O sol e outras histórias

Valor Econômico, EU& Fim de Semana, p. 26-27 - 30/05/2014
O sol e outras histórias

Por De São Paulo

Foi emocionante ver há poucos dias os cocares erguidos na Livraria da Vila, em São Paulo, numa cena que se repetiria na Livraria da Travessa, em Botafogo. Dois xavantes e dois karajás autografavam livros de capas gráficas e explicavam aos presentes como e por quê haviam chegado até ali. "Tá na hora de os brasileiros conhecerem os outros brasileiros, de parar de ter esta divisão", dizia em voz suave o jovem xavante Caimi Waiasse. "Está na hora de compartilhar o que temos de bom." Passou da hora, a bem dizer. Na seção infantil há dezenas de piratas da perna de pau e bruxas com verrugas e baleias de purpurina e elfos magrelas e crianças urbanas neurotiquinhas. Surpreendente perceber que só agora, pela iniciativa de uma jornalista, uma pequena editora e alguns índios, chegam finalmente às prateleiras poderosos urubus-rei, lobos guarás sedutores, onças cegas e tamanduás vingativos.
Uma pequena parte da mitologia indígena narrada nas aldeias pelos mais velhos é reproduzida no livro "Ynyxiwè que Trouxe o Sol e Outras Histórias do Povo Karajá" e "Aihö'ubuni wasu'u - o Lobo Guará e Outras Histórias do Povo Xavante". "Minha relação de amizade com os xavantes e karajás é antiga, assim como a ideia de fazer este projeto", conta a jornalista Angela Pappiani, que conseguiu levar adiante a iniciativa com patrocínio da Petrobras e o trabalho de sua produtora, a Ikore. Angela foi casada 25 anos com Ailton Krenak, uma das lideranças mais atuantes à época da aprovação do capítulo sobre os direitos indígenas na Constituição de 1988. Os laços com o povo Iny (como se autodenominam os Karajás) da aldeia Fontoura e com o povo A'uwe uptabi (o nome dos xavantes) da aldeia Etenhiritipá, ambas no Mato Grosso, vêm desta fase. Assim como a ideia dos dois livros.
O foco era fazer um acervo das histórias para a própria comunidade. "Elas estão se perdendo com a morte dos velhos e com as influências de fora. Com a televisão chegando na aldeia, ninguém mais fica na porta de casa de noite, sentado em roda na esteira, para contar e ouvir histórias", segue Angela. O resultado é um belo trabalho multimídia que envolveu várias gerações nas aldeias. Os índios mais jovens, adeptos das novas tecnologias, registraram as narrativas dos mais velhos. Foram coletadas 50 histórias em áudio, ilustradores indígenas fizeram os desenhos. As comunidades elegeram seis lendas que foram traduzidas para o português. Os livros vêm com CDs com as histórias em português e no idioma de cada povo. Há cantos entre as narrativas. É um trabalho encantador.
É assim que se descobre que, para os xavantes, povo nômade de tradição guerreira, "no tempo dos ancestrais, no tempo do poder", havia mulheres que andavam pela mata, "tinham vagina, mas não tinham seios. E mesmo sendo mulheres, eram guerreiras." Ou que os karajás guardam o segredo de como surgiu a chuva, que os relâmpagos têm a ver com o piscar de olhos do Biu (para saber quem ele é, leia a história) e os trovões, com golpes que ele dá na própria barriga. "Nosso mundo era o mundo da oralidade. A gente guardava nossa história só na memória. Quando o ancião morre, leva suas histórias junto. Com este projeto podemos guardar as histórias no papel e ficar para as futuras gerações", disse o jovem karajá Elly Mairu em sua primeira visita a São Paulo.
A tiragem inicial, de 3 mil exemplares, foi 80% distribuída em escolas indígenas, bibliotecas e secretarias de Educação de Palmas e Cuiabá, Canarana e São Félix do Araguaia. "São regiões preconceituosas, onde a relação com as aldeias é ruim. Talvez um livro bonito ajude a fazer com que apareça o respeito por estes povos", diz Angela. "E para um universo maior, é a tentativa de trazer algo da literatura indígena. Estes mitos são os nossos."

Valor Econômico, 30/05/2014, EU& Fim de Semana, p. 26-27

http://www.valor.com.br/cultura/3568040/o-sol-e-outras-historias
Produção Cultural:Literatura

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