A terceira margem do rio: extração ilegal de madeira na fronteira do Brasil com o Peru

Horizonte Geográfico n. 152, abr., 2014, p. 48-57 - 30/04/2014
A terceira margem do rio: extração ilegal de madeira na fronteira do Brasil com o Peru
Extração ilegal de madeira, plantações de coca e invasão de terras indígenas: na Amazônia, na fronteira entre Brasil e Peru, o distante mundo civilizado ameaça a floresta virgem

Fellipe Abreu

Apesar do ronco forte do motor peque-peque, o barco não passa de angustiantes 10 quilômetros por hora. Sentado na proa, observo dois países e uma só floresta. De um lado, o Brasil. Na margem oposta, o Peru. Após algumas horas de viagem pelo rio Javari, fronteira natural entre os dois, cruzamos com um menino, que nos acena da margem peruana. Leo espera por uma carona para casa depois de mais um longo e exaustivo dia de trabalho. Seu ganha-pão suado vem da colheita de folhas de coca em uma das plantações ilegais da região.

Com apenas 15 anos de idade, ele faz uma média de 50 centavos de real para cada quilo de folha de coca colhido. A fiscalização é precária no vale do Javari, terra dos índios marubo, matsés, matís, kanamari, kulina, korubo e outras etnias em estágios distintos de isolamento. Em pleno século 21, essas tribos seguem suas vidas a uma grande distância de algumas das benesses do mundo civilizado, mas perto demais de uma de suas mazelas mais dramáticas: a do comércio ilegal.

A economia informal que movimenta um número maior de pessoas na região é certamente a da madeira. Depois de três meses morando em Tabatinga, no estado do Amazonas, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, parto para uma viagem de 70 dias pelo vale do Javari, uma das áreas mais inóspitas e desconhecidas de toda a América do Sul. A primeira parada no roteiro: um acampamento de extração ilegal de madeira.

Cai o último cedro
Mesmo em fim de temporada, a rotina precede os primeiros raios de sol no acampamento madeireiro comandado por Dom Francisco (seu nome é fictício, assim como o de todos os personagens desta reportagem, à exceção de autoridades e funcionários de órgãos públicos federais). Antes mesmo de acordar, escuto os mosquiteiros abrirem e o ruído arrastado dos passos no assoalho de madeira. Arrumo minhas coisas e recordo que na pauta do dia está programada a derrubada de um cedro. De acordo com Dom Francisco, "o último dos 30 retirados da mata este ano".

O acampamento se encontra a duas horas de barco da base militar brasileira de Estirão do Equador. Mas, por estar do lado peruano da fronteira, os soldados nada podem fazer. "É proibido trabalhar com madeira nesta área", explica Francisco. Só que não há fiscalização e "a Polícia Nacional do Peru sabe de tudo o que fazemos aqui".
A cada ano, um novo acampamento é montado, em uma rotina itinerante orientada pela oferta de madeira de lei. "Os policiais da Base de Carolina (localizada no rio Yavarí Mirim) já me procuraram para combinar a propina. Vou ter que pagar mil soles a cada um (o equivalente a 800 reais)."

Após 30 minutos de caminhada, Daniel, filho de Francisco, observa a árvore com a motosserra nas mãos. Ele começa com cortes triangulares na base do cedro para fragilizá-lo. Quando ouvimos o estalo, nos afastamos. Em segundos a árvore centenária vai ao chão e leva consigo outras menores, em uma sinfonia de troncos rangendo.

Daniel corta a madeira em quatro toras de 4 metros de comprimento cada uma e, ajudado por outros cinco homens, abre caminho limpando o terreno até o igarapé mais próximo, distante uns 300 metros. Então vem a parte cansativa: empurrar as toras, uma a uma, floresta adentro. Todos participam. Com a ajuda de um bastão, um dos homens, chamado de palanqueador, dá direção à madeira e orienta os movimentos.

Uma vez na beira do igarapé seco, as toras esperam a próxima chuva forte. Com o alagamento da área, a madeira vai boiar e seguir o curso das águas até um lago vizinho ao rio Javari. Os quatro fragmentos devem se juntar a todas as demais 380 toras já retiradas e, poucos dias depois, serão anexados a um comboio de madeira ainda maior.

Uma semana depois, me desloco para Nueva Esperanza, comunidade peruana na margem do rio Yavarí Mirim, afluente do Javari. O povoado surgiu após o boom da atividade madeireira, que fez despontar na região uma série de vilarejos, nos quais os moradores são sempre madeireiros, parentes de madeireiros ou, então, comerciantes dependentes do dinheiro da madeira.

Antonio, habitante de Nueva Esperanza, é um habilitador. Assim são chamados os patrões: homens que emprestam o dinheiro e financiam uma série de acampamentos. À época das chuvas, quando todas as árvores de todos os acampamentos por ele bancados já estão tombadas, Antonio passa para anexar tudo ao seu comboio e acertar as contas com os madeireiros habilitados - Dom Fernando é um deles.

Estimativas de pesquisadores indicam que 80% da madeira retirada do Peru é extraída de maneira ilegal. Sabe-se que na porção peruana do vale do Javari existe um comércio - fora da lei - de venda de documentos para acobertar a origem da madeira. Como o órgão responsável naquele país, o Instituto Nacional de Recursos Naturales (INRENA), não tem um inventário das árvores locais, a ação é facilitada. Dessa forma, os madeireiros podem retirar a árvore de qualquer lugar da floresta, mesmo que ilegalmente, pois a documentação adulterada "esquenta" a origem da madeira: sua procedência aparece no papel como sendo de uma área com exploração legalizada.
Outro problema são as denúncias de exploração de madeira do lado brasileiro, que também é "lavada" como se tivesse saído do Peru. Para Gustavo Pivoto, delegado da Polícia Federal de Tabatinga, "na época da estiagem, esses homens podem entrar no lado brasileiro e passar meses extraindo madeira. Com as chuvas, os igarapés se enchem e as toras são jogadas no Javari, que é um rio internacional. Não temos como comprovar de onde as árvores vieram".

Descubro outros desdobramentos da ilegalidade sem fronteiras no município de Atalaia do Norte, no interior do Amazonas. Ali, um homem chamado Paulo trabalha como funcionário da prefeitura; entretanto, como o limiar entre legal e ilegal é tênue nesta parte da Amazônia, ele acumula outras funções para complementar a renda. Além de se ausentar do serviço por alguns dias da semana para caçar animais silvestres - o que é proibido na região -, ele trabalha às vezes como madeireiro.

Acompanho Paulo em uma viagem até o igarapé Soledad, dentro da área da comunidade indígena de Fray Pedro, no Peru, onde em uma tacada só ele vai retirar duas árvores e passar três dias caçando. Para tanto, o brasileiro contrata indígenas da própria comunidade e lhes dá cartuchos para a espingarda e sal para a carne. Armadilhas são espalhadas no meio da floresta e noite adentro Paulo espreita os animais.

O fato de estarmos em uma área indígena me deixa receoso. "Não tem perigo. Todos me conhecem", tranquiliza Paulo. "Eu já retirei muita madeira de terras indígenas peruanas. Pra que correr o risco de ser preso no Brasil se eu posso atravessar o rio e pegar sem problema algum?" Ele explica que, para explorar madeira no interior de uma terra indígena, é preciso conversar com o cacique, que costuma organizar uma reunião com os líderes locais para estudar a proposta. "Aqui mesmo em Fray Pedro eu já retirei 30 toras de cedro em troca de um dia de trabalho para o cacique."

Plantações de coca
Depois de uma hora de caminhada selva adentro a partir da margem peruana da fronteira, na altura de uma comunidade chamada Remanso, chego a um grande descampado. No meio dele, próximo a um riacho, avisto uma construção suspensa, toda de madeira, sem paredes e com cobertura de palha. É a casa onde vivem Juan e Perla, com seus dois filhos.

O casal, hospitaleiro, nos convida para o almoço. Enquanto os homens conversam à mesa, as duas crianças brincam no chão e Perla prepara um jabuti ensopado na lenha. Ao fundo, o jardim da casa se descortina pela janela: uma grande clareira coberta por folhas verdes, cortada por um pequeno riacho e cercada por uma impetuosa floresta fechada. É uma plantação de coca.

Ali Juan trabalha para sustentar a família. Dos mil metros quadrados de cultivo, "a gente colhe 1 200 quilos de folhas de coca, que depois de refinada vai se transformar em 2 quilos de pasta de cocaína", comenta. "O valor depende do mercado. Se tem muita oferta, o preço cai. Como a Polícia Federal acaba de botar uns barcos pra vigiar os principais caminhos que levam à tríplice fronteira, agora o valor deve estar perto de 3 mil reais o quilo."

De acordo com Gustavo Pivoto, o efetivo da delegacia da Polícia Federal de Tabatinga é de 30 homens, entre agentes, delegados e escrivães. Esses profissionais são responsáveis por monitorar toda a região da fronteira com o Peru até o Acre, onde fica a outra delegacia da PF, em Cruzeiro do Sul, no estado vizinho, a 500 quilômetros em linha reta de Tabatinga. Mas é a geografia que dificulta: "Em uma única diligência podemos gastar até 5 mil reais só de combustível para o barco". Custa caro fazer segurança na floresta.

Pivoto estima que, "de toda a cocaína que sai do Peru e entra no Brasil por esta fronteira, conseguimos interceptar no máximo 10%". O restante passa e segue pelo rio Solimões até Manaus, de onde a droga é distribuída para o resto do Brasil e do mundo. Dados da ONU indicam que o Peru é hoje o maior produtor mundial de coca, à frente inclusive da Colômbia.

O gás natural e os índios
Sete dias de barco separam Atalaia do Norte da aldeia Maronal, agrupamento indígena da etnia marubo, no extremo sul do Amazonas, quase na fronteira com o Acre - ela está entre as comunidades indígenas mais isoladas do Brasil.

Essa porção do vale do Javari desperta o interesse da indústria petroleira há tempos. A Petrobrás realizou estudos sísmicos com o objetivo de verificar o potencial petrolífero da região na década de 1980. Trinta anos depois, a demanda crescente, as altas nos preços do petróleo e a economia brasileira em expansão fizeram com que a área voltasse a integrar a agenda do setor.

Do lado brasileiro, um bloco exploratório de gás natural localizado na divisa do Acre com o Amazonas (na fronteira com o Peru) acaba de ser arrematado em um leilão da Agência Nacional do Petróleo. O desafio da exploração deve ser grande: a área em questão fica praticamente na divisa da Terra Indígena Poyanawa e a 39 metros da Terra Indígena Nukini.

No outro flanco da fronteira, devido à crescente exploração de gás natural na Amazônia peruana, tribos de índios isolados estariam migrando para o Brasil. "Temos monitorado uma mudança das dinâmicas de ocupação territorial das populações indígenas no lado brasileiro", afirma o sertanista Carlos Travassos, da Funai. "O contato desses povos com exploradores é preocupante e pode levar a epidemias trágicas", completa.

Mesmo entre comunidades indígenas já há muito contatadas, os problemas de saúde persistem. Em São Meireles, no Amazonas, onde residem indivíduos da etnia matsés, dona Elizabete Canémal mal consegue se levantar da rede, tamanha é a dor no abdômen. Na rede artesanal de tucum, ela se contorce, com a mão à altura do fígado. Um enfermeiro do governo estadual prepara o medicamento que vai ser injetado na veia para aliviar o sofrimento.

Dona Elizabete contraiu hepatite B, que se tornou crônica pela falta de tratamento adequado. As dores agudas indicam que a doença impiedosa avança. Alejandro, seu marido, é pai de 18 filhos, oito com Elizabete e outros 10 com Glória, a segunda esposa do índio poligâmico. É muito provável que boa parte das crianças também esteja infectada.

Alejandro, Elizabete e Glória são peruanos. Sem nenhum tipo de assistência por parte do governo daquele país, em 2008, junto com outros 49 familiares, eles abandonaram seus locais de nascimento e atravessaram o Javari em busca de uma vida mais digna no Brasil. Desde 2011, tornaram-se cidadãos brasileiros. "Dois anos depois que nos mudamos pra São Meireles", recorda Alejandro, "recebemos a visita de uma equipe de saúde." Aquele foi o primeiro atendimento médico de suas vidas.

Horizonte Geográfico n. 152, abr., 2014, p. 48-57

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PIB:Javari

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