Dois pajés, de etnias diferentes, se encontram em aldeia de Biguaçu, na Grande Florianópolis

Diário Catarinense- http://dc.clicrbs.com.br - 18/06/2016
Era um fim de tarde quando o pajé de uma tribo Kaxinawá do interior da floresta Amazônica, no Acre, visitou o pajé de uma tribo Guarani, em Biguaçu, na Grande Florianópolis. O encontro informal dos dois líderes espirituais e "homens da medicina" foi promovido pela ONG Autonomia, que, entre outras frentes, atua no fortalecimento da identidade indígena no Brasil. Este é o relato do encontro, que eu tive o prazer de acompanhar.

O acesso à aldeia Mymba Roka, na terra indígena de Sorocaba de Dentro, interior de Biguaçu, é difícil, por estrada de chão batido. Mas o visual, com montanhas, rio, ponte pênsil e cachoeiras compensa qualquer esforço. O sol já estava se pondo quando o pajé Kupy, 76 anos, vindo do Acre com seus dois filhos para uma série de atendimentos no Sul do Brasil, finalmente encontrou o pajé Werá Tupã, de 106 anos. Eles não falam a mesma língua indígena, mas apesar de algumas dificuldades,conseguiram se comunicar em português.

O pajé Guarani não esperava a visita. Estava chegando da roça, onde passa seus dias capinando, apesar da idade avançada, e cuida com carinho das plantas que transforma em medicamentos para as pessoas da aldeia e também para os homens brancos que procuram na tradição milenar indígena a cura para seus males, tanto do corpo quanto da alma. Em poucos minutos, porém, a surpresa se transformou em satisfação. Afinal, não é todo dia que dois pajés, ainda mais de etnias distintas e tão distantes geograficamente têm oportunidade de se encontrar para conversar e trocar experiências.

A família do pajé Kupy vive na Aldeia Pinuya, na Terra Indígena Kaxinawá, localizada na Floresta Amazônica do Acre. Ele saiu de lá há dois meses, com os filhos Ibã Edes, 46 anos e Ibã Terri, 34, para uma atividade inédita: realizar palestras e atendimentos de cura com as medicinas da floresta, Brasil afora. Foram várias as paradas, até chegar a Florianópolis, onde ficaram por alguns dias, com agenda lotada. Tudo programado com antecedência pela mulher de Ibã Terri, que é uma gaúcha, branca, e que se juntou à tribo quando conheceu, se apaixonou e se casou com o filho do pajé.

O dinheiro arrecadado com as consultas e os remédios vai ser usado para ajudar na construção da Casa de Medicinas Naturais da Floresta, na Aldeia, no Acre, um local apropriado para tratar do povo indígena e de quem mais precisar. O espaço também servirá para estudos e ensinamentos destes saberes à comunidade, preservando o legado dos Kaxinawás (também conhecidos como Huni Kuin, que significa "povo verdadeiro"). Para acelerar a construção da Casa, a tribo decidiu usar um método bem moderno: foi criada uma campanha de crowdfunding (financiamento coletivo). Para colaborar, basta acessar o site www.pinuya.com e fazer a doação do valor que quiser.

Durante o encontro, os dois pajés repartiram por um par de horas mais do que algumas cadeiras na varanda de uma casa simples, na aldeia, e muitas tragadas de cachimbo: trocaram vivências e sabedorias milenares. O momento do abraço dos dois foi bonito de se ver. Um silêncio reverencioso pairava no ar. Só se ouvia o farfalhar das folhas nas árvores e os passarinhos. E, bem longe, latidos de cachorros e risadas de crianças, que jogavam bola num campinho nas proximidades.

O pajé Kupy é tão pequeno (de estatura) quanto seu nome. Mas ele se agiganta quando começa a falar. Ainda abraçados, saudaram-se em suas línguas maternas. Não entendiam as palavras um do outro, mas isso não fez diferença. O sentimento mútuo de respeito e admiração era evidente. Havia mais silêncios do que palavras. Os pajés fitavam-se por vários minutos, sem falar nada. A impressão é a de que se conheciam somente pelo olhar. Curas, plantas medicinais, ensinamentos ancestrais, legado milenar... Quando falavam, os dois tinham muito o que contar e ensinar à pequena plateia.

Os filhos de Kupy agradeceram por terem sido recebidos pelo pajé Guarani, ainda mais quando souberam tratar-se de um homem com mais de um século de vida. Para os índios, idade avançada é sinônimo de mais sabedoria. Eles reverenciaram o ancião, presentearam-no com alguns vidros de um rapé especial, preparado à moda da Floresta Amazônica e, antes da despedida, ainda fizeram uma sessão de cura nas costas do pajé catarinense, já curvadas pelo peso da idade e do trabalho na lavoura.

Os dois líderes falaram da possibilidade de um novo encontro, mas eles próprios sabem que isso é improvável, visto a distância que separa as duas aldeias. A visita foi curta, porém intensa. E para mim, inesquecível.


Saiba mais


Os Guarani

A aldeia Guarani Mymba Roka ocupa uma área de 607 hectares, cercada de mata atlântica e cachoeiras, em Biguaçu. Lá vivem cerca de 100 pessoas, divididas em 33 famílias. A rotina ancestral ainda é mantida pelos mais velhos, que acordam antes do raiar do sol para fortalecer o corpo físico, a vida e os pensamentos. Werá Tupã é o líder espiritual da aldeia, e Dona Rosa, a esposa, a xamã. Os anciões são considerados sábios, com conhecimentos ancestrais. Eles orientam não apenas as pessoas da tribo, mas todos aqueles que os procuram, com atendimentos de cura e espiritualidade, geralmente utilizando benzimentos e chás de ervas.

Os Kaxinawás

A Aldeia Pinuya é a menor Terra Indígena da Amazônia Legal, localizada no município de Tarauacá (Acre). Tem cerca de 150 membros, e destaca-se pela sua organização e desenvolvimento de projetos, principalmente na área da sustentabilidade. O artesanato produzido pelas mulheres da tribo, especialmente a tecelagem, é admirado (e vendido) inclusive para fora do Brasil. Há alguns anos, a ONG Autonomia inclusive trouxe duas índias kaxinawás para ensinar técnicas de artesanato para as mulheres Guarani, num intercâmbio entre as duas etnias. O pajé Kupy é chamado de Yuxibu, o "Pajé dos pajés", com reconhecimento de toda a tribo, considerada a mais populosa do Acre.



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PIB:Sul

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