Em busca de 'poupança' para o ano, indígenas acampam em Porto Alegre para vendas de Páscoa

Sul 21 https://www.sul21.com.br/ - 29/03/2018
Desde o dia 11 de março, a casa da família de Josué é a lona preta, colocada debaixo de uma árvore de boa sombra do Parque Harmonia, em Porto Alegre. Há 15 anos, na época da Páscoa, é assim. Ele deixa a Terra Indígena de Serrinha, no município de Três Palmeiras e toma o rumo da capital gaúcha a 373 km de distância, carregando palha, feixes de flor de marcela, cestas e balaios. A primeira vez que veio à Capital foi seguindo um conselho do tio, que disse que as vendas por aqui faziam a viagem valer a pena.

"Ele falava que valia vir. E é a cultura que a gente tem, esse artesanato", conta ele, enquanto segue trançando mais uma cesta, em formato de coelho. "Mas agora, por incrível que pareça, está vendendo mais marcela do que cesta. Difícil encontrar marcela por aqui".

Josué, a esposa e os filhos estão entre os 700 indígenas acampados no Parque, que todo mês de setembro abriga o Acampamento Farroupilha, para a época da Páscoa. A esperança deles é conseguir levantar dinheiro suficiente para se manter por alguns meses.

Esse ano, porém, com o feriado caindo entre o final do mês e o dia 1o de abril, as vendas foram prejudicadas. Os indígenas dizem que, antes do dia 5, é difícil que as pessoas tenham dinheiro em mãos para gastar e acabam comprando menos.

"A gente vem porque aqui é mais o centro do negócio. O movimento é melhor. Não é todos os anos que vende bem, mas ainda assim. A gente costuma fazer uma venda boa quando a Páscoa cai pelo dia 7", relata Luis Salvador, que também vive na Serrinha, mas dentro do território pertencente a Ronda Alta. A Terra Indígena tem 12 mil hectares e está em quatro municípios da região norte do Estado.

Luis vem a Porto Alegre há 17 anos. Mesmo nos anos mais difíceis, de crise. "Dá para pagar as dívidas, né?", diz rindo e olhando para o vizinho de aldeia, Vitorino. Algumas prefeituras, como a de Ronda Alta, ajudam com os custos do transporte para que as famílias possam vir até a Capital e voltar para casa. "Tem outros aqui que tiveram que desembolsar passagem. Daí fica mais difícil", conta ele.

Desde o ano passado, as caravanas caíram pela metade. Em 2017, 14 delas estavam no Parque. Este ano, são sete. Segundo Luis, a data da Páscoa, a crise econômica do país e os problemas para chegar até a Capital teriam ajudado na desistência.

"Eu acho que não vale muito a pena, porque tenho criança pequena, mas venho junto para ajudar", diz Raquel, também vinda da área de Três Palmeiras.

A arte da cestaria ela conta que aprendeu com a mãe, que trouxe isso de gerações de seus antepassados. Enquanto ela passa as tardes no Harmonia, produzindo mais cestas, com outras mulheres da família ao lado, o marido sai para vender.

Com as calçadas do Centro Histórico cada vez mais disputadas, entre às 4h e 5h da manhã os indígenas já começam a se movimentar para sair. Chegando na Rua dos Andradas, precisam pedir licença e uma brecha aos imigrantes haitianos e senegaleses que também tentam ganhar a vida por ali.

"Tem que ir dividindo", diz Luis. Segundo ele, a Prefeitura de Porto Alegre não interfere, diz apenas que eles têm que acertar a divisão do espaço entre eles.
Migração de época acontece há décadas

A vinda dos indígenas para a Capital na época da Páscoa não é novidade, segundo Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). No passado, eles chegavam aqui com a perspectiva de trocas - traziam seus produtos para levar outros da região de volta para suas aldeias. Quando o sistema de moeda entrou na comercialização, eles seguiram migrando para vender os produtos, mas pensando em criar reservas de dinheiro que ajudam a passar alguns meses do ano.

"É como uma poupança. Em Porto Alegre, isso se dá há muitos anos, mas se intensificou nos últimos 30. Além da Páscoa, acontece na época de veraneio nas praias também, quando os indígenas seguem para lá para vender suas peças. São datas em que os produtos tradicionais deles, como a cestaria, tem maior aceitação no mercado comum", explica ele.

O problema, diz Roberto, é que mesmo que a vinda dos indígenas aconteça todos os anos, a Prefeitura de Porto Alegre nunca trabalhou para atender as demandas deles para essa época.

"Todo ano é sempre difícil dialogar com o município para assegurar um espaço onde eles possam ficar, onde tenham condições de água, saneamento básico e um espaço reservado para que possam comercializar", diz ele. O ideal seria criar, para esta época, um espaço exclusivo para o artesanato como aquele pensado para a Feira do Peixe ou a Feira do Livro, todos os anos.

Ajudando a montar as cestas que serão vendidas até o final da Páscoa, Josué, que trabalhou durante cinco verões nas praias, já fez serviço de construção e limpeza em cidades maiores como Passo Fundo, ainda lembra que para muitas pessoas segue a ideia de que índio não gosta de trabalhar.

"Eu gostaria de dizer que todos nós, se não trabalhássemos, não sobreviveríamos. Nós kaingang temos que trabalhar para sobreviver. Eles não entendem nosso trabalho, como vivemos na aldeia. Lá a gente planta feijão, milho, criamos galinha, porco. Todo mundo trabalha. Se um dia eles fossem ver como a gente vive, iam se surpreender".



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