BRASÍLIA (DF) - A uma semana do fim dos trabalhos legislativos na Câmara dos Deputados, a deputada federal bolsonarista Coronel Fernanda (PL-MT) protocolou, na quinta-feira, 12, um pedido para a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar fatos relativos à demarcação, uso e gestão de terras indígenas. O pedido tem 174 assinaturas, três acima do mínimo necessário para esse tipo de requerimento.
Ao todo, 42 deputados da Bancada da Amazônia Legal subscreveram o pedido de CPI da parlamentar. O maior número de assinaturas veio dos parlamentares de Mato Grosso, com sete, seguido de Rondônia, com seis. Acre, Maranhão e Pará contribuíram com cinco subscrições cada. A bancada de Roraima deu quatro assinaturas, enquanto Amapá, Amazonas e Tocantins, apresentaram três.
De acordo com a Câmara Federal, a instalação da comissão depende de ato da Mesa Diretora da Casa. Uma CPI pode atuar também durante o recesso parlamentar, com prazo de 120 dias, prorrogável até a metade.
Em sua justificativa, Coronel Fernanda argumenta sobre suspeitas de que "os laudos antropológicos de demarcações em terras indígenas estão desvirtuando a realidade de forma tendenciosa ao reconhecimento de uma área como de 'ocupação tradicional'". Para a parlamentar, independente de questões ideológicas, reconhecer essas áreas é uma matéria que exigiria "grande seriedade e isenção", pois impacta a vida de indígenas e não indígenas.
"Nesse contexto, de uma forma geral, é possível apontar uma série de alegações de "fraudes" ou "inconsistências" em demarcações. Ainda que parte dessas alegações advenha da falta de aprofundada compreensão em questões jurídicas ou antropológicas, tem-se que a grande desconfiança de diversos setores da sociedade, associada ao número gigantesco de apontamentos, torna factível a ideia de que a demarcação de terras indígenas esteja também a servir interesses escusos escondidos sob o manto de uma justa causa", afirma em seu requerimento.
Fernanda apresenta trecho de uma reportagem da Revista Veja de 2010, acusando os antropólogos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de serem arregimentados de Organizações Não Governamentais (ONGs) e que sobreviveriam do sucesso das demarcações. Outra denúncia citada envolve uma servidora concursada da autarquia federal, noticiado pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE) de Santa Catarina, que teria denunciado, em 2001, "a ocupação de 'ongueiros' no alto escalão do órgão".
"Sem entrar no mérito, fato é que as alegações de "fraudes" vão do "Caburaí ao Chuí", de tempos pretéritos ao momento atual. De fato, em rápida pesquisa em sites de busca, é possível encontrar uma série de outros apontamentos, com os mais diversos conteúdos", sustenta a parlamentar.
Fatos determinados
No pedido de CPI protocolado, a deputada apresenta seis fatos determinados para justificar as investigações solicitadas no documento. O primeiro questiona os estudos de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, localizada entre os municípios de Santa Cruz do Xingu e Vila Rica, no Mato Grosso, e São Félix do Xingu, no Pará.
Segundo a parlamentar, 60 indígenas reivindicam esse território de 360 mil hectares, mas que ali "existem registrados 144 imóveis sobrepostos à TI, cobrindo 74,5% de sua extensão, num total de 265.460 hectares". O risco, segundo ela, é ampliar a área para os indígenas e prejudicar os produtores que atualmente ocupam o lugar.
"Nesse sentido, a CPI será importante para: (1) verificar se houve fraude nos estudos realizados, de forma a justificar uma ocupação tradicional onde não existia ou de forma a relacionar os meios de vida da comunidade indígena com área na qual esses meios de vida não se reproduzirão de forma digna; (2) verificar se houve burla nos estudos à condicionante de vedação à ampliação de uma terra indígena; (3) melhor compreender a matéria de forma a contribuir para a diminuição de seus impactos socioeconômicos", sustenta o pedido.
O segundo fato está ligado à "Terra Indígena Morro dos Cavalos", no município de Palhoça (SC), que, segundo o requerimento, "representa um procedimento demarcatório com várias alegações de fraudes e que perdura há um considerável tempo sem solução final", cujo relatório de delimitação é do início deste milênio. "Ainda no ano passado (2023), duas décadas depois, a Justiça dava decisão no sentido de obrigar o Estado a averbar em cartório a existência do procedimento demarcatório, o que evidencia a profundidade dos conflitos e divergências que tangenciam o caso", diz o pedido.
No terceiro fato, a parlamentar questiona o processo de reconhecimento da Terra Indígena Kaxixó, em Minas Gerais, que, de 1994 para 1999, teve o teor do laudo modificado para reconhecê-los como comunidade indígena que teve apoio do Ministério Público Federal (MPF). "A situação parece paradoxal: como em cinco anos os laudos antropológicos tiveram resultados diferentes quanto a existência de uma comunidade indígena na localidade?", indaga.
Devido à complexidade do caso, na avaliação da deputada, que passa inclusive pela questão do Marco Temporal que tem como limite a Constituição Federal de 1988, "o caso deve ser estudado pelo Parlamento, juntamente com outros, em prol da melhor compreensão do processo de demarcação e da verificação se estão ou não os laudos a burlarem o ordenamento jurídico a favor de um parcial reconhecimento da ocupação tradicional".
A quarta contestação é sobre a "Terra Indígena Tupinambás de Olivença", localizada no Sul do Estado da Bahia, que teria como líder da retomada da terra um "falso indígena".
"As suspeitas de fraude são aumentadas pelo próprio 'mapa' que representa a delimitação da Terra Indígena. Segundo notícias, os recortes no litoral do mapa objetivam excluir da delimitação alguns resorts existentes na área. Ademais, não parece haver grande sentido na 'barriga' que cresce para baixo do mapa, dando a entender que seria uma 'compensação' pela perda do litoral deixado aos hotéis de luxo", afirma o requerimento.
O quinto fato determinado questiona o processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá, território situado entre os municípios de Terra Roxa e Guaíra, e uma pequena parte no município de Altônia, no Paraná, que conta com 15 aldeias de comunidades Avá-Guaran. A retomada da demarcação ocorreu após a Funai suspender os efeitos da Portaria 418/2020, que havia anulado o processo de regularização do território indígena.
O sexto questionamento diz respeito à "Terra Indígena Mato Preto", no Rio Grande do Sul, que, segundo a autora do pedido de CPI, uma diligência da Câmara Federal constatou "a existência de um cemitério de imigrantes europeus com lápides datadas do século XIX".
"A presença secular dos imigrantes na região demonstra o quão conflituoso pode ser o reconhecimento de uma área como de ocupação tradicional. Eventual demarcação na localidade, vale observar, levará a anulação de títulos de propriedades conferidos pelo Estado a humildes trabalhadores do campo que daquela terra retiram, por décadas e décadas, o sustento próprio e de sua família", sustenta.
Demarcações pendentes desde a Constituição de 1988
Os direitos dos povos indígenas estão definidos no Artigo 231 da Constituição Federal, promulgada dia 5 de outubro de 1988, onde define: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
A partir da promulgação, a União tinha cinco anos para promover a demarcação das terras indígenas, processo que até os dias atuais não foi concluído e é alvo de contenciosos judiciais, que se arrastam há décadas. O mais atual é a criação do Marco Temporal para requerer a demarcação, fixado na data de 5 de outubro de 1988.
Em 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou o entendimento rechaçando a adoção do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas, mas o Congresso Nacional reagiu e aprovou a Lei 14.701/2023, estabelecendo a data limite.
A nova legislação é alvo de várias Ações de Inconstitucionalidade (ADI) e de Constitucionalidade no STF, que tem com relator o ministro Gilmar Mendes. O magistrado decidiu criar uma comissão de conciliação para se chegar a um consenso sobre o tema, para evitar o vai e vem de decisões judiciais e ações no STF, mas as discussões não contam mais com a participação de um dos autores da ADI, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O fim dos trabalhos da comissão está previsto para fevereiro de 2025.
O autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC-48) que institui o Marco Temporal na Constituição, senador Hiran Gonçalves (PP-RR), declarou que irá voltar a proposta para tramitação porque os debates do STF não saem do lugar.
Para os representantes dos povos indígenas, a vigência da lei aumentou a violência no campo e mortes dos parentes. Para a Funai, essa legislação significou o aumento da judicialização que paralisou centenas de processos de demarcação.
A CENARIUM envidou pedido de resposta à Funai e aguarda seu posicionamento sobre o pedido de CPI.
Índios:Direitos Indígenas
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