CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DE UM CONFLITO - os pankararu e os posseiros

Observatório Socioambiental - http://www.observatoriosocioambiental.org - 17/10/2017
Nos embates públicos que marcam a disputa em torno das terras Pankararu, é comum que os "posseiros" (ocupantes não indígenas) mobilizem constantemente dois tipos de argumentos contra as reivindicações territoriais pankararu e em favor de sua própria permanência nas terras já demarcadas como indígenas. De um lado, argumentam que não haveriam distinções significativas entre famílias indígenas e não indígenas, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista social, reivindicando em favor disso os constantes casamentos entre os dois grupos, quase sempre de um jovem posseiro com uma jovem indígena. Neste caso, a distinção entre índios e não-índios seria uma "invenção" da Funai. De outro lado, colocam-se na posição de grupo ameaçado de expropriação de posses ancestrais, sem garantia de reassentamento, de forma que a sua luta seria apenas mais um capítulo da luta pela terra no Brasil. Este texto não tem a intenção de responder tais argumentos, tarefa que cabe legitimamente aos próprios pankararu, mas tecer comentários sobre eles, tomando por base uma breve reconstituição das diferentes configurações histórico-discursivas deste conflito.


1.

Depois do reconhecimento oficial dos pankararu como indígenas e da demarcação das suas terras, ao longo de toda a década de 1940, as relações entre índios e não índios mantiveram-se praticamente inalteradas na aldeia de Brejo dos Padres e vizinhas. A introdução do Posto Indígena pouco alterou o padrão de dominação que a elite local havia imposto aos pankararu ao longo dos sessenta anos que se seguiram à violenta extinção do aldeamento do Brejo dos Padres. O que é facilmente explicado pelo fato dos primeiros responsáveis pelo Posto Indígena terem sido recrutados entre aquela mesma elite local. De outro lado, mesmo as lideranças que se mobilizaram pelo reconhecimento indígena e não cessavam de buscar ajuda externa contra a invasão das roças pelo gado dos proprietários vizinhos, estavam enredadas em relações de vizinhança, afinidade, trocas matrimoniais, laços de compadrio, emprego e clientela com estes mesmo proprietários, tornando o enfrentamento direto quase inviável.

Esta situação só seria alterada na década de 1950, quando o Posto Indígena passou a ser chefiado por Castelo Branco, militar aposentado que tinha acumulado a experiência de agente tutelar em outros postos indígenas e que se tornou um personagem quase mítico na memória de indígenas e não indígenas. Para implantar as novas diretrizes nacionais do órgão indigenista, o novo chefe de posto impôs uma violenta ruptura no modelo de relações interétnicas. Com a autoridade do SPI, que se confundia com a autoridade do próprio exército nacional, e sem qualquer compromisso com as elites locais, Castelo Branco providenciou a retirada de parte dos moradores não indígenas do Brejo do Padres, impôs o pagamento de arrendamento das terras ocupadas por não indígenas (parte importante da chamada "Renda Indígena"), passou a regular o acesso aos recursos naturais disponíveis no Brejo e até mesmo a circulação de não indígenas pelas estradas que cruzavam o território pankararu. Aqueles que não se reconheciam e não eram reconhecidos como indígenas, mas que permaneceram dentro das terras delimitadas, passaram a ser chamados de "posseiros". Tal ruptura atribuiu um significado totalmente novo à fronteira étnica existente entre os pankararu e os regionais, tornando-a mais explícita e materializada no próprio território. A fronteira étnica, que até então desenhara uma integração hierárquica dos grupos locais, foi ressignificada, passando a separar tais grupos.

Os chamados "posseiros", entretanto, recusavam este rótulo, insistindo na auto-designação de "condôminos". Com isso pretendiam a posição jurídica de proprietários de terras que permaneceram legalmente indivisas. Além disso, eles se afirmavam proprietários de terras cuja cadeia dominial recuava até fins do século XVIII, tendo origem nos Garcia D'Avila, da famosa empresa colonial da Casa da Torre. Desta forma, ao longo dos primeiros embates judiciais com o SPI, os "condôminos" insistiam na sua condição de proprietários e descendentes de uma genealogia quase nobiliárquica, fundada na conquista colonial daqueles sertões. Nesses embates, eles recorriam à mediação das autoridades do município de Tacaratu, como o promotor, o prefeito e o delegado, em muitos casos seus próprios parentes. Mas o território em litígio, declarado indígena e domínio da União, já estava fora da esfera de ação desses personagens locais.

É importante destacar como tais famílias de "condôminos" se colocavam em um lugar social de dependência e subordinação com relação às elites locais, ao mesmo tempo em que buscavam demarcar sua relação de dominação com relação aos indígenas, por meio de relações análogas de patronagem e compadrio. Buscavam legitimar sua posse sobre as terras indígenas recorrendo a um status intermediário na cadeia de relações de hierarquia de poder local, quase naturalizada. Nesta hierarquia o lugar atribuído aos indígenas era marcado pelas tradicionais acusações de cachaceiros e preguiçosos, mas agora acrescidas da acusação de "traiçoeiros", já que eles não reconheciam mais os laços de fidelidade e dependência que costuravam e estabilizavam aquela cadeia de hierarquias locais, vigentes há mais de meio século.


2.

A partir da década de 1970, os moradores não-indígenas das localidades do Bem-Querer, Caldeirão e Caxiado, principais focos da resistência à desintrusão das terras pankararu, mudariam radicalmente seu discurso e mesmo sua identidade política. Ao participarem ativamente da reformulação do sindicato local, eles substituiriam a auto-atribuição de "condôminos" pela de "trabalhadores rurais", de forma que a sua identidade social deixava de estar referida à genealogia nobiliárquica colonial ou à lógica hierárquica local, para situar-se em relação ao campo político regional e nacional, desencadeado pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica.

Ao contrário do combativo sindicalismo rural pernambucano da Zona da Mata, o sindicalismo no sertão do sub-médio São Francisco restringia-se, até meados da década de 1970, à funções exclusivamente assistenciais. Tal posição só seria alterada com o conflito decorrente da ameaça de expulsão dos camponeses da área de influência da UHE de Itaparica, iniciada em 1975 e só concluída pela CHESF em 1987. Os primeiros conflitos são deflagrados quando do deslocamento da população da área do canteiro de obras em outubro de 1976, resultando na organização, dois anos depois, do Encontro de agricultores de Petrolândia. Em consequência desta mobilização, em 1979 foi criada uma articulação dos vários sindicatos da região sob o nome de "Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco". E, em função do foco de luta não ser tanto mais as relações de trabalho, quanto a resistência à expropriação territorial, a auto-identificação de posseiros passa a ter a mesma ou maior importância que a de trabalhadores rurais para os sindicalizados do "Pólo".

De outro lado, uma das estratégias da CHESF no enfrentamento com o sindicalismo local foi não divulgar os mapas do lago projetado para a barragem de Itaparica. O que tinha a intenção de dificultar a mobilização das famílias pelo Pólo Sindical, acabou resultando no contrário, muito em função da intensa participação da Igreja Católica neste processo de mobilização: as comunidades mobilizadas ultrapassaram em larga media o número daquelas que seriam diretamente atingidas pelo lago. Neste processo, a equipe pastoral da Igreja Católica buscou promover encontros que reuniam indistintamente índios e posseiros, para discutirem juntos as ameaças trazidas pela UHE. Entretanto, as desconfianças históricas recíprocas, além da Funai, no pleno exercício de órgão tutor, impediriam tal convergência. A mediação da equipe pastoral não conseguiu superar as clivagens étnicas locais. Apesar de ambos se situarem em posição semelhante diante das ameaças do desenvolvimentismo nacional, a história do conflito os colocava em lados opostos no plano local.

Nesta mesma época ocorria também a estruturação de um movimento indigenista alternativo no país, em grande parte estruturado pela mesma igreja católica e em oposição a projetos análogos do desenvolvimentismo autoritário. Por isso não é coincidência que, a partir deste momento, tanto indígenas pankararu quanto os posseiros nas suas terras passassem a recorrer à gramática da relação opressores-oprimidos para traduzirem suas lutas. Se no contexto nacional isso contribuía na construção de uma unidade política e narrativa para as suas lutas, no plano da disputa local isso resultou em uma espécie de disputa pelo lugar de oprimido. Os indígenas oprimidos pelos brancos, desde as guerras justas até a expropriação das terras do seu aldeamento. Os posseiros oprimidos pelo Estado, representado no plano local pela CHESF, mas também pela Funai.


3.

Depois da subida do lago, em 1989, os posseiros das terras pankararu ganhariam amplo protagonismo na mobilização política local. Como as terras indígenas não foram atingidas pela subida do lago, as famílias de posseiros das localidades de Caxiado, Caldeirão e Bem-Querer, situadas dentro das terras indígenas, seriam economizadas do enorme impacto representado pelo reassentamento.

Seria um erro minimizar a importância desta militância e do papel político do Pólo Sindical na organização do conjunto dos camponeses, trabalhadores rurais e ribeirinhos do Sub-Médio São Francisco. O Pólo Sindical esteve à frente de um potente e inovador movimento social que foi capaz de unificar uma grande diversidade de grupos sociais (de classe, profissionais, políticas) sob a categoria englobante de "atingidos". Com isso, entre entre 1975 e 1990, conseguiam manter unificadas suas estratégias de luta em torno de um objetivo principal: o reassentamento das famílias desabrigadas pela subida do Lago de Itaparica.

Uma conquista que não tinha sido sequer vislumbrada até então por outras populações atingidas por barragens, como as de Sobradinho. Isso fez com que o Pólo Sindical focalizasse seus esforços nas reivindicações ao governo, representado no local pela CHESF, na fiscalização dos acordos firmados e das ações concretas de cumprimento de tais acordos. Até mesmo as agências multilaterais e de financiamento externo, como o Banco Mundial, passaram a ter no Pólo Sindical um importante regulador das metas sociais implicadas no grande projeto, que se estendia por dois estados e sete municípios.

Independente das dificuldades vividas ao longo de todo este período (de reassentamento, de implementação de uma agricultura irrigada, de invasão do plantio de maconha nas agrovilas etc.) o Pólo Sindical adquiriu enorme visibilidade e importância política, estando entre os principais movimentos sociais do período no Nordeste. Isso permitiu que as suas lideranças, que também eram posseiros na Terra Indígena, usassem de tal capital político para protelar soluções e minimizar a importância do conflito com os pankararu. Os processos na justiça foram sendo estendidos e a própria Funai se viu enredada em acordos políticos regionais, de forma que a saída dos posseiros da terra indígena nunca foi, até bem pouco tempo, sequer planejada. Apesar das lideranças pankararu nunca terem deixado de se mobilizar pela saída dos posseiros de suas terras, estes se comportaram, na maior parte deste tempo, como se esta não fosse uma alternativa real, e continuaram construindo e ampliando suas casas e roças.

Em vários momentos a situação chegou a ser vista com preocupação tanto pela Igreja Católica quanto por outros apoiadores (inclusive agencias internacionais) do Pólo Sindical na região, que também estão comprometidos com a causa indígena no plano nacional. Esta contradição entre as escalas local e nacional na definição de alianças políticas foi tema até mesmo de debates internos ao Partido dos Trabalhadores, que surgiu e se fortaleceu na região muito associado à luta dos "atingidos", mas que não podia simplesmente desconhecer a causa indígena. Apesar dessas discussões, a ascensão política do PT a partir dos anos 2000 ajudou a consolidar este impasse.


4.

Nesta configuração do conflito, o Estado desempenhou, por um longo tempo, um papel homólogo para posseiros e indígenas, ainda que ambos lhe atribuam conteúdos opostos. Se no discurso dos trabalhadores atingidos pela UHE o Estado é o expropriador e operador da violência policial e militar, no discurso indígena o Estado, ou "o governo" (como diziam as lideranças mais velhas), tem o papel histórico de reparador das perdas que as violências coloniais lhe impuseram. Para os indígenas a sua luta está respaldada no direito que lhes foi reconhecido pelo Estado. Para os posseiros a sua luta é contra uma falsa separação entre índios e não-índios imposta por este mesmo Estado: é constante a argumentação de que o SPI e depois a FUNAI teriam forjado um conflito que segundo eles não existe, já que eles são vizinhos, amigos, casam entre si, jogam bola juntos etc. Em ambos os casos, enfim, era atribuído ao Estado o lugar de vértice das relações de poder locais: o agente por excelência, aos quais as agências indígena e camponesa estavam subordinadas ou em relação à qual apenas reagiam.

Este lugar serviu, tanto a indígenas quanto a posseiros, como uma estratégia de denegação do conflito direto entre eles, mesmo que algumas vezes este tenha chegado à violência de fato. Esta sublimação do conflito inicialmente foi importante para os indígenas que, depois de décadas de subordinação, costurada por intrincadas relações de dependência pessoal, tiveram grande dificuldade de se colocar como agentes do seu próprio direito à terra e no conflito dele decorrente. Mais tarde, porém, esta mesma sublimação do conflito serviria especialmente aos posseiros, como vimos, em função dos constrangimentos impostos por seus compromissos políticos na esfera pública, diante da qual é difícil justificar que trabalhadores ligados a uma perspectiva progressista, estejam contra os índios, a fração oprimida por excelência de nossa sociedade, símbolo de várias lutas políticas.

Este quadro começaria a ser alterado, no plano institucional, com a relativização da tutela pós-1988, mas só se completaria, na prática, com a reestruturação da Funai de 2009, que a retiraria do lugar de mediadora absoluta das ações indígenas. Tão ou mais importante que essas mudanças institucionais, porém, seriam as mudanças na própria organização interna pankararu. A consolidação de uma educação escolar indígena a partir dos anos 2000, que permitiria a ampliação do número de escolas dentro da terra indígena e do surgimento de uma numerosa e politicamente ativa categoria de professores pankararu, assim como a expansão do número de jovens universitários, seriam dois fatores cruciais nesta mudança.

A escola pankararu é o lugar onde se tece uma nova relação com a sua própria história e com a história local, a partir da qual as antigas relações de dependência pessoal não são resolvidas, mas são problematizadas e colocadas em perspectiva. As novas lideranças, jovens universitários ou profissionais já ligados à escola ou à saúde indígena, participam de novos circuitos e articulações indígenas, que permitem colocar em contato experiências, estratégias e discursos. Esses novos pankararu estão profundamente orientados pela imagem e pelas histórias das antigas lideranças, mas lançam mão de novos conhecimentos e habilidades: aprenderam a fazer o seu próprio caminho por dentro da máquina administrativa e judiciária, ou por fora dela (como na recente ocupação dos prédios da CHESF em Itaparica), levando o processo de regularização fundiária das suas terras até limites que a Funai, enquanto sua tutora legal, nunca alcançou. Trata-se de um novo momento da luta pankararu, que tem como marco temporal a titulação da Terra Indígena Entre-Serras em 2006. Neste novo momento os pankararu mobilizam um discurso guerreiro, que valoriza o seu próprio protagonismo nas conquistas dos direitos indígenas e de cidadania, articulando-se cada vez mais às lutas indígenas e de outros movimentos sociais no plano regional e nacional.

Os posseiros de Caldeirão, Caxiado e Bem Querer, já não podem acusar o Estado de artífice de um conflito inexistente, nem podem justificar suas estratégias de permanência naquelas terras como uma resistência à ação expropriadora estatal. O Estado não opera mais como o vértice que permitia sublimar a violência latente produzida pelo impasse de quase 60 anos. Apesar disso, os posseiros insistem em reproduzir no plano do conflito territorial com os pankararu o discurso e as estratégia que desenvolveram enquanto "atingidos". A disputa, entretanto, está sendo travada nos tribunais, nos quais suas lideranças firmam acordos públicos que depois incentivam a população de posseiros a desrespeitar. Com isso confundem a antiga postura de resistência, que exerciam em relação aos grandes projetos hidrelétricos, com a atual postura de intransigência diante de negociações travadas na justiça com um outro grupo social historicamente espoliado. Na prática, os posseiros mobilizam, no plano local, estratégias e argumentos contra as demandas indígenas que estão muito próximas daquelas que vêm sendo mobilizadas pelo agronegócio no plano nacional.

Ao continuarem a disputar, na esfera pública, o lugar do oprimido, os posseiros de Caldeirão, Caxiado e Bem Querer, vinculados ao Pólo Sindical do Sub-Médio São Francisco, não conseguem encarar de frente o problema que o reconhecimento dos direitos indígenas coloca para o seu próprio posicionamento político. Um posicionamento que é herdeiro tanto de uma das lutas sociais mais bonitas e importantes do sertão do São Francisco, quanto dos "condôminos" que reivindicavam o vínculo colonial e colonialista com a Casa da Torre.



http://www.observatoriosocioambiental.org/2017/10/configuracoes-historicas-de-um-conflito.html
PIB:Nordeste

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