'Existem outras formas de compreender o mundo', diz cientista indígena Justino Rezende sobre artigo publicado na Science

InfoAmazonia - https://infoamazonia.org - 10/01/2025
Em entrevista à InfoAmazonia, o antropólogo, que é um dos autores do artigo 'Indigenizando as Ciências da Conservação para uma Amazônia Sustentável', falou sobre como artigo publicado em uma das revistas de ciência mais importantes do mundo ensina sobre como a visão ancestral integra todas as áreas do conhecimento.

Um grupo de 14 cientistas brasileiros, entre eles seis indígenas, encarou a missão de provar para uma das revistas científicas mais importantes do mundo, a Science, que o saber indígena produzido na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, é uma ciência a ser reconhecida, respeitada e incorporada em estudos de todas as áreas do conhecimento.

Para isso, foram dois anos de encontros e debates sobre o conceito principal da ciência indígena: a ideia de que existe uma rede cosmopolítica dividida em três domínios. São eles:

Aéreo, onde estão o clima e as constelações;
Terrestre, onde os humanos estão inclusos junto com o solo e a floresta;
Aquático, que inclui os rios e cursos d'água.
Na visão dos indígenas, essa rede é protegida pelos 'waimahsã', palavra da língua Tukano que, em português, significa os 'outros-humanos'. Os outros-humanos são como espíritos imateriais e habitam os três domínios, mas apenas os especialistas indígenas conseguem vê-los.

Foi isso que os pesquisadores explicaram no artigo "Indigenizando as Ciências da Conservação para uma Amazônia Sustentável", publicado na Science no dia 13 de dezembro de 2024, uma das principais revistas acadêmicas do mundo, reconhecida por publicar avanços significativos na ciência e na tecnologia.

Um dos autores e também incentivador dos debates foi o antropólogo indígena Justino Rezende, do povo Utãpinopona-Tuyuka. Rezende é filósofo, teólogo e pós-doutorando em Antropologia Social na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Foi o pesquisador quem convidou os outros colegas para colocar no papel a cosmovisão indígena como ciência.

Além de Rezende, os pesquisadores indígenas do povo Tukano João Paulo Lima Barreto, Silvio Sanches Barreto, além de Francy Baniwa e Clarinda Sateré-Mawé assinam o artigo. Também são autores os não indígenas Fábio Zuker, Ane Alencar, Miqueias Mugge, Rodrigo Simon de Moraes, Agustín Fuentes, Marina Hirota, Carlos Fausto e João Biehl.

Em conversa com a InfoAmazonia, Rezende lembrou que durante a construção do artigo até pensou em desistir, mas a vontade de compartilhar sobre o conhecimento indígena o motivou a continuar.

"Se não formos nós a dialogar com os cientistas, quem fará isso? Queríamos também construir essa ponte", relembrou. Nesta entrevista, o pesquisador indígena explica como funciona a rede cosmopolítica, quais foram as dificuldades encontradas para defender a ciência indígena na Science e o que é necessário para que se tenha mais espaço.

Leia a entrevista completa a seguir.

InfoAmazonia - Como foi organizar esse trabalho e qual era o objetivo de vocês?

Justino Rezende - Foram mais de dois anos. Entre 2023 e 2024, dedicamos mais tempo, mesmo sendo todos nós muito ocupados. O Paulinho [João Paulo Barreto], por exemplo, estava fazendo pós-doutorado em sua área de pesquisa. Eu também estava fazendo o meu, o que me fazia ausentar muito da cidade para ir ao campo.

Nossa parte era fornecer material para que pudéssemos trabalhar melhor depois, produzir e oferecer nosso modo de ver: o que nossos pais falavam e o que os especialistas diziam sobre determinados temas. Com o tempo, começaram a participar mais professores, também das áreas de Antropologia, Biologia e Ecologia.

Esses professores ocidentais tinham uma visão científica muito diferente da nossa, o que gerava divergências entre o nosso modo de pensar e o deles. Além disso, havia outra instância, a revista Science, que era como um controlador do nosso trabalho. Todos tínhamos medo de que seria muito difícil avançar, mas apostamos que, explicando, conversando e respondendo às perguntas e dúvidas deles, conseguiríamos progredir no diálogo.

Houve tensões, sim. Às vezes, parecia que não iríamos avançar, já que a ciência ocidental está estabelecida, enquanto sentíamos que nossos conhecimentos sempre ficariam em segundo ou terceiro plano. Muitas vezes, pensei que era perda de tempo e considerei abandonar o projeto, porque não queria continuar debatendo sem avanços.

As exigências acadêmicas, vamos dizer, para conseguirmos créditos e preenchermos nossos currículos, já estavam bem estabelecidas para nós. Na academia, alcançamos níveis como doutorado e pós-doutorado. Só que, dessa vez, tratava-se de um artigo mais científico, uma verdadeira missão. Se não formos nós a dialogar com os cientistas, quem fará isso? Queríamos também construir essa ponte. Essa era, de certa forma, nossa missão. Sentíamos essa obrigação, mesmo quando discordamos ou pensamos em desistir. Sempre retomamos o trabalho.

Uma das ideias centrais que vocês estão propondo é que a ciência ocidental pare de separar contextos sociais e naturais. Essa separação se deu como a colonização?

Justino Rezende - A filosofia grega, de onde se origina todo o pensamento ocidental, sempre separou a cultura da natureza. Isso persiste até hoje. Os humanos fazem parte da cultura, da sociedade, das etnias, dos povos. E a natureza é considerada como uma realidade que está aí, à disposição dos humanos, por assim dizer.

Essa separação foi algo que discutimos muito. Para nós, indígenas do Alto Rio Negro, aquilo que a sociedade ocidental ou a ciência ocidental considera como natureza não é apenas natureza. Eles são outras 'gentes' também. As árvores, as pedras, os peixes, as estrelas, são gente. No patamar aéreo, o sol e a lua também são gentes. Por isso, se observarmos atentamente, existe uma grande interligação, uma conexão entre os nomes dos povos, os nomes das pessoas, os ciclos das festas, os ciclos do nascimento, da menstruação feminina, da procriação.

Assim, entendemos que são outras 'gentes' que precisam ser ouvidas também. Como podemos ouvir esses seres, essas outras gentes, que hoje em dia são chamados de "não humanos" ou, em outros contextos, de "mais que humanos"? Para nós, essa já era uma discussão aqui em Manaus, no programa de pós-graduação [de Antropologia Social, da Universidade Federal do Amazonas]. Queríamos superar essa divisão entre humanos e não humanos. Nós dizíamos: 'Não, nossos avós nos ensinaram que eles são humanos também. São nossos primos, cunhados, nós somos os netos deles. As cobras são nossas avós, os peixes também.'

Na linguagem xamânica, isso é mais compreensível: eles são nossos parentes. É aí que entra o conceito de parentesco universal, que muitos antropólogos já discutiram ou tentaram entender. Nós dizíamos que, se não enxergarmos e não entendermos que aquilo que é considerado natureza pela sociedade ocidental precisa ser visto de outra forma, essa visão não mudará, e a exploração continuará.

Sem limites, né? Destruição, exploração de minérios sem controle, derrubada de florestas. Na visão deles, é algo que está ali para ser explorado mesmo. Também dizíamos que não queremos impedir o uso, porque nossos avós também faziam uso equilibrado dessas florestas. Com suas pequenas roças, eles circulavam conforme o ciclo de vida, permitindo que a própria floresta e os próprios pássaros e animais que ali vivem pudessem se regenerar.

Os humanos, nós, pessoas, não conseguimos cuidar das florestas sozinhos. A floresta consegue se regenerar por si mesma. Os pássaros ajudam a cultivar, ajudam a semear. As próprias abelhas e outros seres também têm esse papel. Dizemos que nós, que chegamos aqui, nem sabemos de onde viemos. Certamente viemos depois. Já existiam as florestas, os rios, esses grandes rios. Eles já estavam aqui antes de nós.

Por isso, existiam cerimônias para pedir permissão para entrar, para seguir mais um trecho, e assim por diante. Isso já era compreendido. Nossos avós sabiam que esses lugares têm seus donos também, que precisam ser respeitados, com quem é necessário dialogar e pedir permissão para entrar.

Tudo isso falamos para tentar ampliar um conhecimento mais aproximado, menos divisório entre cultura e natureza. A cultura também é um outro lado. Por isso, eles também são seres que interagem conosco. Os especialistas, homens e mulheres, através de seus sonhos e cerimônias, conseguem conversar com eles, escutar o que estão dizendo e depois transmitir essas mensagens para sua comunidade, aldeia, filhos e netos.

Vocês pedem que a ciência ocidental seja capaz de levar em conta algo que os indígenas já praticam, que é o entendimento da existência de uma rede de interações, uma rede cosmopolítica. Você pode explicar o que é essa rede e de que forma ela funciona?

Justino Rezende - Então, outro elemento é essa corporalidade. O mundo é o corpo, nós somos parte desse corpo. Então, as árvores têm seu corpo, têm suas raízes, têm seu corpo esbelto, têm seus cabelos. Eu fiz a tese sobre a festa das frutas, escrevi dizendo que as frutas são as filhas, as folhas são os cabelos das mães, por isso precisa cuidar.

Então, essa visão, de como compreender que existe a sua forma de organização, é importante, porque eles também cuidam de nós, ou eles também têm medo de nós. Ficam chateados também quando a gente agride, por isso que tem uma expressão que eu uso bastante, tem até nesse artigo, que a floresta, os rios, têm sua tolerância até certo ponto. Depois que ultrapassa o limite eles se revoltam, podem causar grandes danos, grandes desastres, grande enchente de rios que vai inundando tudo. Então, aí a tolerância diminui muito, ou pode ter grandes, secas, como tivemos mais recentemente.

O artigo foi uma brecha também para que nós conseguíssemos avançar na perspectiva de que existem outras formas de compreender o mundo que podem se tornar muito necessárias para que a política governamental possa levar em conta.

Durante o documento, vocês afirmam que não estão defendendo a incorporação de crenças religiosas na prática científica. Por que há a necessidade dessa afirmação?

Justino Rezende - Porque, segundo a compreensão da ciência ocidental, a religião, a crença e a espiritualidade não fariam parte, não seriam consideradas parte integrante [da ciência]. Mas há muito o que discutir sobre isso. Existe uma questão que, se você ler novamente, perceberá: a materialidade e a imaterialidade fazem parte de um mesmo conjunto.

Quer dizer, os bens materiais e os bens imateriais. Na linguagem religiosa, seriam a matéria e o espírito. Isso também existe na nossa compreensão. A árvore não é somente uma árvore; ela tem uma história que não enxergamos. Os rios, as águas, os peixes, também têm suas histórias, seus antepassados.

Essa nossa compreensão se torna visível na forma de danças, que representam ritmos; na bebida, que expressa sabores; nos gostos; e até no suor do corpo. Eu dizia que isso também é ciência. Poderíamos até dizer que, de forma muito leve, a espiritualidade também é ciência para nós. Ela não pode estar fora, porque, se não estiver integrada, sentimos que falta algo, como se uma parte do nosso ser fosse retirada.

Eles entenderam, no final, que esse ponto era crucial. Foi um dos principais temas discutidos nas revistas Science: a espiritualidade. A questão de como ela, assim como a religião, deve estar presente. Nós dizíamos: 'Isso também é parte da ciência, porque dá sustentabilidade aos povos originários.' Por isso existem as cerimônias, as músicas, os ritmos, as narrativas de histórias.

Esses elementos são 'Ukunse, Masese' - não dá para traduzir para o português. Quando falamos em espiritualidade, é algo mais amplo. Eu dizia a João Paulo Barreto, que é bastante crítico nessa área: 'É importante que nós, indígenas, sejamos os primeiros a discernir como isso deve ser tratado. Não adianta apenas dizer que não pode estar presente.'

Então, como deve estar? É isso que precisa ser definido. Não dá simplesmente para tirar. Eu fazia esse apelo. Como sou mais velho e às vezes pratico o xamanismo, eu dizia: 'Vou falar porque faço práticas xamânicas. Eu sei como isso funciona. Se você não praticar, não vai entender. Só critica, mas não propõe como isso pode ser.'

É como eu dizia: ciência. Ela tem sua forma de curar, como a vacina, por exemplo. Para nós, é proteção. Pode ser com cigarrão, defumação, brilho ou outros materiais. Já para a ciência ocidental, é com agulha, com vacina. Mas é um tema que ainda vai render. E é bom que renda. Esse é o ponto. Eles têm essa visão de querer separar a parte espiritual. Para a ciência, religião, crença, práticas curativas e proteção são todos termos religiosos, segundo a visão deles.

Mas, como você está dizendo, usamos isso como uma equivalência linguística. Não é exatamente isso. Se mantivéssemos a originalidade da língua Ttukano, que é falada pela maioria do grupo [dos autores indígenas], seriam usados outros termos. Já pensamos em manter essas palavras no original, para que quem quisesse aprender o significado pudesse ler uma nota explicativa. Mas o artigo ficaria muito extenso.

Havia limitações de tempo, tamanho do artigo, quantidade de notas. Nas nossas teses, conseguimos trabalhar melhor. Meu orientador dizia: 'Use a original Tuyuka, explique na nota de rodapé, nem que ocupe meia página, mas explique.' Ele era incentivador nesse sentido.

Acredito que tivemos avanços nessa discussão. Uma revista tão importante acolheu essa visão diferente, mais holística. Essa visão não é apenas tecnicista. Nossa visão é outra. Ela também é científica. Ela também garante a sustentabilidade do mundo e de muitos povos.

Uma revista tão importante acolheu essa visão diferente, mais holística. Essa visão não é apenas tecnicista. Nossa visão é outra. Ela também é científica.

Justino Rezende, pesquisador indígena

No artigo vocês usam como exemplo os conhecimentos e conceitos vividos por indígenas aqui do Alto Rio Negro, no Amazonas. Esses são conceitos concebidos por culturas indígenas de outras regiões da Amazônia?

Justino Rezende - Esse é um desafio, mas, de forma geral, essa compreensão de que os outros seres interagem conosco é bastante ampla. Conheço bastante aqui na América Latina, participei de vários eventos dentro da compreensão das espiritualidades indígenas. Fiz também dois intercâmbios na Finlândia, onde estivemos ouvindo o povo Sámi.

Eles têm a mesma compreensão. Se você observar bem, a maioria dos povos indígenas, em suas festas, usa muitas plumas, né? Plumas que simbolizam essa conexão, mostrando que esses seres estão ali dançando com as pessoas. Mesmo os colares de pedra, de quartzo, de frutas, sementes, chocalhos, bastões de dança e flautas carregam essa simbologia.

Tenho refletido também sobre isso: que o nosso corpo e o corpo deles se interligam, se encontram em vários momentos. Como, por exemplo, na compreensão do trabalho da mulher na roça.

O corpo da mulher sente a necessidade de ir à sua roça. Mesmo que ela não vá trabalhar intensamente todos os dias, sente a necessidade de estar lá, porque é como se fosse a filha dela. E a roça, por sua vez, é como uma mãe para os seus filhos e filhas. Assim como os peixes, os rios, as águas da manhã, as águas do final do dia, tudo isso carrega uma simbologia.

Por isso, os rituais de purificação e limpeza do corpo são tão importantes. Tomar banho cedo faz bem para o corpo físico, e as plantas medicinais, usadas conforme o conhecimento de cada povo, contribuem para o bem-estar. Os povos da América Latina estão muito interligados às florestas e, nas regiões onde há montanhas e serras, chegam até a levar frutos como forma de devolver essa reciprocidade.

Quer dizer, a floresta, numa visão puramente material, não vai comer a banana que produzimos ou o milho. Mas os povos latino-americanos acreditam que, como produzimos muito milho, é hora de oferecê-lo à montanha, para que ela se alimente também desses milhos que ajudou a cuidar.

Acho que tudo isso é algo bastante comum entre os povos indígenas. Mas acredito que não se limita apenas a eles. Os povos interioranos, os ribeirinhos, os afrodescendentes, os seringueiros e outros que têm essa visão de conexão e também compartilham desse entendimento.

Vocês dizem que existe uma visão antropocêntrica e utilitarista da natureza nas sociedades de todo o mundo. Como isso está sendo reproduzido nas ciências e quais são os danos disso?

Justino Rezende - Eu penso que a própria ciência ocidental, como a biologia e a ecologia, ao fazer seus levantamentos de qualidade e quantidade, acaba chamando muita atenção para a questão das riquezas minerais, por exemplo.

Hoje em dia, não é mais necessário sair por aí caçando minérios. Já existem satélites que identificam ou mostram onde estão esses minérios, onde há grandes concentrações de florestas. Quando se localizam os recursos, como pedras e árvores - castanheiras, por exemplo, ou a diversidade de plantas -, tudo é registrado no GPS. Qualquer pessoa pode localizar. Ou seja, não existe mais segredo. O curioso busca, vê onde há o que procura e, a partir disso, cria-se uma missão.

Por isso, digo que o avanço da ciência tem uma dupla face. Ao mesmo tempo que pode ajudar a proteger, preservar e promover o uso equilibrado dos recursos, também pode despertar uma grande vontade de explorar e extrair.

Assim, penso que, ao conversarmos sobre isso, corremos o risco de sermos vistos como aqueles que entregam os conhecimentos indígenas. E aí entra outra questão: a ética indígena. Será que podemos falar tudo? Ou falamos apenas o necessário para que o mundo conheça, mas sem revelar tudo o que é nosso? Essa é uma outra discussão.

Porém, o que prejudica é justamente isso. Hoje, a ciência, com sua profundidade, tem se mostrado uma ferramenta para defender as diversidades de plantas e animais. Já foi constatado que em muitos lugares não existem mais como eram antes.

Ainda assim, muitos que querem usar a Amazônia como lugar de exploração argumentam que os cientistas são contra o progresso, que os pesquisadores são contra o progresso, que os indígenas são contra o progresso. Eles nos enquadram como se fôssemos contrários a qualquer avanço. Por isso, é importante que nós, como indígenas, expressemos nossas perspectivas. Muitos já falam sobre isso, mas não publicam em revistas científicas.

Ainda assim, muitos que querem usar a Amazônia como lugar de exploração argumentam que os cientistas são contra o progresso, que os pesquisadores são contra o progresso, que os indígenas são contra o progresso. Eles nos enquadram como se fôssemos contrários a qualquer avanço. Por isso, é importante que nós, como indígenas, expressemos nossas perspectivas.

Justino Rezende, pesquisador indígena
No entanto, no dia a dia, os movimentos indígenas, as associações indígenas e os movimentos de mulheres que trabalham com artesanato, comida, alimentação e medicina mostram que existem outras perspectivas de uso equilibrado do meio ambiente.

As universidades brasileiras têm um papel crucial para estimular os alunos que estão se formando a ouvir e aprender com a ciência indígena. Esse papel está sendo cumprido?

Justino Rezende - Os indígenas, nos últimos 20 anos ou um pouco mais vêm chegando às universidades. Eu mesmo trabalhei nas licenciaturas indígenas pela UFAM [Universidade Federal do Amazonas], em São Gabriel [da Cachoeira], Santa Isabel [do Rio Negro] e Maués. Lá, trabalhávamos muito essas questões. Cada estudante desenvolve temas relacionados, e por isso sei bastante sobre isso, porque também fui orientador de TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] desses estudantes.

Acredito que o incentivo ainda é pouco, os recursos financeiros são limitados, mas eles têm muita vontade de se organizar, pois é algo que vivem em cada região e querem visibilizar. Essa questão da visibilidade ainda precisa ser mais trabalhada. Muitas vezes, o trabalho fica apenas no final do curso. Esses materiais poderiam se transformar em livros didáticos ou de leitura, para popularizar mais esse conhecimento dentro do estado do Amazonas e em outros estados também.

Outros estudantes indígenas pelo Brasil também estão se organizando e sistematizando seus conhecimentos. Cada região tem suas peculiaridades. O Nordeste tem um perfil de indígenas, o Sul e o Sudeste têm outro, e aqui no Norte, onde há a maior concentração de povos indígenas, o perfil é diferente.

Na antropologia, que é uma área que conheço bem, temos trabalhado muito sobre nossos temas. A academia, no entanto, costuma dizer que um antropólogo deveria estudar outra cultura. Eles criticam, dizendo: 'Vocês ficam estudando a cultura de vocês mesmos.'

Mas, por outro lado, temos dito que foi justamente através da academia, da universidade, que sentimos curiosidade de estudar mais profundamente nossa própria cultura. É uma vontade de aprofundar, porque vemos que outras pessoas também estão estudando suas culturas.

Além disso, outras jovens, especialmente mulheres, têm chegado à universidade. Tenho incentivado que trabalhem mais temas femininos. Em geral, há um foco maior nos temas masculinos - tradições, danças -, mas as mulheres têm muito a organizar e a trazer, como os temas relacionados ao mundo feminino e à visão da mulher sobre esses aspectos.

A mulher participa dessa visão, mas ela tem uma perspectiva própria. Quem deve conversar melhor sobre isso é a própria mulher. O [antropólogo] Silvio Bará, por exemplo, fez um trabalho com a mãe dele. Ele dizia que ela comentava: 'Meu filho, o que você quer trabalhar são temas de mulher. Não dá para eu contar para você.' Mesmo assim, ele conseguiu fazer um trabalho bonito com a mãe, que foi sua principal interlocutora.

Hoje em dia, há muitos estudantes indígenas. É claro que existem pessoas que os incentivam e motivam, mas seria necessário investir melhor nas pesquisas científicas, com recursos financeiros adequados, incluindo estadia e viagens. Na Amazônia, por exemplo, para fazer pesquisa de campo na própria comunidade, são necessários muitos recursos. Uma bolsa de R$ 2.000 ou R$ 1.500 não é suficiente. Metade disso já vai para a passagem. Como você vai se alimentar?

Na Amazônia, por exemplo, para fazer pesquisa de campo na própria comunidade, são necessários muitos recursos. Uma bolsa de R$ 2.000 ou R$ 1.500 não é suficiente. Metade disso já vai para a passagem. Como você vai se alimentar?

Justino Rezende, pesquisador indígena
No nosso grupo de pesquisa, que publicou recentemente, insistimos que não apenas nós, pesquisadores, deveríamos receber a bolsa, mas também nossos pais e parentes que estão na base. Eles também precisam de incentivo. Não basta dizer "Amazônia em pé". Nossos sábios também precisam se manter em pé, vivos, para nos ensinar. São eles que nos mostram o que é importante saber.

O que é necessário para que a ciência indígena seja usada junto com a ciência ocidental?

Justino Rezende - Então, esse foi um dos pontos que a gente discutiu muito. Isso se discute também aqui na Universidade Federal do Amazonas, que os nossos conhecimentos locais são bem específicos, muitas vezes bem étnicos, de cada povo. Cada um está promovendo, no máximo, conhecimentos regionais. Seria importante que esses conhecimentos também ocupassem outros espaços, para que as sociedades ocidentais conhecessem outros saberes.

Então, é uma questão de ocupação de espaços. Nas outras universidades, eu sei que muitos acadêmicos, por exigência própria, já fazem isso: participam de seminários, apresentam seus trabalhos. Eles estão agindo, mas é preciso uma política maior, uma estratégia mais ampla.

Eu digo para os meus colegas: Vocês precisam abrir espaços para nós e para outros, para que possamos falar nas outras universidades, nos outros espaços científicos, e mostrar como realmente pensamos e como falamos nos nossos artigos.

Eu digo para os meus colegas: Vocês precisam abrir espaços para nós e para outros, para que possamos falar nas outras universidades, nos outros espaços científicos, e mostrar como realmente pensamos e como falamos nos nossos artigos.

justino rezende, pesquisador indígena
Por isso, é necessário trazer os mais sábios, os mais especializados de cada povo. Não precisa ser apenas do Rio Negro. É importante dar espaço para que eles falem, incentivando também a educação das crianças desde as bases. Por isso, seria necessário ter uma educação indígena mais adequada, onde os pais possam transmitir seus conhecimentos, e onde a escola promova essa forma de cuidado com a floresta.

Já houve experiências muito boas e inovadoras. A Escola Tuyuka e a Escola Pamali dos Baniwa fizeram isso há algum tempo, incentivadas pela FOIRN [Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro] e pelo Instituto Socioambiental. Foi uma década muito promissora. Eles realizaram pesquisas astrológicas, sobre o funcionamento dos ciclos, e organizaram tudo muito bem. Eu uso bastante esses conhecimentos.

Portanto, é preciso investir. Investir nas pessoas que possam levar isso adiante. Eu dizia que é necessário mundializar os [nossos] conhecimentos, porque, se o mundo não conhece os nossos saberes, vão pensar que apenas os conhecimentos ocidentais são válidos.

Existem outros conhecimentos tão importantes quanto. Eu acredito que esses intercâmbios universitários são fundamentais. Eu estou participando do projeto Entrelaçando Conhecimentos Indígenas nas Universidades (EDIS). Isso é importante, mas o que acontece em muitos casos é que esses projetos têm o nome, mas não trazem indígenas.

O FOIRN está fazendo um esforço para levar indígenas a esses espaços, onde eles mesmos possam falar dos seus conhecimentos. Contudo, em outros países, ainda não estão avançando. São, muitas vezes, pesquisadores não indígenas que falam em nome dos povos indígenas, e, às vezes, falam de forma muito inadequada, cheia de preconceitos.

Por isso, é essencial mundializar os [nossos] conhecimentos, mas de forma que os próprios indígenas possam falar de si mesmos, dos seus saberes, das suas histórias e da sua forma de entender a ecologia, dependendo de cada espaço.

https://infoamazonia.org/2025/01/10/existem-outras-formas-de-compreender-o-mundo-diz-cientista-indigena-justino-rezende-sobre-artigo-publicado-na-science/
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