Sob ameaça do novo governo, Yanomamis são tema de mostra de Claudia Andujar

Revista Marie Claire https://revistamarieclaire.globo.com - 15/12/2018
Dois genocídios marcam a vida de Claudia Andujar. O primeiro, durante a Segunda Guerra, dizimou toda a sua família paterna, de judeus da Hungria, assassinados em campos de concentração nazistas. O segundo massacre, dos Yanomami, a fotógrafa nascida na Suíça e radicada no Brasil desde a década de 50 ajudou a evitar, ao se transformar numa das principais ativistas pela demarcação das terras dessa etnia de cerca de 24.603 pessoas, que vive no norte do Amazonas e na Venezuela, no interflúvio dos rios Orinoco e Amazonas. Premiada neste ano com a medalha Goethe, do governo alemão, essa atuação de Claudia em favor dos indígenas é tema, agora, de uma retrospectiva reunindo mais de 250 imagens e documentos inéditos na exposição Claudia Andujar - A Luta Yanomami, em cartaz a partir do dia 15 na sede paulistana do Instituto Moreira Salles (IMS).

A mostra abre num momento em que, novamente, os Yanomami estão sob ameaça. Demarcado em 1992 pelo governo do presidente Fernando Collor de Mello, o território de 96.650 quilômetros quadrados corre graves riscos. "As consequências da exploração de ouro são as mais cruciais", afirma Ana Paula Caldeira Souto Maior, advogada do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (ISA). "O garimpo destrói a floresta, contamina os rios com mercúrio, alicia mulheres e crianças e recruta jovens para a atividade. Apesar do trabalho de repressão da Polícia Federal, Funai e do Exército, a atividade tem se transformado e continua a operar, financiada por empresas, algumas do Sul do país", diz ela.
"A exploração de ouro dentro das terras Yanomami é um negócio bilionário e o grande problema que eles enfrentam hoje."

Para completar, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou mais de uma vez que gostaria de rever as delimitações indígenas. Em post em sua página no Facebook em setembro de 2015, por exemplo, o então deputado federal escreveu: "Somente a reserva Yanomami possui o dobro da área do estado do Rio de Janeiro, e conta com 9.000 [sic] índios. As demais reservas, não por acaso, estão localizadas na região mais rica do mundo em biodiversidade e minerais (...). Com tais direitos, estamos na iminência de vermos surgir dezenas de novos países dentro do Brasil", numa crítica à extensão e autonomia da área.

Desta vez, no entanto, Claudia não poderá estar na linha de frente do combate. Aos 87 anos, a fotógrafa que doa parte do valor de cada obra sua vendida à causa indígena não pode mais fazer a longa viagem às terras Yanomami - e com a saúde debilitada, evita até entrevistas. "Mas ela está muito preocupada com o que pode vir a acontecer com eles", conta Thyago Nogueira, coordenador da área de fotografia contemporânea do IMS e editor da revista Zum.
Como curador responsável pela mostra, Thyago passou os últimos seis anos debruçado sobre o acervo de mais de 30 mil registros da etnia. "Essa é a grande causa da vida dela", diz ele, que, além dos encontros semanais, fez uma longa entrevista com a artista, publicada no catálogo da exibição No Lugar do Outro, realizada em 2015 no IMS do Rio - com os trabalhos de Claudia como fotojornalista. Foi nesse período que ela se aproximou dos Yanomami, durante uma reportagem para a extinta revista Realidade, em 1971. "Estava na Amazônia havia um tempo, e então soube que um padre tinha morrido repentinamente, ninguém sabia como", descreve Claudia. "Perguntei à revista se o assunto poderia interessar. Eles disseram que sim. Então, fui até os Yanomami para descobrir por que aquele padre havia morrido. Gostei muito deles, e no fim a revista publicou não sei quantas páginas, e colocou uma Yanomami na capa. Fizeram isso porque eram índios bonitos, ainda não havia interferência, eram índios de primeiro contato. Então foi aceito... E esquecemos o padre."
Começava ali uma parceria a que Claudia dedicaria toda a sua trajetória. No início, como artista, registrando as aldeias com uma bolsa da fundação norte-americana John Simon Guggenheim.

"Mas diante da tragédia da invasão garimpeira de 1985, que estava dizimando os Yanomami, ela se juntou a pesquisadores, antropólogos e linguistas na Comissão para a Criação do Parque Yanomami", conta Ana Paula. "Claudia contribuiu na articulação de uma campanha nacional e internacional, que deu visibilidade à tragédia da invasão, e culminou na demarcação, em 1992", completa a jurista. Como ativista, Claudia chegou a ser ameaçada de morte e foi expulsa das terras indígenas em 1977. "Ela estava chamando muito a atenção internacional, e isso não agradava ao governo", conta Thyago. "Descobrimos em arquivos do Estado que eles acompanhavam de perto o que ela fazia, sem que ela tivesse ideia disso", completa o curador.

As ameaças, no entanto, não assustaram essa sobrevivente do holocausto. Nascida na Suíça, Claudia (batizada Claudine Haas) é filha de Germaine Guye, uma sueca de família protestante, e Siegfried Haas, engenheiro húngaro de origem judia. Criança, a fotógrafa mudou-se para Oradea, na Hungria, cidade do clã paterno, e viveu com eles - seus pais eram separados - até que todos foram enviados ao gueto - e, posteriormente, aos campos de concentração. Com a mãe, fugiu para a Suíça, onde morou até um tio do lado judeu convidá-la para ir aos Estados Unidos. Em Nova York, aos 18 anos, se casou com o espanhol Julio Andujar e mudou seu nome para Claudia - para esquecer a difícil infância -, numa união que durou três anos. Lá, começou a fotografar e a pintar, e, graças ao fato de ser poliglota, conseguiu trabalho na sede das Nações Unidas. Em 1955, a então aspirante a pintora descobriu que sua mãe tinha vindo ao Brasil para se casar com um imigrante romeno e decidiu visitá-la. Nunca mais foi embora. A fotografia, nessa época, era uma maneira para Claudia se comunicar - já que ela ainda não falava português.

Sua obra, afirma Thyago, é marcada pelo desejo de fazer uma interpretação visual da "cosmogonia Yanomami". Além disso, possui um caráter utilitário, como na série Marcados: "Durante anos, Claudia integrou equipes médicas que visitavam o território Yanomami. Como os indígenas não têm nome próprio, ela desenvolveu um sistema de fichas para identificá-los, com uma foto de cada um deles, que carregam um número pendurado no pescoço", diz o curador. "Como eles não tinham muito contato com a câmera, existe uma espontaneidade nas poses e até uma fragilidade nessas imagens que, para ela, remetem também à identificação dos judeus, que carregavam a estrela na roupa e, depois, um número tatuado no braço." Nesse poderoso conjunto de 3x4, que acabou se transformando em fotografia de arte, Claudia, inconscientemente, celebra a alma de seus ancestrais, incorporada naqueles que ela adotou como família.



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Produção Cultural:Fotos e Ilustrações

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