Chamados de "invasores" por madeireiros, índios da Comunidade Anzol aguardam demarcação em Roraima

Amazônia Real- http://amazoniareal.com.br - 02/05/2017
A Justiça Federal em Roraima determinou no último dia 31 de março que a Fundação Nacional do Índio (Funai) inicie o procedimento de demarcação das terras da Comunidade Indígena Anzol, onde vivem 14 famílias das etnias Macuxi e Wapichana, na região do rio Murupu, na capital Boa Vista. A Funai terá que concluir a demarcação em até cinco anos, conforme determinou em sentença à juíza Luzia Farias da Silva Mendonça, da 4ª Vara da Justiça Federal. A decisão cabe recurso, mas até o momento a fundação não se manifestou.

Os índios Macuxi e Wapichana aguardam a demarcação das terras do Anzol há 26 anos. Eles pleiteiam uma área de 30 mil hectares, mas vivem confinados em uma território de 2 hectares e estão ameaçados por fazendeiros. O território do Anzol fazia parte da Terra Indígena Serra da Moça, mas na homologação da reserva foi excluído da demarcação por decisão do governo federal, em 1991.

A demarcação do território da Comunidade Indígena Anzol é questionada por ações judiciais da madeireira FIT Manejo Florestal. A empresa possui uma área de cultivo de acácia, espécie exótica nativa da Austrália, no entorno da terra indígena. Alega que as terras destinadas à demarcação são de sua propriedade. E considera que os índios são "invasores".

As ações da madeireira contra a Comunidade Indígena Anzol tramitam na Justiça Estadual, mas em sua decisão a juíza Luzia Farias da Silva Mendonça determinou que o caso seja transferido para a Justiça Federal.

O tuxaua da comunidade, Arão Almeida da Conceição, disse à Amazônia Real que os moradores aguardam a regularização para que possam ter acesso a recursos naturais aos quais eles estão proibidos, como lagos e rios, e para que possam ter tranquilidade. "Somos pressionados e perseguidos há muito tempo, por isso precisamos ter essa demarcação", disse.


Justiça questionou à Funai


Depois de excluída da Terra Indígena Serra da Moça, o primeiro pedido de regularização fundiária das terras da Comunidade Indígena Anzol foi feito em 1999 e, novamente, em 2013, sem que a Funai iniciasse o processo, informando apenas que a solicitação havia sido "registrada no banco de dados para qualificação", segundo a sentença da magistrada.

Em junho de 2015, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou que a Funai adotasse as providências para a regularização fundiária da comunidade Anzol.

Em fevereiro de 2016, segundo a Justiça Federal, o presidente da Funai - à época João Pedro Gonçalves (PT) - respondeu "que não será possível acolher a recomendação" devido à "estrutura debilitada, excessivo volume de trabalho e número cada vez mais reduzido de servidores administrativos em seus quadros".

"Nota-se que se passaram mais de três anos desde a comunicação da Comunidade do Anzol (20/10/2013) sem que a Funai tenha sequer aberto o procedimento de demarcação para realizar estudos de identificação e delimitação na área reivindicada", escreveu a juíza Luzia Farias da Silva Mendonça, em sua sentença.

A Amazônia Real procurou a Funai para saber se o órgão vai acatar a decisão ou recorrer, mas a assessoria de imprensa não respondeu as perguntas até o momento.

Segundo a liderança da etnia Wapichana, Alexsandro Carlos das Chagas, o presidente do órgão, Antônio Toninho Costa, em reunião realizada há duas semanas, garantiu que a Funai não vai recorrer da sentença.

"Ele nos disse que a Funai vai fazer o processo de demarcação, mas precisará de recursos financeiros para iniciar os estudos", afirmou Chagas, que é membro do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e liderança da Terra Indígena Serra da Moça.

Chagas explicou por que os indígenas pleiteiam a demarcação de um território de cerca de 30 mil hectares.

"Ainda vai ter um estudo antropológico pela Funai. Esse é um tamanho que a gente estima para que tanto a comunidade Anzol quanto outras que ficam na Serra da Moça possam ter direito à água dos rios e dos lagos, possam pescar. A população de Anzol também vai aumentar e precisa ter mais terra. Há muita criança. Cerca de 30. Tem mais crianças do que adultos", afirma ele.

Segundo Alexsandro das Chagas, a comunidade sofre muita pressão de donos de fazendas que estão ao redor. "Eles rodeiam a comunidade de moto, de carro. Eles falam que a demarcação vai prejudicá-los, dizem que não querem sair."


Confinamento e sem água


Sem a demarcação das terras, os índios Macuxi e Wapichana da comunidade Anzol foram aos poucos sendo confinados em uma área de 2 hectares, onde não podem plantar, pescar ou ter acesso à água potável para o consumo.

Segundo os moradores, o rio mais próximo foi transformado em barragem por um dos fazendeiros, e eles dependem unicamente da água de caminhão-pipa disponibilizado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde.

"Eles estavam sem água, até que a gente conseguiu com que a Sesai distribuísse água de caminhões-pipas para as famílias", diz Alexsandro Carlos das Chagas.

Além da intimidação dos fazendeiros - "são umas nove casas", diz Chagas - Anzol também sofre pressão do avanço das plantações de acácia e de ataques de abelhas cultivados pela empresa FIT Manejo Florestal.

"As acácias se espalham e destroem nossos roçados. As abelhas estão atacando os buritizais", afirma Chagas. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em Roraima, existem cerca de 30 mil hectares plantados de acácia.

"Essa planta vem mudando a situação dos igarapés. Deixa na água uma cor enferrujada devido às sementes e folhas. Quando dá chuva, a água fica avermelhada. Também levaram abelhas para dentro dos buritizais", diz a liderança Wapichana.

Em um espaço tão minúsculo, as famílias praticamente nada fazem para produzir seu próprio alimento. "Tudo tem que ser pequeno. As roças, as plantações. Não podem ter criação, até mesmo as criações de galinha precisam ser pequenas", afirma a liderança.

"As famílias do Anzol são muito intimidadas pelas outras pessoas que vivem ao redor da comunidade. Essas pessoas ameaçam destruir tudo, queimar casas, ameaçam de morte. Eu mesmo, neste momento, aqui em Brasília, estou preocupado com o que pode estar acontecendo lá. Eu e o tuxaua Arão", diz Alexsandro Carlos das Chagas.

Os dois foram a Brasília há duas semanas para audiências na Funai e na Procuradoria Geral da República e participaram da mobilização Acampamento Terra Livre, ocorrida na semana passada. Eles estavam na expectativa da resposta de uma pedido de audiência no Supremo Tribunal Federal (STF). Na quinta-feira (27), um grupo de indígenas advogados, entre eles Joênia Batista, da etnia Wapichana, reuniu-se com a ministra Rosa Weber e o ministro Dias Toffoli, quando apresentaram um documento a respeito da demarcação de terras.


Retomada do território


O processo de demarcação da Terra Indígena Serra da Moça começou em 1982 por reivindicação dos indígenas. Ela foi homologada em ilhas em 1991, somando 11 mil hectares.

"Várias lideranças trabalharam no diagnóstico do território. Mas quando foi demarcar, a Funai argumentou dizendo que, se incluísse algumas comunidades, a área que a gente queria ficaria muito grande, que ia demorar para sair a homologação, que seria mais fácil se ficasse menor", recorda Alexsandro Carlos das Chagas.

Temerosos com a demora, as lideranças aceitaram a proposta da Funai para a homologação da Serra da Moça. Com o tempo, os indígenas perceberam que praticamente todo o acesso ao recurso natural foi prejudicado.

"Ficaram de fora todos os igarapés, os rios, os lagos, além de duas comunidades, Anzol e Lago da Praia. São áreas em que sempre moraram indígenas. Foi quando a gente viu que precisávamos retomar a área de onde fomos expulsos", lembra a liderança.

O líder Wapichana conta que desde a primeira década dos anos 2000, os indígenas da Serra da Moça passaram a realizar assembleias para articular a retomada das duas comunidades.

"A gente passou a enviar documentos e a solicitar a ampliação para a Funai. Fizemos muitas solicitações, já se passaram vários anos, e a Funai não fez nenhum trabalho", conta.

A situação da comunidade Lago da Praia está em outra instância. Os indígenas entraram na Justiça e atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), onde o relator é o ministro Gilmar Mendes, conhecido por seu posicionamento contra demarcação de terras indígenas. "A gente sabe do posicionamento dele, por isso ficamos preocupados", diz Alexsandro.


Seca impactou comunidade


Na seca que atingiu o estado de Roraima entre 2015 e início de 2016, a comunidade Anzol foi uma das mais afetadas. O impacto deveu-se, sobretudo, ao plantio da acácia, conforme disse à Amazônia Real o tuxaua Arão Almeida da Conceição.

"Nossa comunidade sofre com a escassez de água. As crianças estão constantemente doentes e com diarreia. Os adultos com infecção urinária. A grande responsável pela falta de água em nossa comunidade é a empresa FIT Manejo Florestal", declarou o tuxaua, na reportagem publicada em março de 2016.

Segundo ele, a empresa FIT não permitia o acesso ao rio Uraricoera sob a alegação que é uma área de preservação ambiental do projeto de florestamento da acácia.

Na época da publicação da reportagem da Amazônia Real, a FIT Manejo Florestal negou que seja responsável pela falta d'água na comunidade Anzol. "A alegação do Sr. Arão não foi acompanhada de qualquer estudo prévio, mas simplesmente baseada em sua própria opinião, e contraria os estudos de especialistas, no sentido de que a cultura vegetal presente na região não causa o esgotamento dos recursos hídricos locais", afirmou Joel Carlos Alípio, diretor da FIT.

Joel Alípio negou também que a empresa impedia o acesso dos indígenas da comunidade do Anzol ao rio Uraricoera, como afirmou o tuxaua Arão.

"Vemos em verdade novo equívoco por parte do Sr. Arão, uma vez que o acesso ao rio Uraricoera almejado pelo mesmo, só seria possível por entre propriedade de terceiros, conforme mapas fornecidos em anexo, não tendo a empresa qualquer responsabilidade pelo que ocorre ou deixa de ocorrer no trajeto até o rio", disse Alípio.

O empresário destacou, no que diz respeito à área de preservação permanente e reserva legal, que "não é do conhecimento da empresa FIT se o caminho até o rio Uraricoera está situado em tais condições", como diz o tuxaua Arão Conceição.

"É sabido que o próprio local da invasão, onde se encontram instaladas as famílias da Comunidade do Anzol, e é objeto de ação de reintegração de posse, é que seria área de preservação permanente e reserva legal, sofrendo constantemente com desmatamentos ilegais e irracionais, além de outras formas degradantes, as quais já foram comunicadas às autoridades competentes", afirmou o diretor da FIT, Joel Carlos Alípio.

Com a decisão da Justiça Federal pela demarcação da Comunidade Indígena Anzol, a agência Amazônia Real voltou a procurar a madeireira FIT - Manejo Florestal. O diretor Joel Carlos Alípio não quis dar entrevista. A reportagem conseguiu falar com o advogado Henrique Eduardo de Figueiredo, um dos três que representam as empresas FIT e GFP Empreendimentos Imobiliários Ltda., que também possui ação judicial contra a comunidade.

Figueiredo disse que como o caso vai para a Justiça Federal não poderia dar detalhes sobre os novos trâmites do processo. "Estamos requerendo apenas a área do Anzol, que é das empresas. É uma pequena parte da extensão total do que os indígenas pediram na Justiça Federal", disse. Ele não quis comentar sobre a decisão da Justiça Federal de determinar que a Funai inicie o processo de demarcação.

O governo de Roraima foi procurado para responder se vai recorrer da decisão, mas a Secretaria de Comunicação não respondeu as perguntas até a publicação desta matéria.

O estado de Roraima tem 32 terras indígenas e 11 etnias. A mais emblemática é a Raposa Serra do Sol, homologada em 2005, mas que foi a julgamento em 2009 no STF, a pedido do governo de Roraima.

O STF decidiu pela homologação, mas estabeleceu um marco temporal que tem sido usado por interesses contrários à demarcação territorial dos indígenas no país.


Quartiero reagiu à demarcação


A decisão judicial para que a Funai demarcasse a comunidade Anzol foi comemorada por todas as lideranças indígenas de Roraima. Entre eles, o secretário estadual do índio, Dilson Ingarikó. A comemoração não foi bem vista pelo vice-governador Paulo César Quartiero (DEM), que assumiu durante oito dias o governo, período de ausência da governadora Suely Campos (PP). (leia mais aqui)

Entre as medidas como governador interino, Quartiero demitiu Dilson Ingarikó por considerar "traição" a comemoração feita pelo líder indígena.

Quartiero é conhecido por ser um dos maiores combatentes de demarcação de terra indígena em Roraima. Natural do Rio Grande do Sul, Quartiero é fazendeiro e arrozeiro, além de já ter sido prefeito de Pacaraima (RR) e deputado federal.


Foi preconceito, diz Dilson Ingarikó


No último dia 26 de abril, porém, Dilson Ingarikó soube que foi reconduzido ao cargo pela governadora Suely Campos, em seu retorno da licença.

Em declaração à Amazônia Real, Dilson disse que soube da notícia durante uma assembleia com 200 lideranças indígenas de Roraima, que ocorre em Boa Vista.

Dilson conta que as lideranças não aceitaram a demissão e estavam planejando uma pressão para que ele retornasse ao governo.

"Eu já vinha organizando essa assembleia. Queria abrir diálogo entre o governo e os tuxauas. Mesmo fora do governo, continuei trabalhando. Queremos abrir uma agenda sobre atividades produtivas, turismo, educação e saúde. A governadora participou de toda a assembleia e ouviu a nossa demanda. Agora será analisada", disse.

Segundo Dilson Ingarikó, sua demissão provocou revolta nas lideranças indígenas. "Houve muita tensão e reação negativa. Eu até ficaria compreensivo se fosse uma demissão normal, se fosse um ato de Estado. Mas ele [Quartiero] fez isso apenas por preconceito. Ele é um discriminador da causa indígena, não tem respeito conosco. Foi uma decisão pessoal dele", disse Ingarikó, natural da comunidade Manalai, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Dilson Ingarikó disse que sua comemoração foi uma "curtição" em um post da notícia da decisão judicial na rede social Facebook. "Eu curti e comentei: 'Vamos à luta, a luta continua com mãe Makunaima Viva'. Parece que eles ficam vigiando o que faço", afirmou.



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PIB:Roraima/Lavrado

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