O MPF (Ministério Público Federal) entrou com uma ação civil pública contra a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a União, pressionando o governo para que conclua o procedimento administrativo da demarcação da terra indígena Comexatibá, situada em Prado, no extremo sul da Bahia.
A ação é baseada num estudo de delimitação e identificação da terra indígena, feito pela própria Funai e publicado no DOU (Diário Oficial da União) em 27 de julho de 2015.
O documento da Funai reconhece como terra indígena uma área de 28.000 hectares, sendo 28 km de praia quase deserta, onde estão hotéis e pousadas de luxo. No total, há 78 propriedades dentro da área considerada indígena, a maioria fazendas.
Por causa da publicação do estudo no DOU, o clima de tensão, que já vinha crescente na região desde 2008, quando se intensificaram as ações de retomadas (ocupações de fazendas) por parte de índios, acabou ficando pior.
Incêndio criminoso
No início do mês passado, uma da cabana de artesanato indígena foi incendiada por seis homens ainda não identificados. Segundo o MPF, o prejuízo estimado foi de cerca de R$ 20.000.
"Acredita-se que o ataque foi motivado pela insatisfação dos proprietários de terra locais com o resultado dos estudos da Funai. Esses fatos já estão sendo investigados", informou o MPF.
A procuradora da República Marcela Fonseca espera que a conclusão do processo demarcatório tenha efeito pacificador dos conflitos pela disputa de terra na região.
Na ação civil pública, do dia 27 de agosto, o MPF pediu que a Funai e a União cumpram os prazos previstos na legislação e finalizem o procedimento demarcatório em 180 dias.
A terra indígena Comexatibá é composta por cinco aldeias (Kaí, Pequi, Tibá, Taxá e Alegria Nova), cuja ocupação histórica no extremo sul da Bahia é registrada desde o século XVI, segundo estudos da Funai.
Procurada, a Funai não deu retorno.
Área privilegiada
A terra indígena Comexatibá equivale a pouco mais de 28.000 campos de futebol e está localizada nos arredores do balneário de Cumuruxatiba, pequena vila de pescadores a 45 km de Prado (794 km de Salvador).
Os limites do território foram publicados dez anos após o estudo de campo do grupo de trabalho coordenado pela antropóloga Leila Silvia Burger Sotto-Maior.
O documento é o segundo passo para regularizar a terra indígena e os interessados em contestá-lo têm prazo de 90 dias.
Após isso, a Funai terá dois meses para novos argumentos e o Ministério da Justiça decidirá se segue com a regularização ou não.
Hotéis em risco
Um dos principais empreendimentos da região é o Tauana Hotel, localizado na praia da Ponta do Corumbau, muito visitada por turistas brasileiros e estrangeiros.
Projetado e construído pela arquiteta portuguesa Ana Catarina Ferreira da Silva, que investiu R$ 5 milhões, o hotel foi vendido em 2010 (quatro anos após o funcionamento), por valor não divulgado, a um grupo de brasileiros e estrangeiros.
No hotel a diária chegava a R$ 1.800, mas agora a hospedagem está mais restrita aos conhecidos dos proprietários.
O Tauana Hotel ganhou rápido destaque no ramo da hotelaria internacional de luxo. Em 2008, dois anos após ser concluído, apareceu na lista do guia dos hotéis das Américas, editado pela Condé Nast Johanses.
O hotel foi erguido com nove cabanas, cada uma com 130 metros quadrados, em frente à praia, e um coqueiro com mais de 80 anos, próximo de um riacho que deságua no mar.
O Tauana está há 4 km da Barra do Cahy, onde os portugueses teriam desembarcado durante o processo de descoberta do Brasil.
O gerente do hotel, Jacob Ferreira, informou que há um clima de medo na região por causa da delimitação do território.
"Os índios já invadiram várias fazendas ao redor do hotel, mas nunca entraram aqui, onde quase a metade dos 25 funcionários é indígena", declarou Ferreira, informando depois que os donos do hotel vão contestar o documento da Funai.
Justiça tardia
O mesmo pretende fazer o dono da Pousada Rio do Peixe, Luiz Polaco. "Já contratamos um antropólogo para fazer nossa contestação. Todos nós temos como provar a cadeia sucessória das posses dos terrenos, que têm mais de 100 anos", ele afirmou.
Segundo Polaco, que investiu R$ 3,5 milhões em sua pousada, há na região "um pequeno grupo de índios que fica incitando os demais [indígenas] contra os fazendeiros e donos de hotel".
A dona da Pousada É, Ester Correia, acha que ainda vai demorar muito para ocorrer a regularização da terra indígena. "Isso só daqui há 20 anos. Quando sair, eu já morri", declarou ela. O investimento na Pousada É, segundo disse, foi de R$ 2 milhões.
As ações de contestação deverão ser feitas em conjunto pela Associação para Preservação do Pólo do Descobrimento, presidida pelo italiano Andrea Borghesi, que chegou a comprar um terreno na região que os índios reivindicam.
A intenção do italiano era construir um resort de luxo, mas a área acabou virando fazenda de gado, segundo moradores locais. Procurado, Borghesi, que mora em São Paulo, preferiu não dar declarações.
A cacique da aldeia Cahy, Jovita de Oliveira, disse que "nosso povo sempre habitou aqui essa área [delimitada pela Funai]. Meu bisavô contava histórias dos nossos antepassados, dos nossos costumes. Ele me ensinou muito segredo da mata."
A índia lembra ainda do desmatamento na região: "Quando era criança via muita madeira sendo tirada da mata por grandes caminhões, era uma tristeza só, mas não podíamos fazer nada. Índio não destrói a mata, vivemos em harmonia com ela, pois é ela que sustentou meus avós, meus pais, me sustenta e sustentará meus filhos e netos."
Região vive clima de tensão devido aos conflitos
Em meio à beleza natural que atrai ao extremo sul da Bahia brasileiros e estrangeiros, há também um clima de tensão por causa dos conflitos por disputas de terras, que vêm se acirrando desde 2008.
Já foram realizadas dezenas de manifestações por parte dos índios, com fechamento de rodovias e ocupações de fazendas, numa ação que os índios chamam de "retomada".
Além da terra indígena Comexatibá, os índios da região querem também a ampliação de 8.000 hectares para 54.000 hectares da terra indígena Barra Velha, considerada "aldeia mãe" pelo povo pataxó.
Atualmente, os índios da Comexatibá ocupam 14 fazendas, sendo que para duas já foram emitidas pela Justiça Federal liminares de reintegração de posse, em 14 de julho.
Os indígenas dizem que estão sendo intimidados por pistoleiros a saírem das fazendas.
Com a publicação do relatório da Funai, os pataxós esperam que as liminares, as quais ainda não foram cumpridas pela Polícia Federal, possam ser derrubadas.
"Veio um policial militar aqui na aldeia dizer para a gente sair logo, e eu afirmei que vamos resistir. Não queremos brigar com ninguém, apenas regularizar nossas terras. Mas quem for de bem pode ficar nelas", disse a cacique Jovita de Oliveira, da aldeia Cahy.
A população indígena a ser beneficiada com o território é de 723 pessoas.
Referência aos índios é de 1577, diz antropóloga
De acordo com a antropóloga Leila Sotto-Maior, as iniciativas de recuperação da posse do território indígena ocorreram nos chamados "lugares dos antigos pataxós", em áreas de capoeira situadas nas beiras dos rios.
A antropóloga afirma que as referências aos pataxós remontam ao século XVI. "Mais precisamente ao ano de 1577, quando a presença deste povo na faixa litorânea da região entre os municípios de Porto Seguro e Prado foi registrada", escreveu Leila no relatório da Funai.
De acordo com ela, "os primeiros contatos com os Pataxó se deram no fim do século XVIII e início do século XIX", sendo que em abril de 1861 os indígenas foram aldeados nas margens do rio Corumbau, na atual área em disputa.
Aldeados e isolados, os índios chegaram a ser considerados extintos da Bahia por meio da Lei Estadual no 198, de 1887. E tiveram seus territórios tomados por grandes proprietários de terras.
"Em sua maioria, os índios eram obrigados a assinar a venda da posse por valores irrisórios ou em troca de 'mulas cegas e animais velhos'. No caso de não concordarem, eram ameaçados de morte, espancados e violentados", afirma Leila.
Dados do IBGE de 2013 apontam que a população pataxó é de 13.588, sendo 6.982 homens e 6.606 mulheres, distribuídos em seis terras indígenas no extremo sul da Bahia: Barra Velha, Coroa Vermelha, Mata Medonha, Imbiriba, Aldeia Velha e Comexatibá.
Chefe de parque diz que índios degradam área ambiental
Os índios pataxó também enfrentam problemas com as áreas do Parque Nacional do Descobrimento (área ambiental federal criada em 1999) e a de um assentamento rural do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
A área delimitada pela Funai ocupa uma parte do parque ambiental e outra parte do assentamento, criado em 1987.
No local, contudo, ao invés de beneficiários da reforma agrária, estão posseiros que compraram terras dos que ganharam lotes do governo.
Segundo o Incra, há 33 lotes ocupados de forma irregular. O órgão entrou com ações de reintegração de posse contra os ilegais e espera retomar as terras. Os índios vêm promovendo "retomadas" dentro do assentamento.
As sobreposições de áreas ficaram de ser resolvidas numa tentativa de conciliação na Advocacia Geral de União, mas não houve acordo, por desinteresse do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade), que administra o parque ambiental.
Em agosto de 2014, o Ministério Público Federal baixou uma portaria para acompanhar o caso.
O Incra informou que começará a definir o processo para adequação ao estudo da Funai: "Para isso, enviará uma equipe de agrimensores para medir as poligonais das áreas. Também começa a planejar o reassentamento das famílias com perfil para reforma agrária dos assentamentos Corumbau e Cumuruxatiba incluídos na nova reserva, caso a área seja decretada como território indígena."
De acordo com o ICMBio, no parque de 22.649 hectares os índios ocupam o setor norte, onde já construíram pequenas casas.
"Eles já degradaram cerca de 800 hectares de mata, com a retirada ilegal de madeira, queimadas e a caça de animais silvestres. Estão respondendo a processo por degradação ambiental. Ano passado, conseguimos prender três deles", declarou o chefe do Parque Nacional do Descobrimento, Geraldo Machado.
Sem índios
O chefe do parque afirmou que em 2014 os índios ocuparam por cinco meses uma base de combate ao desmatamento dentro da área ambiental, "sumindo com equipamentos de combate a incêndio e danificando dois veículos".
Machado diz que atua na área do parque desde a década de 1990 e que "nessa época não havia a presença de índios na região do parque".
O cacique pataxó José Chico Timborana negou que os homens presos sejam índios e defendeu a presença deles na área do parque.
"Aqui tem muitos caçadores, eles aprontam e acaba sobrando para a gente. Não degradamos o parque, cuidamos dele e somos parceiros ambientais", garantiu.
José Chico Timborana afirmou que possui registros documentais de que eles habitam a área do parque ambiental desde 1943.
http://www.aratuonline.com.br/suicabaiana/2015/09/02/mpf-aciona-funai-para-agilizar-demarcacao-de-terra-indigena/
PIB:Leste
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