"Espero que a questão indígena não seja usada para um debate sem foco em resultados práticos". Escreveu a Ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann no início de artigo publicado dia 21/08 na Folha de São Paulo (http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/08/1329435-o-estado-de-direito-e-de-todos.shtml). Mas a sequência deste texto é de um vazio gritante em termos de "resultados práticos" e, pior, demonstra uma compreensão perigosamente equivocada do que seja o Estado de Direito.
Sobre o primeiro ponto, a Ministra tenta, canhestramente, justificar o porquê da Casa Civil solicitar (ao Ministro da Justiça, por suposto) "a suspensão dos estudos e das demarcações" alegando os "conflitos instaurados". Mas à pergunta: quem instalou (sic) os conflitos? a Casa Civil tem por óbvio que foi a FUNAI, como disse Gleisi Hoffmann em audiência em Comissão da Câmara em maio. Segundo ela a FUNAI "tem lado" - isto é o óbvio ululante, pois foi criada para isso - e o Governo precisaria então "ouvir todos os envolvidos, inclusive órgãos públicos que conhecem a realidade e podem atestar situações fáticas e históricas". Maliciosamente concluí que "se for certo o direito, por que temer as manifestações de outros que podem, inclusive, ajudar a elucidá-lo e comprová-lo?", ou seja, se os laudos antropológicos produzidos sob os auspícios da FUNAI demonstram cabalmente a ocupação indígena que originam seu direito às terras, a sua contestação ou manifestação por "outros" não deve ser temida!
Se for a manifestação do contraditório que a Ministra põe em tela este tema está bem estabelecido no Decreto no 1.775 de 1996, da lavra e assinatura do então Ministro da Justiça Nelson Jobim e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (o que não é pouca coisa) e cuja justificativa foi exatamente possibilitar o contraditório no processo administrativo de identificação de uma terra tradicionalmente ocupada por um povo indígena. Mas os "instaladores de conflitos" - os terceiros prejudicados - sejam eles posseiros, pequenos ou grandes proprietários, prefeituras, governos estaduais - além de poderem se manifestar no processo administrativo, alegando suas razões e apresentando seus "títulos", passaram a contestar os laudos antropológicos da FUNAI pela via judicial (nestes casos não os posseiros, mas os grandes invasores que têm capital para pagar as custas judiciais ou os pequenos proprietários do sul e sudeste, que bancam estas custas via prefeituras, deputados, sindicatos patronais). Alegam que a via administrativa, enquanto via política, não basta para impor seus argumentos e seus "títulos" de propriedade.
De fato foram poucos aqueles que tiveram seus pleitos de impugnação dos laudos antropológicos, no todo em parte, atendidos pelos vários ministros da Justiça dos governos FHC e Lula. No processo administrativo a manifestação do contraditório é técnica: devem-se apontar falhas naqueles laudos e demonstrar que certa população indígena não ocupou ou ocupa a terra em processo de reconhecimento. Se tais laudos antropológicos não apresentam dados densos o suficiente para a demonstração da ocupação tradicional, o Ministro devolve o processo à FUNAI, simples assim.
Na última década a FUNAI - e no que vem sendo contestada por representantes de povos indígenas - tem se esmerado no rigor técnico ao iniciar um procedimento de identificação ou de revisão de terras indígenas. Escrevo isso porque integrei nos últimos oito anos a subcomissão de terras da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI). A FUNAI justificava nesse fórum seu rigor e cautela justamente por conta da crescente judicialização dos processos de reconhecimento de terras indígenas a partir do início deste século. Seus técnicos paralisaram procedimentos em curso, convocaram, via editais, novos antropólogos para retomar os estudos que consideravam insuficientes, de modo a elaborar laudos técnicos cada vez mais com enfoque judicial e não somente administrativo - justamente porque havia incorporado na sua cultura interna a tal "judicialização" como via "natural" dos laudos produzidos sob seus auspícios. A assessoria jurídica da Casa Civil deveria fazer plantão na diretoria de terras da FUNAI para inteirar-se como os laudos são ali técnica, política e juridicamente elaborados. Exigir da FUNAI mais respeito ao contraditório do que isto é golpe contra dos direitos territoriais indígenas.
Portanto é no mínimo ingenuidade, ou ignorância calculada, alegar, como o faz a Ministra Hoffmann, que "em função do avanço expressivo das demarcações, a maior parte dos processos nas áreas encontra-se em litígio judicial". O que avançou não foram as demarcações (os dados estão aí para comprovar: os governos do PT foram os que menos demarcaram!) mas o contexto regional e político onde os procedimentos de reconhecimento de terras indígenas se aplicam agora, isto é, na última década: nas "regiões" do latifúndio (os Matos Grossos e partes do nordeste) ou do minifúndio (sudeste), dois contextos nos quais uma real e efetiva reforma agrária deveria ter sido efetivada a muito tempo. Trata-se de contextos onde a regularização fundiária se deu por sobre os direitos territoriais indígenas (como no Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com as políticas estaduais de "colonização" nas décadas de 1950-1960) e com base em uma repressão vergonhosa e ultrajante das reivindicações indígenas (e o recém-descoberto "Relatório Figueiredo" está aí para provar). A judicialização na verdade é uma estratégia armada por representantes do agronegócio que, sobretudo nos governos do PT mas já antes destes, se armaram (por temor do "socialismo" petista talvez, e creio que porque não entenderam a Carta ao Povo Brasileiro) para dar uma resposta violenta e agressiva aos processo de regularização fundiária, seja, anteriormente, às ocupações do MST e, agora, às indígenas. E essa agressão tem nome: reintegração de posse. E investiram seu poder para convencer juízes de primeira instância da legitimidade de seus títulos e do valor sagrado da propriedade privada - e cuja "função social" constitucional é interpretada livremente, para dizer o mínimo.
Por isso tudo é suspeito argumentar que "são terras que os índios reclamam, mas que estão ocupadas por outros, principalmente agricultores, em boa medida, pequenos e de boa-fé". Os índios não "reclamam" estas terras (daí a distorção, demonstração cabal que o argumento da Ministra Hoffmann tem lado): eles as ocupam (a seu modo, como enfatiza o caput do artigo 231 da Constituição) ou as ocuparam e delas foram expulsos. A judicialização é uma estratégia de um lado (dos proprietários) e a Casa Civil deste Governo a encampou de um modo muito mais explícito que os anteriores. Pois se no Governo Lula a judicialização era motivo para atrasar o procedimento de reconhecimento das terras indígenas, hoje a própria Ministra Hoffmann vem nos dizer que "quando se configura litígio judicial, a decisão não depende do Executivo, mas da Justiça" para arrematar, sem pudor, que "a responsabilidade sobre o destino dessas áreas não é do governo, é do Estado brasileiro" - um exercício de ginástica argumentativa claramente objetivando a protelação e o investimento no conflito, via a reintegração de posse em benefício dos pretensos proprietários.
Quando a polícia federal "republicana" do Ministro Cardozo assassina um índio, Oziel Terena, em uma reintegração de posse não o fez "para evitar situações como essas". O fez para impor o medo aos índios, para intimidá-los, obrigando-os, sob armamento letal, a cumprir a lei, o ato de reintegração. O Governo "exagerou" neste cumprimento disseram seus porta-vozes, quando na realidade os terena da Terra Indígena Buriti tão somente reagiam, ocupando, e no cumprimento dessa mesma lei que nos impõe que a posse se prova na disputa. E isso independentemente de se tratar da posse indígena e que a jurisprudência já afirmou que é de outra natureza que a simples posse civil. Ou seja, os índios também estão reagindo ao e no processo de judicialização e uma maior "transparência", como quer impor, aos procedimentos da FUNAI não terá outra consequência do que protelar a efetivação dos direitos indígenas. "Até as pedras sabem" em quais princípios se baseiam os procedimentos da FUNAI no reconhecimento de uma terra enquanto terra de ocupação tradicional indígena: no caput do artigo no 231 da CF, no Decreto 1.775 e na Portaria no 14, também da lavra do insuspeito Ministro Nelson Jobin.
Portanto soa tão falso quanto uma moeda de três reais esta colocação da ministra Hoffmann: "a verdade (sic) é que as demarcações nas regiões antropizadas tornaram-se mais complexas, com registros de confrontos, tensões e atos de violência. Precisamos agir com moderação. A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota". E a morte de Oziel pela bala da Polícia Federal comprova esta derrota.
A alegada "transparência" da Ministra Hoffmann só tem por efeito dar mais peso ao outro lado, isto é, aos proprietários invasores de terras indígenas que é o lado que a Casa Civil deste Governo defende. E em nome do quê ou quem? Nos argumentos até aqui expostos da Ministra Hoffmann, escritos ou falados, depurando os exercícios retóricos, fica apenas os interesses dos proprietários rurais e sua bancada no Congresso em nome da qual tal se joga a invocada "governabilidade". Em suma: rifam-se direitos constituídos para que projetos do Governo sejam aprovados no Congresso. É assim que funciona uma democracia no tal Estado de Direito? Interesse$ de muitos por sobre os direitos das minorias?
Este Governo, e sua primeira-ministra, caíram - quiçá ingenuamente, admitamos também ingenuamente - na armadilha estrategicamente elaborada pelos ruralistas. E esta nova luta deles e de sua bancada no Congresso é mais fina, articulada, do que aquela que traçaram - e ganharam - na revisão do Código Florestal. Depois de ganha esta batalha estão indo para cima das terras indígenas e dos quilombolas. Mas diferentemente do Código Florestal, onde encontraram poucas resistências no Ministério do Meio Ambiente, os ruralistas agora enfrentam uma resistência mais consistente, e entenderam que estão frente a um processo histórico mais sofisticado e adquirido com a experiência nos processos judiciais das questões fundiárias indígenas. Anteviram que o buraco é mais em baixo: que a FUNAI não é o IBAMA e que a judicialização não se ganha sempre (vide Raposa-Serra do Sol e Marãiwatsede). Daí o combate sem tréguas à FUNAI e as tentativas de mudar o marco legal sob o qual o órgão atua, seja pretendendo esta mudança via Executivo (Portaria 303 da AGU) ou via Congresso (PEC 215, PLC 227 entre outros).
Para finalizar, um lembrete à Ministra Gleisi Hoffmann: não somos "todos brasileiros" neste Estado de Direito; os direitos indígenas são especiais (por que será que o Ministro Adams não recita essa cartilha no Planalto?) e os relativos à suas terras são, além de especiais, originários, isto é, anteriores à própria constituição do Estado brasileiro enquanto tal - diz o caput do artigo 231 da Constituição Federal. E além do mais as Terras Indígenas são bens da União dos quais os povos indígenas detêm apenas o usufruto exclusivo dos seus recursos naturais e sem direito à sua depredação! E se "o Estado não pode e não deve falhar no cumprimento do que a Constituição assegura aos índios" como escreveu a Ministra, fico pasmo em constatar que esse mesmo Estado, sob sua batuta, tem feito de tudo para justamente falhar: às claras quando trata de rever o papel da FUNAI, ou nos bastidores, quando aprova regime de urgência de leis no Congresso contra os direitos indígenas, como no caso da PLC 227.
Esperamos que a resistência e a coragem dos povos indígenas - e de servidores da FUNAI como este http://www.youtube.com/watch?v=ZG5fPwW65EM&feature=share - nos sirvam de exemplos para nos mantermos neste Estado de Direito, que ampara os direitos das minorias, e que foi construído com a morte, a tortura, o exílio e a resistência de muitos brasileiros, vários dos quais companheiros de trabalho da Ministra Hoffmann, incluindo sua chefa. O resto - e põe resto nisso! - é golpe contra o Estado de Direito vigente.
http://trabalhoindigenista.org.br/noticia.php?id_noticia=164
Índios:Direitos Indígenas
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