10 anos de Rede de Sementes do Xingu... É só o começo

ISA - https://medium.com/@socioambiental - 09/08/2017
Debaixo de uma mangueira às margens do rio Xingu, a Rede de Sementes do Xingu (RSX) comemorou seus dez anos em um encontro histórico no pólo Diauarum, Território Indígena do Xingu (MT). Entre os dias 26 e 29 de julho, cerca de 300 pessoas-indígenas, agricultores familiares e urbanos, produtores rurais e parceiros, trocaram experiências sobre essa iniciativa que hoje se consolidou como a maior rede de sementes nativas do Brasil.

A diversidade de pessoas espalhadas nas cadeiras remonta o início do processo de criação da RSX: foi união entre indígenas, agricultores, parceiros e produtores rurais em prol de um objetivo comum, a água, que originou a campanha Y Ikatu Xingu ("Salve a água boa do Xingu", na língua Kamaiurá) em 2004. Três anos depois, a partir da demanda por sementes florestais, nasceu a Rede de Sementes do Xingu. "A gente imaginava, no início... será que vamos conseguir? Com esse tanto de gente diferente espalhada... a gente sempre teve dúvida, e hoje não! essa diversidade é a nossa segurança.", relembra Acrísio Reis, coletor do assentamento Manah, em Canabrava do Norte, e diretor da RSX.

Com dez anos de existência, a Associação Rede de Sementes do Xingu acumula inúmeras histórias, desafios e vitórias. Ao todo, já foram viabilizados a recuperação de mais de 5 mil hectares de áreas degradadas na região da Bacia do Rio Xingu e Araguaia e outras regiões de Cerrado e Amazônia. Foram utilizadas 175 toneladas de sementes nativas coletadas e beneficiadas por 450 coletores, gerando uma renda de R$ 2,5 milhões para as comunidades.

"A Rede é uma diversidade, o nosso carro chefe é a muvuca de sementes [saiba mais abaixo], e também somos uma muvuca de pessoas", aponta Bruna Dayanna Ferreira, diretora da RSX. Hoje a Rede conta com 13 núcleos de coletores de sementes em 16 municípios nas bacias do Xingu e Araguaia, abrangendo 15 Assentamentos Rurais, uma Reserva Extrativista na Terra do Meio (PA) e 17 aldeias de sete povos que vivem em quatro Terras Indígenas. São inúmeros parceiros comerciais, apoiadores e articuladores.

"A semente tem um poder indescritível de unir os diferentes. Tem essa capacidade de sair de uma mata dentro de uma Terra Indígena, dentro de uma reserva legal, de um assentamento ou de uma cidade, e passar pela mão de várias pessoas até chegar na floresta do futuro. Ao passar por essas pessoas diferentes, ela vai fazendo uma costura que eu acho que é a grande virtude da Rede de Sementes do Xingu: aproximar histórias diferentes, visões de mundo diferentes em prol de uma floresta mais viva e de uma paisagem mais sociodiversa", conta Rodrigo Junqueira, coordenador do programa Xingu do ISA e do Conselho Curador da RSX.


"A cabeça do Xingu está doente"


Foram mais de trinta barcos e centenas de quilômetros rodados por terra e água até o pólo Diauarum, local escolhido para o Encontro. "Esse lugar é muito simbólico para a gente. Foi onde tudo começou", explica Bruna. Preocupados com o avanço do desmatamento, especialmente em áreas de nascentes e matas ciliares, os indígenas se mobilizaram e reivindicaram esforços para salvar as águas do Xingu. Assim, em 2004 foi criada a campanha Y Ikatu Xingu.

Mais de dez anos após o início da campanha, desmatamento no entorno ainda é uma realidade que impacta as populações dentro e fora das TIs na região. Nas cabeceiras do Xingu, existem mais de 22.500 nascentes que contribuem para a formação de diversos rios, a maioria com pouca proteção e com as matas ciliares sob constante pressão das atividades agropecuárias. Estima-se que aproximadamente 200 mil hectares de matas de beira de rio estejam desmatadas ou degradadas na região das cabeceiras.

Logo no início do Encontro, Kampot Ikpeng, cacique da aldeia Moygu, fez uma fala enfática demonstrando sua preocupação com o desmatamento e frisando a importância de continuar com o reflorestamento na região: "Eu peço que as etnias do Xingu e para os demais povos que protejam o nosso território. A nossa ferramenta de luta é a semente", disse.


"Virei doutor"


Peneira, chinelo, tesoura, faca, facão, mãos e pés são alguns dos muitos instrumentos utilizados na produção das sementes. Ao longo dos anos, os coletores desenvolveram soluções tecnológicas sofisticadas e em consonância com a realidade local para melhorar cada vez mais o trabalho.

Dona Vera Alves, coletora de Nova Xavantina, limpava as sementes de carvoeiro usando uma peneira e um chinelo de criança no lugar de luva. Beneficiava cerca de 22 quilos de sementes em um mês. Durante uma expedição promovida pela RSX, viu um colega trabalhando com um cortador de grama e resolveu aplicar a técnica em seu dia a dia. "Agora eu tiro oito quilos por dia!", conta. "Foi um trocando conhecimento com o outro".

Esse é um de tantos exemplos das técnicas desenvolvidas pelos coletores que impactaram diretamente a produção. "Você vem cheia de conhecimentos científicos e leva um choque. As pessoas sabiam bem mais que eu. Só não sabiam que sabiam", lembra Fátima Piña Rodrigues, professora da Universidade Federal de São Carlos que acompanha de perto esses processos desde 2010, em especial os voltados para a melhoria da qualidade das sementes.

Seu Placides Pereira é coletor de sementes e vive no assentamento Manah, em Canabrava do Norte (MT). Em meados dos anos 1960 saiu da Bahia para o Mato Grosso em busca de trabalho e se espantou com "as terras fracas de beira de rio". Décadas depois, conseguiu uma propriedade e, como muitos agricultores da região, implantou o chamado "casadão", ou agrofloresta-um sistema de produção com diversidade de espécies florestais. É graças ao seu plantio que a seca do ano passado não afetou sua produção: "o córrego que passa na minha casa não secou. Veio professor da universidade para pesquisar! Hoje eu não sei nada, mas já estou dando até palestras, virei doutor!".


Sementes da resistência


Em 1966, quando ainda era criança, Carolina Rewaptu foi expulsa de sua terra, a TI Maraiwãtsédé. Durante décadas os Xavante lutaram para retomar o seu território, e em 2013 após um difícil processo de desintrusão dos fazendeiros que ali estavam, conseguiram retornar.

Com o território garantido, a luta de Carolina, hoje cacique da aldeia Madzabzé, é outra: tornar agricultável a terra que foi degradada por décadas por conta da monocultura e pecuária. Desde 2011, o grupo Pi'õ Rómnha/ Ma'ubumrõi'wa, das coletoras Xavante de Marãiwatsédé, destina todas as sementes coletadas para a restauração das áreas dentro e adjacentes à TI.

"Começamos o trabalho para recuperar o nosso território que estava todo desmatado, tinha poucas sementes... A volta das matas e dos frutos para colher é importante para a cultura do nosso povo. Aproveitamos essas sementes para guardar e mandar para a Rede", conta Carolina. Hoje participam 60 mulheres coletoras e seus familiares. Além de ser uma importante alternativa socioeconômica, o trabalho com as sementes efetiva caminhos para o mapeamento participativo e monitoramento do território.

Preocupada com o desaparecimento de variedades agrícolas, Wisio Kawaiwete percorreu ao longo dos anos diversas aldeias no TIX para salvaguardar as diversas qualidades dos produtos tradicionais. "A mata é que leva saúde para a gente. Agradeço todos que trabalham com as sementes. Eu lutei bastante e ainda luto pelas nossas sementes", conta. Os Kawaiwete já entregaram 101 espécies de sementes nativas ao longo do seu envolvimento com a Rede.

"As Yarang não são apenas coletoras de sementes, são uma inspiração", comenta Oreme Ikpeng. O jovem ajuda na gestão do grupo de mulheres que foi criado em 2009 e hoje conta com 75 coletoras. Assim como muitos coletores indígenas, as mulheres nunca tinham ido aos Encontros da RSX por conta das longas distâncias e dificuldades logísticas. Animadas, cerca de 40 Yarang participaram ativamente dos debates, oficinas e cantaram em diversos momentos.

Makawa Ikpeng, liderança do movimento, reitera a importância de reflorestar as áreas degradadas, dentro e fora dos limites do TIX: "Se não tivermos a consciência de preservar não vamos ter futuro. Temos que começar a desenhar o nosso futuro agora. Vemos no noticiário muita gente sem mata, é isso que queremos? Eu vou continuar até não poder mais coletar!".


10 anos de muvuca... virou floresta?


Uma das grandes expectativas dos coletores presentes no Encontro era saber se as sementes colhidas e beneficiadas estão ajudando efetivamente na recuperação das áreas degradadas da região.

As sementes fornecidas pela Rede já promoveram a recuperação de mais de 5 mil hectares na bacia do Xingu, Araguaia e outras regiões da Amazônia e Cerrado. A técnica da muvuca, uma mistura de espécies de sementes florestais e adubação verde, vem sendo utilizada na recuperação dessas áreas e cada vez mais tem mostrado o sucesso da prática em comparação a outros métodos convencionais. "Se não existisse Rede de Sementes não existiria restauração, a gente depende um do outro", afirma Júnior Micolino da Veiga, do ISA, que trabalha com restauração florestal e educação agroflorestal na região.

A muvuca reduz os custos da restauração florestal em relação ao tradicional plantio de mudas. Assim, se consegue colocar de quatro a dez vezes mais árvores por hectare e com um terço ou metade do custo do que um plantio com mudas nativas. No plantio convencional se tem uma média de 1.666 árvores por hectare, já com a muvuca esse número pode mais que triplicar, superando 6 mil árvores.

Edimarcio de Araujo Prudente, da Borges e Prudente Soluções Ambientais, é parceiro da Rede desde 2011. Apenas em 2015, a empresa adquiriu nove toneladas de sementes da RSX para o restauro de Áreas de Preservação Permanente (APPs). "Estamos na contramão do que é o agronegócio. Eles plantam lavouras e nós plantamos floresta. E isso seria impossível se não fôssemos parceiros da Rede, comenta.


Sonhos viraram projetos


A Rede de Sementes se consolidou como uma alternativa viável e geração de renda para centenas de famílias na região da bacia do Xingu e Araguaia. Mais do que comercialização de sementes nativas, a iniciativa promoveu mudanças em diversas esferas: no âmbito familiar, social, ambiental e até mesmo na legislação. "A ideia de que essa iniciativa possa influenciar políticas públicas em meio à tantos retrocessos é incrível", disse Thierry Dudermel, chefe do setor de Cooperação da Delegação da União Européia no Brasil.

Ricardo Abramovay, professor da Universidade de São Paulo (USP) caracteriza essa iniciativa como um exemplo da "Economia do cuidado". A economia do cuidado, segundo ele, não é só cuidado com a natureza, é também o cuidado com as pessoas, e tem com prerrogativa o cultivo da diversidade. "Se o Brasil quiser atingir as metas de reflorestamento e de recuperação da vegetação nativa, isso não vai ser feito da mesma maneira que se faz abrindo campo de soja e pastagem para pecuária. Isso vai exigir uma economia do cuidado", atenta. "É uma ducha de otimismo, de esperança no futuro".

Muitos coletores, como seu Acrísio e seu Placides, trabalhavam em lavouras de monocultura. "Se eu plantar árvore pro resto da minha vida eu não vou plantar 10% do que eu derrubei quando eu era operador de máquina de esteira. Eu fico pensando assim: quanta floresta eu devastei? Só que era o meu ganha pão", conta Acrísio. O trabalho com a Rede de Sementes possibilita que os coletores permaneçam em seus territórios com dignidade de renda e floresta em pé.

Neste ano, seu Acrísio foi eleito pela segunda vez diretor da Rede de Sementes. Natural da cidade de Conquista (MG), trabalhou como bóia fria em São Paulo e em Goiás, e conta que sempre teve o sonho de possuir uma terra: "eu falava isso pros meus colegas de trabalho e eles falavam que estava sonhando muito alto", lembra. Em 1995 foi assentado pela reforma agrária em Canabrava do Norte e em 2007 começou a coletar sementes para a RSX. "A coleta de sementes é uma complementação de renda importante. Mas para mim é muito mais. Antes eu sonhava, agora eu tenho projetos".



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