029/81, entre DNOS e a Funai, a dívida e a responsabilidade em pagar as indenizações dos danos causados pela Barragem Norte à comunidade indígena. Mas este convênio nunca foi totalmente executado.
Os protestos e as promessas se repetem ao longo de todos esses anos, lembra o cacique Setembrino. "Em 1990, quando os caminhões estavam deixando o canteiro de obras, nós impedimos que eles saíssem sem cumprirem a indenização pelas nossas terras. Ficamos acampados por dois anos, e conseguimos um acordo para construção de 188 casas. O governo do estado nos pagou para ir embora daqui. Não era nenhum pagamento de indenização nem nada, era para irmos embora mesmo", disse.
As 188 casas prometidas em 1992 só foram concluídas em 2008, e 16 anos depois, com as consecutivas enchentes que atingiram o território, "todas elas estão condenadas", avisa Setembrino. Parte dessas moradias estão oficialmente interditadas pela Defesa Civil, mas continuam sendo ocupadas pelos indígenas por ainda não poderem acessar as partes mais seguras do território.
Os Xokleng voltariam a ocupar a Barragem Norte pelos mesmos motivos em 1997, quando tomaram o controle da casa de máquinas; e em 2001 e 2005. Em 2014, quando sete das oito aldeias foram mais uma vez alagadas, a barragem mais uma vez serviu de refúgio.
Em 18 de abril de 2015, os indígenas reuniram cerca de 300 pessoas para bloquear o acesso dos operários para a operação da Barragem Norte. O sistema para prevenção de cheias com o fechamento de comportas ficaria parado, segundo os Laklãnõ-Xokleng, até que houvesse uma solução às reivindicações da comunidade: demarcação das terras e a construção de casas fora da área de alagamento da barragem.
Naquele ano, com previsão de El Niño, a Defesa Civil de Santa Catarina propôs um acordo para garantir acesso dos técnicos à estrutura e evitar enchentes rio abaixo.
"E em mais um acordo se previa a construção de casas, estradas, remoção das famílias, pontes, rede de energia, levantamento do impacto ambiental, uma ponte que liga a aldeia Piplatól com a aldeia Palmeira e mais duas pontes pênseis. Nada disso foi feito", aponta Setembrino.
A histórica resistência dos Laklãnõ-Xokleng
Até o século XVIII, segundo o antropólogo Nuno Nunes, três subgrupos do povo Xokleng ocupavam uma ampla faixa territorial nos três estados do sul do país. Com a instalação dos núcleos coloniais europeus, tornaram-se frequentes os conflitos e a resistência dos Xokleng.
Nunes, que há mais de 20 anos acompanha a história dos Xokleng, diz que o processo de violência contra os indígenas tem sido permanente e desde o início envolveu órgãos e decisões governamentais.
"O que a gente vê é que os Xokleng estão há mais de 100 anos sendo perseguidos por conta da geopolítica onde eles vivem. É o vale justamente onde foram colocadas as colônias para atrair os alemães. E esse histórico todo vem se repetindo ao longo dos anos. A Barragem Norte é mais um episódio de proteção das colônias, que hoje são municípios do Vale do Itajaí", explica o antropólogo.
Agentes de diferentes esferas estatais estiveram presentes em todos os momentos de pressão e opressão dos Xokleng. Foi o Estado que promoveu a colonização da região, com a entrega de terras ocupadas pelos indígenas às companhias colonizadoras; foi o estado que autorizou a empresa norte americana Brazil Railway Company a construir da estrada de ferro que ligava a cidade de São Paulo a Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e que culminou na Guerra do Contestado (1912-1916). Criada em 1906 por Percival Farquhar, a concessão da estrada destinou 15 quilômetros de faixa de terra de cada lado da ferrovia para extração de madeira, reduzindo a oferta de pinhões das araucárias e de outros alimentos comuns entre as comunidades indígenas.
Foi o Estado brasileiro que promoveu o confinamento dos indígenas pelo SPI por quase quatro décadas, no chamado processo de "pacificação", que não foi nada pacífico. Foi o governo que projetou e construiu a barragem e quem também deu e dá ordens para fechamento de comportas.
Todas essas medidas afetaram profundamente o modo de vida e a autonomia territorial dos Xokleng. "É um histórico de desastres e ataques que não tem muitos precedentes na história do Brasil. Desde 1910, quando criaram o SPI, já foi para mediar o conflito de terras envolvendo os Laklãnõ, que estavam tendo suas terras invadidas pela Colônia Hanseática, e eles faziam as resistências que os colonos chamavam de ataques", explica Nunes.
Em 1914, depois de anos sendo caçados e mortos por bugreiros contratados pelo governo e por companhias de colonização, os Xokleng praticamente se entregaram ao SPI para não serem completamente dizimados.
Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, filho do oficial austríaco Miguel Hörhann e sobrinho-bisneto do monarquista Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, foi o responsável pelo posto do SPI que atraiu os Xokleng em 1914 e confinou os indígenas numa área de 30 mil hectares. Em 1926, a área dos indígenas foi reduzida para 20 mil hectares e em 1952 para 14 mil hectares.
Setembrino conta que o seu avô, Womblé, foi quem fez o primeiro contato com não indígenas, junto com seu parceiro Kóvi. "Eles vieram para margem do rio e decidiram fazer o contato, depois de anos sendo perseguidos", disse o cacique que é descendente direto dos Camlem, um clã laklãnõ de rezadores e curadores que são os que sabem interpretar sonhos e falas dos pássaros. "Hoje, nós somos os últimos Laklãnõ do Brasil", diz o cacique.
Enquanto os indígenas permaneciam aldeados pelo SPI, as colônias alemãs chegaram a receber 600 mil hectares de terras em acordos com o governo de Santa Catarina e consolidaram áreas sobre o território indígena. A principal delas é a Colônia Hansa Hammonia, que tem origem na Companhia Colonizadora Hanseática Ltda., de Hamburgo na Alemanha, e se sobrepõe à Terra Indígena.
Já nesse período, empresas madeireiras começaram a explorar os limites do território e a assentar colonos ali. Por mais de 30 anos, Hoerhann manteve os Xokleng confinados ao Posto Indígena Duque de Caxias, onde os indígenas enfrentaram a violência institucionalizada e perderam grande parte da sua população para epidemias. Gripe, sarampo e varíola foram as mais comuns. Dos 400 indivíduos atraídos em 1914, restavam apenas 106 em 1932.
Mesmo assim, os relatórios do agente do SPI apontavam que os indígenas não ficaram restritos ao posto delimitado. Em relatório encaminhado em 1928 à Diretoria do SPI, Hoerhann afirma que "os índios botocudos deste Posto, sempre [...] sahem em suas excursões ou para caçar ou para colher pinhões nos pinheirais do alto da serra, na região dos campos (sic)".
Hoerhann foi acusado de se apropriar de parte das terras dos indígenas e de negociar parcelas do território com a empresa madeireira Leopoldo Zarling. Em 1954, Hoerhann deixou o posto do SPI acusado de participar da morte do indígena Brasílio Priprá.
Durante o período que Hoerhann comandou o SPI, as lideranças nas colônias alemãs assumiram fortemente o partido nazista, com planos de dominar a região. A colônia Hansa-Hamônia, sobreposta ao território xokleng, era a que tinha mais filiados ao partido em Santa Catarina: 2.475, segundo apontou Antônio de Lara Ribas em seus relatórios de investigação e que estão compilados no livro "O Punhal Nazista No Coração do Brasil" (1943).
A passagem de Hoerhann pelo território criou raízes profundas com diferentes sentimentos e efeitos na vida dos Xokleng. Mas sua saída tampouco resultou no fim das opressões.
Em 1963, uma invasão organizada por empresários com centenas de famílias camponesas tomou os últimos 15 mil hectares que restaram aos Xokleng até então. Sem apoio, as lideranças se deslocaram a pé até a capital Florianópolis para denunciar e cobrar uma solução.
Depois de Hoerhann, os madeireiros e outros invasores pressionaram ainda mais as terras dos Laklãnõ-Xokleng, até que em 1975 é anunciada a construção da Barragem Norte. Em 1991, os indígenas fizeram a retomada de parte das terras que foram transferidas para Hoerhann, onde hoje está a aldeia Palmeira.
No livro "Os índios Xokleng - memória visual", o antropólogo Silvio Coelho, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um dos maiores pesquisadores do povo Xokleng, conta que o mito do "vazio demográfico" foi utilizado, por décadas, como argumento para justificar o estabelecimento das colônias alemãs e italianas na região.
Txulunh não tem dúvidas de que somente a demarcação definitiva pode garantir os direitos dos Laklãnõ-Xokleng: "A gente espera ser reconhecido como cidadãos de direitos. Que tem direito sobre as nossas vidas, sobre o nosso território, sobre o nosso corpo. Ser reconhecido como sujeito de direito e ser reconhecido como cidadãos catarinenses natos. A gente é nativo desse estado e a gente vê muito essa negação ao longo de toda a história".
https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/dos-bugreiros-barragem-saga-do-povo-laklano-xokleng-por-seu-territorio
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