JF em Erechim (RS) anula portaria de demarcação da Terra Indígena de Matto Preto

Justiça Federal - Seção Judiciária do Rio Grande do Sul - www.jfrs.jus.br - 09/09/2015
A 1ª Vara Federal de Erechim (RS) anulou uma portaria do Ministério da Justiça que declarou como de ocupação tradicional indígena guarani uma área de 4.230 hectares localizada entre os municípios de Erechim, Erebango e Getúlio Vargas. A sentença, proferida nesta tarde (9/9) pelo juiz federal substituto Joel Luis Borsuk, toma por base a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e diversos documentos históricos sobre a colonização no local.

A Portaria no 2.222/2012 seria resultado do Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena do Matto Preto, publicado em novembro de 2009 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O ato normativo seria a terceira das sete etapas que concretizam o processo administrativo de levantamento fundiário e demarcação de territórios indígenas.

Conduzidos por antropólogos, os estudos teriam iniciado em junho de 2005. Em 2006, o Ministério Público Federal (MPF) ingressara com uma ação civil pública buscando intervenção judicial para a conclusão dos trabalhos. A sentença que determinou o cumprimento dos prazos definidos em lei foi publicada em 2011, mas sua execução provisória permanece suspensa por força do julgamento de um recurso no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.


Requerimento de nulidade


Em novembro de 2012, 108 produtores rurais residentes na região afetada ajuizaram ação ordinária contra a Funai e a União contestando o relatório e pleiteando a declaração de nulidade do ato normativo editado pelo Ministério da Justiça. De acordo com os autores, em torno de 300 famílias detentoras do domínio e da posse de imóveis rurais estariam na iminência de serem removidas para dar lugar ao grupo indígena Chiripá e Mbya, que atualmente estaria composto por aproximadamente 70 integrantes. Conforme alegaram, as propriedades seriam exploradas em regime de agricultura familiar, constituindo-se na única fonte de sustento dos moradores.

A fundação contestou, destacando que o procedimento de identificação e delimitação da Terra Indígena de Matto Preto teria seguido todas as etapas estipuladas no Decreto no 1.775/96, comprovando a tradicionalidade da área. Discorreu, ainda, sobre as características da ocupação e posse da terra pelos indígenas baseada na teoria do indigenato, argumentando se tratar de um direito originário que não decorreria de nenhum outro e de nenhuma situação fática que não a própria história dos índios no Brasil.

Já a União sustentou que o procedimento administrativo teria tramitado regularmente, com observância do devido processo legal e respeito ao contraditório e à ampla defesa. Afirmou, também, que o Plenário do STF teria ressalvado que a tradicionalidade da posse da terra teria como limite a promulgação da Constituição Federal. Argüiu que essa característica não se extinguiria em função de posterior desocupação caso houvesse tentativas de retomada da área e que essas tenham sido mal sucedidas em decorrência de esbulho por parte de não-índios.

Atuando como interessado, o Ministério Público Federal (MPF) defendeu que as definições de ocupação tradicional ou do que seria necessário ou não para a sobrevivência física e cultural da comunidade indígena deveriam ser realizadas por aqueles que a integram. Ressaltou que a relação do silvícola com a terra não possuiria natureza puramente econômica, mas existencial, adotando um caráter de direito identitário, integrante do conceito de dignidade humana.


Definições sobre a "ocupação tradicional" da terra


Ao analisar o caso, o magistrado ressaltou que a Constituição Federal (CF) teria assegurado aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, determinando que, na identificação dos limites dos espaços ocupados por cada comunidade, fossem considerados os seus usos, costumes e as suas tradições. Ele ponderou, entretanto, que, de acordo com os balizamentos estabelecidos pelo STF, o conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" não abrangeria áreas de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas em passado remoto. Da mesma forma, o marco temporal para a definição da ocupação seria 5 de outubro de 1988, data da promulgação da CF/88.

"Primeiro, é importante registrar que a atual ocupação dos índios guaranis na região de Matto Preto iniciou no mês de setembro de 2003 com um 'acampamento de retomada', em uma área pública às margens da rodovia RS-135 e do leito da ferrovia Santa Maria-Marcelino Ramos, sendo tal ponto incontroverso", ponderou. "Controvertem as partes a respeito apenas quanto ao conceito que deve prevalecer acerca do que seja ocupação tradicional indígena; ou seja, as suas implicações com a ocupação passada da área e/ou a existência de esbulho renitente por parte de não índios - e neste caso o seu conceito, existência no caso concreto e até quando teria perdurado", complementou.

Segundo Borsuk, pela memória oral dos indígenas coletada no processo administrativo e pela documentação histórica juntada aos autos, é possível determinar que houve a criação formal, por parte do Estado do Rio Grande do Sul, de uma área destinada aos guaranis com 223,635 hectares na década de 1920. Na ocasião, a Floresta de Matto Preto teria sido dividida em três polígonos, dos quais dois se destinariam à colonização e um terceiro teria sido reservado aos índios.

Em período anterior, entretanto, não teriam sido encontrados documentos que referendassem a presença da etnia no local. "Em mapa de 1910 da planta da Colônia Erechim, elaborada no mesmo ano de 1910 e juntada pelos autores, é possível observar a área reservada para a Floresta Protetora de Matto Preto, que depois, em 1928, seria discriminada e parte da área destinada aos índios guaranis. Na referida planta de 1910 é possível observar que já existia a referência ao Toldo Ventarra dos índios Kaingang, mas nenhuma referência à presença de índios guaranis", esclareceu.

Ele mencionou, ainda, um mapa elaborado em 1916 sobre a Situação dos Toldos existentes no estado e Ofícios da Comissão de Terra e Colonização de Erechim, datados de 1918, 1919 e 1921, onde constavam menções a outras tribos. "Não é possível compreender qualquer razão para que a alegada presença guarani na região de Matto Preto tenha sido ignorada de tal forma pelos órgãos do Estado do Rio Grande do Sul por tantos anos até a década de 1920, muito embora fartamente documentadas as migrações de Lagoão para o Lajeado Liso e Lageado Laço, e, por fim, inclusive e efetivamente, para a região de Matto Preto", avaliou.


Impedimentos à retomada da área


Conforme esclareceu, a documentação teria mostrado que a ocupação teria perdurado desde os anos de 1920 até meados da década de 1930, quando os guaranis teriam deixado a região. "Resta, pois, analisar se a reocupação ao tempo da promulgação da Constituição Federal não se deu por conta de renitente esbulho por parte de não-índios", mencionou.

"Ainda que se admita que houve esbulho renitente por parte de não-índios até a desocupação completa da área pelos indígenas, o que, aliás, foi reconhecido nesta sentença, é incontroverso que na data da promulgação da CF/88 não havia qualquer conflito possessório, esbulho renitente de não-índios ou obstinação dos indígenas na busca da retomada das terras, circunstâncias que deviam se materializar em circunstâncias de fato e não mero desejo psíquico interno", comentou.

"Nesse sentido, é importante registrar que desde o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso Raposa Serra do Sol no ano de 2009, vários outros casos envolvendo a demarcação de terras indígenas foram objeto de julgamento pelo Poder Judiciário, inclusive pelo próprio STF, quando, então, se delineou que situações como a retratada nestes autos não configuram esbulho renitente apto a excepcionar a questão da interpretação quanto ao marco temporal da ocupação indígena a ser considerado. Portanto, no caso concreto não se verifica ocupação tradicional dos índios guaranis na região de Matto Preto ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), sempre devendo ser salientado que o STF não compreende a palavra 'tradicionalmente' como posse imemorial", esclareceu.


Outras possibilidades


Para Borsuk, a adoção da teoria do indigenato sem outras condicionantes que não a posse imemorial poderia causar graves distúrbios sociais, à medida que seria permitida, a rigor, a demarcação de terras indígenas em qualquer parte do território nacional. Segundo disse, a medida em nada contribuiria para a solução da questão quanto às terras de que efetivamente necessitam e fazem jus as comunidades indígenas, "como bem demonstra o presente feito em que os índios guaranis estão em acampamento precário às margens de uma ferrovia e rodovia desde o ano de 2003 sem perspectiva a curto e médio prazo de uma solução".

A interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, contudo, não impediria a criação de áreas para os índios por outras formas jurídicas, ainda que no mesmo local em que se reconheçam ausentes os requisitos para a demarcação. Entre as alternativas, estaria a compra de terras ou mesmo a desapropriação por interesse social, neste caso mediante prévia e justa indenização em dinheiro, não só das benfeitorias mas também da terra nua - o que não acontece atualmente.


Declaração de nulidade e antecipação de tutela


Pela ausência dos requisitos estabelecidos no artigo 231 da Constituição Federal, o juiz julgou procedente a ação. Borsuk anulou a Portaria Declaratória no 2.222/2012 do Ministério da Justiça, que declarava como de ocupação tradicional do grupo indígena Guarani Chiripá e Mbya uma área com superfície aproximada de 4.230 hectares e 30 km de perímetro nos municípios de Erebango, Getúlio Vargas e Erechim.

Também foi concedida antecipação de tutela para sustar o prosseguimento dos atos de demarcação da denominada "Terra Indígena de Matto Preto". Cabe recurso ao TRF4.

No 5004427-72.2012.4.04.7117/RS

http://www2.jfrs.jus.br/?p=24413
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