Vinte anos depois de sua primeira edição, maior mobilização indígena do Brasil aponta fragilidades na conquista de direitos dos povos originários e discute pautas comuns às reivindicações que ensejaram o seu início
Em 26 de abril chegou ao fim a 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL). Organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as instalações do ATL se concentraram no Eixo Cultural Ibero-americano, antigo Complexo Funarte. A edição deste ano teve como slogan a frase "Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui". A escolha expõe clara oposição dos ativistas indígenas mobilizados pela Apib e suas regionais ao constructo que embasa a tese do marco temporal.
A programação que regeu o evento contou com plenárias sobre a resistência indígena por meio de diferentes gerações, os efeitos da Lei 14.701/2023 (que versa, entre outros pontos, sobre o marco temporal), a agência feminina e perspectivas para a COP 30, educação escolar indígena, agenda climática, avanços e desafios na construção da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI), justiça de transição e medidas de reparação para povos indígenas, bem como plenárias em celebração a figuras emblemáticas no movimento e homenagens à memória de ativistas que representam as resistências indígenas.
No corrente ano, os ativistas indígenas responderam a complexos desafios na organização da mobilização, o que esteve presente expressamente nas cartas divulgadas pela Apib na abertura e no encerramento do ATL/2024; e não é como se os anos anteriores tivessem sido menos desafiadores, o que enfoco aqui é a complexidade dos arranjos político-jurídicos que vêm contornando as políticas indigenistas.
Em retrospecto, pontuo que a atual conjuntura possui efeitos projetados desde a aprovação da MP 1154/2023, ou MP dos Ministérios, retirando a pasta de demarcação de terras indígenas do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e retornando a mesma ao Ministério da Justiça, ao julgamento acerca do marco temporal no STF e o decreto, e sanção, da Lei 14.701/2023. As terras indígenas, em si, protagonizaram importante escopo em diversos momentos da vida pública nos últimos tempos, permanecendo o debate sobre a tese do marco temporal em alta.
Para além do cenário exposto, é perceptível o estremecer de relações entre a organização do ATL e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que esteve presente na edição do ano de 2023. No tocante à temática, a carta publicada pela Apib em 22 de abril, primeiro dia da mobilização, menciona que "Alguns veiculos de comunicaça~o tem dito que o ATL excluiu a presença de Lula na mobilizaça~o, mas na verdade quem está sendo excluido sa~o os povos que na~o tem tido suas terras demarcadas".
Em complementação à respectiva pontuação, a carta levanta a morosidade na demarcação das terras indígenas Morro dos Cavalos (SC), Toldo Imbu (SC), Xucuru Kariri (AL) e Potiguara de Monti-Mor (PB), as quais o governo federal anunciou que seriam homologadas nos primeiros cem dias de governo, conforme indicado no relatório do governo de transição.
As reivindicações veiculadas ao Poder Executivo durante o ATL/2024 atacavam pontos relativos às referidas terras em vias de homologação, bem como a finalização do processo de demarcação de 23 outras Terras indígenas, encerramento de processo que está no aguardo de assinatura e publicação de portaria declaratória.
Nas marchas promovidas como parte da programação, ocorridas nos dias 23 e 25 de abril, e as falas de coordenadores das instâncias regionais vinculadas à Apib trouxeram a emergência de reforço quanto à segurança das terras indígenas, enunciando pelas ruas de Brasília a violência atinente aos conflitos fundiários no Brasil. Retornando o foco do discurso ao governo federal, os discursos também apontaram a ineficiência de criação de um ministério sem capacidade infraestrutural de agência, denunciando a escassez orçamentária para a pasta. A pauta sobre reforço e robustez à infraestrutura do Ministério dos Povos Indígenas, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) já havia sido demandada na Carta publicada em 22 de abril.
Aos poderes Legislativo e Judiciário, as demandas puderam se resumir em uma: tratar do afastamento da tese do marco temporal enquanto parâmetro para reconhecer o direito à posse de terras por povos indígenas.
Durante os dias em que experienciei as ações e discursos veiculados na mobilização, pulsava a urgência que os ativistas ali presentes atribuíam às demandas em questão. O tempo ganhava em seus discursos a importância de capital político e, por vezes, foi destacado que o "tempo dos povos indígenas não era o tempo do governo federal", no sentido de que a morosidade burocrática negligenciava as constantes violências e violações de direitos sofridas por esses povos.
A urgência na tratativa de pautas que alinhassem justiça social e ambiental, já enunciadas na declaração de emergência climática proferida no ATL/2023, de não negociação de direitos e do sentimento de ataque hostil por parte dos povos indígenas em relação à não demarcação, e sanção da Lei 14.701/2023, culminaram na leitura e publicação do documento "Terra, Tempo e Luta" no ATL/2024.
As lutas e resistências indígenas apontaram para diversas demandas que, posteriormente, tornaram-se conquistas, tais como o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e a PNGATI, por exemplo. Todavia, a digressão inevitável à qual datas "redondas" fazem remeter, como é o caso dos vinte anos do ATL, me levam para uma constatação de semelhança entre as premissas da primeira e da vigésima edição da mobilização.
Ocorrido no ano de 2004, o primeiro Acampamento Terra Livre se deu na forma de ocupação próxima ao Ministério da Justiça (MJ), onde se reuniram indígenas do Sul brasileiro e outros, de regiões diversas, por adesão. O objetivo era o de tratar das incertezas e inseguranças atinentes à "Nova Política Indigenista" acordada no primeiro mandato de Lula.
Vinte anos depois, no terceiro mandato de Lula, os indígenas mobilizados pela Apib retornam à posição de expor, com ênfase nas ações do governo federal, suas insatisfações e inseguranças quanto às tratativas oferecidas às suas demandas. Para além de reivindicações de curto prazo, urge na voz dos ativistas mobilizados as marcas de tempos pretéritos, em que, ainda que haja avanço cronológico, a conquista de prerrogativas não tem acompanhado a passagem do tempo de maneira evolutiva.
A passagem do tempo e a socialização inscrita nas mudanças conjunturais afetas a esse movimento legam mudanças, não apenas no mérito do que é demandado, mas também do ponto de vista da estratégia dos movimentos. No entanto, obstante as particularidades dos respectivos contextos, a urgência na tratativa de direitos para povos originários segue na ordem da cronologia e da realidade correntes.
Marcello Amorim Vieira é doutorando e mestre no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF). Historiador, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFF), e bacharel em Direito, pela Universidade Vila Velha (UVV).
https://diplomatique.org.br/acampamento-terra-livre-povos-indigenas/
Índios:Terras/Demarcação
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