O último índio de Tanaru

O Globo, Sociedade, p. 26 - 21/07/2018
O último índio de Tanaru

SÉRGIO MATSUURA
sergio.matsuura@oglobo.com.br

Ele não tem nome, família, nem companheiros. Passou os últimos 23 anos em completo isolamento, após o seu grupo ser dizimado em conflitos de terra numa região remota no sul do estado de Rondônia. Conhecido como "índio do buraco" - por escavar covas nas palhoças onde vive -, ele é o último habitante da Terra Indígena Tanaru, uma área florestal de uso restrito com 80 quilômetros quadrados encravada entre cinco fazendas de pasto e agricultura mecanizada. Arredio e traumatizado, foge sempre que percebe a presença dos agentes que o monitoram. Em 2011, sertanistas da Fundação Nacional do Índio (Funai) conseguiram, em uma rara oportunidade, filmá-lo na floresta. O vídeo só agora foi divulgado, na página da Funai no Facebook. A rara imagem de um dos últimos indígenas não contactados, repercutiu em todo o mundo.
Segundo Altair Algayer, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé (FPE Guaporé), o índio continua sozinho na reserva. Ele conta que os primeiros relatos sobre a presença de um grupo indígena isolado na região surgiram na década de 1970. Por causa de conflitos com grileiros, madeireiros e fazendeiros, esse povo era constantemente forçado a se mudar e seus integrantes foram morrendo. Após um ataque em 1995, o grupo que já era pequeno - segundo relatos, formado por apenas seis membros - foi reduzido a apenas uma pessoa, chamado hoje de "índio do buraco".
HOMEM É MONITORADO A CADA DOIS MESES
No ano seguinte, a Funai, enfim, conseguiu confirmar a presença de índios na área após encontrar vestígios de acampamentos, mas o "índio do buraco" só foi avistado em 1997. A confirmação permitiu a criação da Terra Indígena, em 1998, instrumento que visa a proteger os índios, mas enfurece fazendeiros que são proibidos de produzir nas áreas demarcadas. O "índio do buraco" vive numa pequena mata cercada por fazendas. Mesmo com a presença da Funai, foi alvo de atentados: a área só será protegida enquanto ele viver.
- Onde o índio está, a terra é dele. Isso é garantido pela Constituição - explica Fany Ricardo, especialista em povos indígenas isolados no Instituto Socioambiental. - Mas se ele morre, o uso da terra é liberado. Então, interessados tentam matá-lo.
De dois em dois meses, uma equipe da Funai faz operações de monitoramento para avaliar a situação do índio. Para ajudá-lo a sobreviver, deixam sementes e ferramentas por onde o índio passa.
- É um sobrevivente. É natural para ele conseguir caça, fazer pequenos cultivos, então o sustento não é a questão. O que me impressiona é a parte mental, como ele consegue trabalhar a cabeça para passar todo esse tempo sozinho - diz Algayer. - Certamente ele participava de rituais, festas, usava pinturas pelo corpo, produzia cerâmica. Isso tudo foi perdido e superar essa perda deve ter sido muito difícil. E ele conseguiu.
Desde 1987, a Funai possui uma política de não fazer contato com povos indígenas isolados, mas de garantir a proteção dos territórios por eles ocupados. Como o "índio do buraco" estava solitário, foram feitas tentativas de aproximação, mas ele sempre mostrou claramente que não desejava ser contatado. O antropólogo e cineasta Vincent Carelli participou da descoberta dos primeiros vestígios e avistamentos.
- Sempre que a gente encontrava a cabana onde ele estava, ele se mudava - relembra. - Em uma oportunidade, ele se escondeu numa cabana de caça e conseguimos cercá-lo. Ele ficou lá dentro por seis horas, sem emitir nenhum som. A gente nem sabe se fala, ou é mudo.
A última tentativa de contato aconteceu em 2005 e acabou com um funcionário da Funai ferido por uma flechada no pescoço. A primeira reação do indígena é fugir, mas ao se sentir ameaçado, ele pode atacar. Contudo, não existem relatos de que ele tenha ameaçado ou atacado moradores de comunidades vizinhas.
O monitoramento é realizado por meio de incursões no território. "Com rede e mochila nas costas e dias de caminhadas", conta Algayer. Até agora, já foram identificadas 48 palhoças já usadas pelo índio como moradia, além de campos de caça e pequenos cultivos de mandioca, milho e outras variedades. Em todas as casas existe um buraco, com cerca de um metro de comprimento por meio metro de largura e três de profundidade. Daí o seu apelido. É possível que a cova seja usada para armazenar água ou sirva de esconderijo.
Os sertanistas que estudam o índio pouco sabem sobre seu passado e sua cultura. Não podem determinar a qual etnia ele pertence. Segundo Algayer, são poucos os registros em imagens, já que ele sempre percebe a presença dos agentes e foge sem ser visto. Nessas duas décadas de monitoramento, não há um único registro em áudio para a identificação da língua, e os arcos e as flechas são similares aos de todos os outros povos da região.
O vídeo divulgado esta semana foi a única oportunidade em que os funcionários da Funai conseguiram se aproximar e filmá-lo sem serem notados.
Nas imagens é possível ver um homem, aparentemente forte e saudável, usando um machado para derrubar uma árvore. Algayer calcula que ele tenha cerca de 55 anos. Foi o barulho das machadadas que permitiu aos sertanistas localizá-lo e se aproximarem sem serem vistos. Em geral, era o índio que avistava os visitantes primeiro.
As imagens tremidas, com pouco mais de um minuto de duração, repercutiram em todo o mundo. Por meio da internet, a rotina de um homem que vive recluso foi exposta a um grande número de pessoas. Para Fiona Watson, diretora da ONG Survival International, a divulgação do vídeo neste momento tem implicações políticas. Em vez de violar sua privacidade, as imagens ajudam a proteger sua vida.
- Esse vídeo não é apenas uma curiosidade. Ele serve para chamar atenção da sociedade de que esse homem só existe por causa dos sertanistas que estão lá trabalhando. Sem a Funai, ele já estaria morto como os outros do seu grupo - diz Fiona.
PROJETOS DE LEI AMEAÇAM TERRAS INDÍGENAS
Uma das principais preocupações dos ativistas e sertanistas atualmente é a tentativa da bancada ruralista no Congresso de aprovar projetos que dificultem a preservação dos territórios indígenas. Um deles é a PEC 215/00, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de aprovar demarcações de terras. Outro é o PLP 227/12, que facilita a exploração comercial de riquezas em terras indígenas.
- Existem políticos de Mato Grosso e Rondônia que negam a existência de índios isolados. Acusam a Funai de inventá-los para proteger terras que poderiam ser usadas para a exploração. Eles existem e esse vídeo prova isso - diz Fiona.
O Brasil é o país com o maior número de povos indígenas isolados. Segundo dados da Funai, existem 28 grupos confirmados e 86 em avaliação, sendo 26 em estudo e os outros 60 apenas com indicações. E a tragédia do "índio do buraco" não se restringe a Tanaru. Na Terra Indígena Pirikpura, em Mato Grosso, restam apenas dois homens.
- O nosso "progresso" reduziu as florestas e os povos indígenas diminuíram com elas - lamenta Algayer. - O "índio do buraco" está nessa situação não porque quer. Cabe a nós garantir que ele tenha a liberdade de viver, bem e em paz, dentro da floresta.

O Globo, 21/07/2018, Sociedade, p. 26

https://oglobo.globo.com/sociedade/ultimo-indio-de-povo-massacrado-vive-ha-23-anos-em-isolamento-22906657
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