Impasse coloca etnia indígena avá-canoeiro em risco em Goiás

O Popular - https://www.opopular.com.br - 03/11/2019
Povo que vive no Norte do Estado está ameaçado de extinção e tinha miscigenação como alternativa ao desaparecimento. Agora, relações estão no foco de conflito entre índios e Funai.

Antes vista como uma alternativa para que o povo avá-canoeiro não fosse extinto, a miscigenação entre etnias está no centro de um conflito entre a comunidade e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Dois indígenas das etnias tapirapé, do Mato Grosso, e guajajara, do Maranhão, teriam sido impedidos de residir na Terra Indígena Avá-Canoeiro, no Norte de Goiás, mesmo com relações afetivas estabelecidas. A situação foi denunciada ao Ministério Público Federal (MPF), que irá apurar a possível interferência, uma vez que as versões apresentadas pelas partes são distintas: enquanto os índios reclamam da separação, a Funai alega a existência de problemas entre eles, como agressões físicas, e influência externa na definição de um dos casamentos.

O caso é acompanhado pelo procurador da República Wilson Rocha, que tem atuação com competência sobre Minaçu, município goiano em que a comunidade está sediada, e foi informado sobre a questão por membros do povo avá-canoeiro. De acordo com ele, a realização de uma perícia antropológica pelo MPF foi solicitada durante a última semana, para que o quadro, que ele considera preocupante, seja analisado.

"A situação me preocupa muito, porque estamos diante de uma etnia praticamente dizimada. Há apenas cinco índios sobreviventes, sendo que os dois em idade adulta são irmãos. A questão do casamento interétnico pode parecer menor, mas o que estamos discutindo é a própria sobrevivência da etnia", explicou o procurador ao POPULAR. Os indígenas a quem ele se refere são as três sobreviventes que estavam no grupo original encontrado pela Funai em 1983, chamadas Matxa, Naqwatcha e Tuia, e os dois filhos de Tuia, Trumak e Niwathima (leia detalhes na página ao lado). Além deles, há três crianças, filhas de Niwathima com um índio tapirapé.

A Funai foi procurada pela reportagem para conceder informações sobre a situação atual dos avá-canoeiros e esclarecer o conflito investigado pelo MPF, mas não respondeu às perguntas enviadas.

Problema era solução

A situação vivida atualmente, que implicou no retorno de indígenas para terras de origem, contrasta com aquela experimentada pelos avá-canoeiros há poucos anos, quando a união entre uma jovem da etnia e um índio tapirapé foi celebrada tanto pela comunidade como por não-índios. O motivo foram os filhos gerados pelo casal, que levaram a esperança de que houvesse a perpetuação do povo, até então considerado sob risco de extinção.

Em 2012, quando havia apenas seis representantes avá-canoeiros em Goiás, o primeiro nascimento colocou fim ao vácuo de mais de duas décadas sem novos descendentes. Depois do menino Paxeo, hoje com 7 anos, vieram Wiroi, menina que tem 4 anos, e o caçula Kaogo, de 3.

De acordo com o pai Kaptomyi, tapirapé conhecido como Parazinho, a exigência de sua saída da aldeia em Minaçu para voltar para o Mato Grosso foi feita por membros da Funai. "Falaram para nós: 'vocês estão ocupando a área indígena avá-canoeiro. É melhor vocês se afastarem e irem embora'. Eu senti no meu peito. Doeu ouvir essas coisas. A gente (ele e Niwathima) é casado há nove anos", disse ao POPULAR.

Ao MPF, a Funai informou que há relatos de agressões cometidas pelo marido contra Niwathima. Ele nega. De acordo com o procurador da República, a índia não relatou o problema quando foi contatada. Por este motivo, explicou Rocha, será apurada a veracidade do documento assinado por ela, em que há o relato de violência doméstica, e também a existência de improbidade administrativa pela Funai.

A guajajara Samaira também teve de retornar ao Maranhão após menos de um mês de seu casamento com Trumak, celebrado em Minaçu. De acordo com o MPF, a Funai alega que o casamento foi motivado por interesses externos, ligados aos recursos que os avá-canoeiros recebem em decorrência de compensações ambientais pelo alagamento de parte de seu território pelo Lago de Serra da Mesa, pago mensalmente pela Furnas Centrais Elétricas. A hipótese é descartada por pessoas ouvidas pela reportagem, que garantiram que a união é fruto da vontade de ambos. "Essa situação tem causado muita tristeza a todos", disse uma antropóloga da Funai que não quis se identificar por temer represálias.

"Erro é tratá-los como incapazes", diz procurador

O sentimento na aldeia após o afastamento dos indígenas é de tristeza. Profissionais que conviveram durante anos com os avá-canoeiros dizem que o sofrimento tem sido perceptível e que os indígenas os procuram para pedir ajuda, até mesmo em tom de amizade. "Os índios encontram-se bastante entristecidos, bem como beirando a um estado de estresse generalizado. Importante levar em conta o histórico recente de perda de seu líder, Iwai, do qual dependia o grupo para o equilíbrio de tensões e mediação de conflitos", contou a antropóloga cuja identidade será preservada a pedido da mesma.

A profissional diz que teve conhecimento da existência de conflitos entre a família durante o período de adaptação com os novos membros. Algumas discussões foram levadas à Coordenação Técnica Local da Funai, que acabou acionando instâncias superiores. A medida é vista por ela como excessiva. "Foram expostos problemas internos das famílias de Niwathima e Trumak, para conhecimento e solução, que indiscutivelmente poderiam ser resolvidos entre os próprios índios, se minimamente orientados por uma chefia sensibilizada", avaliou.

O quadro também preocupa o procurador da República Wilson Rocha, que teme que a ação da Funai seja uma interferência nas estratégias de sobrevivência encontradas pelo grupo, ainda diminuto em Goiás. Para ele, decisões sobre as relações devem ser tomadas apenas pela comunidade. "O erro de origem na questão é tratar os avá-canoeiros como se fossem incapazes, de forma infantilizada, como se não pudessem definir seus destinos", avaliou o procurador.

"Por mais que sejam um povo de recente contato, eles têm o direito de tomar suas decisões existenciais, como casar, constituir famílias com outras etnias e permitir que vivam lá dentro."

Resposta
Na última quarta-feira, o POPULAR solicitou à Funai um posicionamento sobre o assunto, mas, até o fechamento desta edição, não houve resposta.




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PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins

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