Josinaldo, o índio de jaleco branco

CB, Cidades, p. 34 - 03/05/2009
Josinaldo, o índio de jaleco branco
Representante da aldeia Atikun caminha para ser o primeiro da história de seu povo a concluir medicina na UnB

Marcelo Abreu

Sexta-feira, feriado, Dia do Trabalho. Numa partida de futebol entre alunos índios e africanos, estes últimos deram uma sova nos primeiros: 5 x 1. Os índios saíram cabisbaixos. Queriam cavar um buraco para enfiar as caras. Haja pajelança para reverter o resultado nos próximos duelos.
Por telefone, nosso personagem, que ainda não conhecíamos, nos diz: "A gente pode se encontrar no prédio da biblioteca". Combinado. O encontro será às 11h30. Pontualmente, chegamos lá. E lá se aproxima o rapaz sobre o qual contaremos esta história. O andar é apressado. Veste calça jeans, camiseta branca, tênis e uma mochila. Sim, é ele mesmo, o rapaz pelo qual esperávamos para a entrevista. Ao chegar ele disse, em tom de lamentação: "O jogo acabou agora. A surra foi grande".
Não, não vamos falar sobre a fatídica derrota. O assunto é outro. Josinaldo da Silva tem 31 anos, mora há três anos em Brasília, veio de longe, dos confins de Pernambuco, deixou uma vida inteira para trás: mãe, seis irmãos, um filho de 4 anos e toda a sua cultura e tradição.
Ele cursa o 5o semestre de medicina na Universidade de Brasília (UnB). Quer fazer clínica geral para atender àquela gente esquecida do lugar de onde saiu e depois se especializar em anestesiologia. Josinaldo é um índio da aldeia Atikun. Será, em 2012, quando completará 35 anos, o primeiro indígena a receber o diploma de médico em toda a história daquela universidade.
Essa é a história que ele quer contar.
E de como, de uma aldeia a 550km de Recife, ele rompeu barreiras e chegou a uma das universidades mais importantes do país. Mais que isso: conseguiu uma vaga no curso mais disputado da UnB. Por meio de um convênio entre a Fundação Universidade de Brasília (FUB) e a Funai, Josinaldo submeteu-se a uma espécie de vestibular diferenciado, na capital pernambucana. Concorreu a uma das duas vagas reservadas para índios de todo o território nacional na UnB (sistema de cotas). Pelo menos 400 candidatos, em todo o Brasil, participaram da seleção. Houve uma prova de português e outra de matemática, com 50 questões cada. E uma redação onde dissertou sobre o desafio do jovem indígena no ensino superior.
E lá estava Josinaldo, confiante que uma vaga seria sua. E foi. Era a redenção do menino que estudou até a 4ª série na aldeia. Da 5ª à 8ª série foi para um povoado vizinho, a 6km de onde morava. E para concluir o ensino médio, o índio atikun viajava todos os dias 50km (apenas ida) para chegar a Salgueiro, cidadezinha do sertão pernambucano, o maior lugar que até então conhecera na vida.
Dança do Toré
Após terminar o ensino médio, o rapaz virou agente de saúde da aldeia, onde vivem hoje 6 mil índios. Ali, nasceu e passou toda a vida. Ensinava o que sabia àquela gente quase esquecida. Nunca se distanciou das manifestações culturais e das tradições do seu povo.
Participou desde criança da Dança do Toré. No ritual, eles acreditam que, após tomarem a jurema (bebida poderosa que limpa a alma), as divindades são incorporadas. É a crença no deus Tupã e em Tamaym (Mãe Terra). É crença dos pajés (líderes espirituais), dos caciques e de todo o povo de sua aldeia.
Essa era a vida de Josinaldo. O menino que sonhava fazer mais por sua gente. Quando soube que poderia concorrer a uma vaga na universidade, não hesitou. Foi a Recife. Fez as provas.
Esperou o resultado. E viu o nome na lista dos aprovados em medicina. "Foi a melhor notícia que tive na vida", reconhece. Dias depois, desembarcou em Brasília. Despediu-se da mãe, dos irmãos, orientou-se com pajés e caciques. Prometeu a todos que um dia voltaria. Uma nova realidade o esperava aqui.
Era abril de 2006, Josinaldo foi morar numa república de índios, na 706 Norte. No dia 18 daquele mês, entrou na UnB, seria o primeiro dia de aula. "O impacto cultural foi enorme", diz. Pergunto se teve medo. O índio atikun admite: "Tive. Medo de ser discriminado, de não ser aceito, de não dar conta do curso, de acharem que era incapaz". E faz uma revelação contundente:
"No começo, senti muito preconceito. Menos pelo fato de ser índio. O que pesava era ser pobre". Insisto em saber como sentiu isso. Ele responde: "Percebia nas escolhas dos grupos, nos trabalhos em equipe". Mas hoje admite: "Três anos depois, sinto menos a separação. Acho que tô conquistando meu espaço".
Reprovação
No primeiro e segundo semestres, Josinaldo sentiu enorme dificuldade em acompanhar algumas disciplinas. "Estudei a vida toda em escola pública do sertão. Não tive boa base", constata. Em função disso, foi reprovado em bioquímica, biofísica experimental e biologia celular. Mas o que seria obstáculo intransponível transformou-se em luta. No semestre seguinte, resolveu cursar matérias básicas, para que lhe preparassem melhor para o que teria pela frente. Estudou biologia e química experimental. Entendeu e dominou coisas sobre as quais nunca ouvira falar antes. Entrou no terceiro semestre confiante no caminho escolhido. Foi bem no quarto. Chegou ao quinto semestre e nunca mais foi reprovado em qualquer disciplina. "Mostrei a mim mesmo que seria capaz. Que não estava aqui porque me facilitaram a entrada. Hoje, me sinto à vontade. O diálogo é de igual pra igual." Ninguém nunca mais segurou o índio. Nem o medo.
Josinaldo passou a ter aulas práticas no Hospital Universitário de Brasília (HUB). É acompanhado pelos professores em consulta aos pacientes da clínica médica. "Só não podemos diagnosticar", explica. Recebe R$ 900 pelo convênio entre a FUB e a Funai. É com esse dinheiro que vive em Brasília. Come no bandejão da universidade. Passou a usar jaleco branco e estetoscópio. Fez uma foto e mandou pra sua gente. Todos passaram a chamá-lo de "doutor". Até o pajé. "Ano passado, voltei à aldeia e o povo me perguntava se eu já podia consultar", conta o futuro médico, aos risos.
Sentado na entrada da faculdade de medicina, Josinaldo fez um desabafo comovido: "Eu preciso ser médico pra ajudar o povo da minha aldeia. Eles precisam da tradição, dos chás, das crenças, mas também da ciência. Quero juntar tudo isso". Em seguida, lamentou: "Os médicos brancos vão para a aldeia, mas não se acostumam. Ficam dois, três meses e vão embora. Aí, os índios ficam tempos e tempos sem nenhuma assistência".
Sem descanso
Josinaldo estuda, em média, 10 horas por dia. Quando não está em sala de aula ou no HUB, corre para a biblioteca. Pesquisa, checa, se informa. Dissipa dúvidas. Quer comprovação. De uma coisa ele tem certeza: vai fazer clínica geral. E planeja: "Depois, quero voltar pra Pernambuco e me especializar em anestesiologia. Vou ver em Recife e Petrolina. Estando ali perto, posso cuidar da saúde do povo da aldeia"
Enquanto a formatura não chega, o índio atikun se extasia com as oportunidades que a vida lhe ofereceu. Mas observa: "Isso tudo é fruto de esforço prévio. Se eu não acreditasse, não teria tentado". E como nem só de estudo vive o ser humano, Josinaldo não perdeu tempo. Arrumou uma namorada no Recanto das Emas. "Ela está terminando o ensino médio. A gente se gosta", diz. E se espanta: "Você vai escrever isso aí?". Escrevi.
Pergunto se a convivência com o homem branco o afastará de suas raízes.
Determinado, ele responde: "Tenho convicção da minha história, da minha ancestralidade. Nunca vou deixar de ser índio". E faz um juramento: "Quero ser um bom médico. Vou procurar conversar com a pessoa e não ver ela apenas como portadora de doença. Uma vez me consultei com um médico que não olhou na minha cara. Nem meu nome perguntou". O índio talvez não saiba, mas esses homens e mulheres que se dizem brancos e vestem jaleco agem frequentemente assim. Em todos os lugares, dos hospitais públicos aos particulares. Sentem-se quase deuses.
Otimista, o estudante de medicina crê num futuro melhor para seu povo:
"Quero ver muitos índios advogados, engenheiros, médicos, professores. Basta que a gente continue lutando, resistindo, conquistando. Felicidade é poder sonhar e sentir que aquilo virou verdade". Sábio Josinaldo, o primeiro índio que virará médico em toda a história da UnB. "Com ajuda de Tupã", ele torce, segurando o cocar que carrega dentro da mochila. Que os deuses nos quais o índio acredita lhe sejam generosos.

CB, 03/05/2009, Cidades, p. 34
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