"Com o coronavírus, vivemos o que índios vivem há séculos", diz médica

UOL/Ecoa - https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias - 18/07/2020
"Com o coronavírus, vivemos o que índios vivem há séculos", diz médica

Lia Hama Colaboração para Ecoa, em São Paulo

A pandemia da Covid-19 fez com que o mundo todo experimentasse aquilo que os povos indígenas vivem há séculos no Brasil. "Essa sensação de desespero e angústia, de perda repentina de pessoas próximas por causa de um vírus desconhecido que se espalha e mata rapidamente, é o que os indígenas têm vivido desde a chegada dos primeiros europeus e suas doenças", afirma a médica sanitarista e mestre em antropologia Sofia Mendonça, coordenadora do Projeto Xingu, da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), que atua na área indígena no norte do Mato Grosso.

De sua casa em São Paulo, onde está de quarentena desde o dia 12 de março, Sofia coordena ações de apoio ao combate à Covid-19 na Terra Indígena do Xingu (ou Parque Indígena do Xingu, como é mais conhecido, apesar do termo "parque" ser rejeitado pelos xinguanos), um território de mais de 26 mil quilômetros quadrados, onde vivem cerca de 7 mil indígenas de 16 etnias. Criada em 1961, a TIX foi a primeira grande área indígena demarcada pelo governo federal.
O Projeto Xingu teve início em 1965, quando o sertanista Orlando Villas Bôas, então diretor da reserva, convidou Roberto Baruzzi, professor da Escola Paulista de Medicina, a desenvolver um projeto de saúde na região, com o acompanhamento clínico e a imunização dos índios em visitas periódicas feitas por uma equipe de voluntários. "Muitas lideranças mais velhas do Xingu têm a memória do impacto da vacina, que diminuiu a mortalidade infantil. Hoje eles se imunizam para evitar várias doenças e a primeira coisa que perguntam é quando vai ficar pronta a vacina contra o coronavírus", conta Sofia, 60 anos, que atua na região desde 1981. Em entrevista a Ecoa, a médica sanitarista falou sobre as estratégias de enfrentamento da Covid-19, o combate às notícias falsas, o cancelamento do Kuarup, principal festa dos povos do Xingu, e as lições dos índios sobre como viver de forma mais equilibrada e integrada à natureza.

Ecoa - O que a Covid-19 tem a nos ensinar sobre empatia em relação aos indígenas?

Sofia Mendonça - O que a gente está experimentando nessa pandemia, essa sensação de fim do mundo que conhecíamos até então, da "queda do céu", é o que os indígenas vivem há séculos. Desde quando o europeu invadiu essas terras, uma série de epidemias dizimaram os povos indígenas. Agora, com o coronavírus, sentimos na pele o que eles sentem.

Que outras epidemias já assolaram o Xingu?

A de sarampo teve um impacto grande nos anos 60 e 70. Mas eles enfrentaram outras: de gripe, de tuberculose e de malária, principalmente na época dos garimpos na região de Peixoto de Azevedo, no entorno do parque.

Como está o clima nas aldeias por conta da chegada do coronavírus?

O pânico tomou conta de muitas delas e é difícil abordar o assunto sem que todos fiquem em clima de extrema ansiedade. Isso demanda muita conversa com eles e, quando tem fake news, fica difícil. A maioria das aldeias hoje têm televisão e acesso à internet e as fake news chegam pelo celular.

Como as mensagens do governo federal, minimizando a gravidade da doença, dificultam o enfrentamento dela?

Essa ideia de que "é só uma gripezinha" ou "é só tomar o remédio tal, que você vai ficar bom" tem atrapalhado demais. A desinformação faz com que muitos continuem indo às cidades próximas, onde são contaminados. Também houve desorganização dos serviços das casas de saúde indígena nos municípios e índios contaminados acabaram levando o vírus para as aldeias.

Qual é o número de índios infectados pelo coronavírus no Xingu?

Até ontem (dia 17/07) havia 74 casos confirmados, todos da região do Polo Base Leonardo Villas Bôas, no Alto Xingu. Além destes, havia 64 casos suspeitos, de pessoas com quadro gripal, e cinco óbitos. Esses números levam em conta só indígenas que moram nas aldeias e muito provavelmente existe uma subnotificação dos casos por falta de testes e de informações.

Quais são as estratégias de enfrentamento da Covid-19 na região?

O responsável sanitário é o Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu, do Ministério da Saúde. O Projeto Xingu, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), tem um acordo de cooperação técnica com eles. Nosso apoio tem sido para melhorar a capacitação das pessoas, das equipes de campo, de reforçar essas equipes, mandar materiais e insumos e acompanhar. Uma das questões-chaves é fazer com que a informação correta chegue aos índios. Em março, começamos uma campanha de prevenção chamada "Fica na aldeia", com áudios e vídeos explicando o que é a doença e como ela se propaga. Com isso, vários grupos, particularmente no Médio, no Baixo e no Leste Xingu, ficaram isolados nas aldeias e a doença não entrou. Mas ela entrou no Alto Xingu.

Como a distribuição do auxílio emergencial contribuiu para a disseminação da doença?

Trouxe uma mensagem ambígua. Porque nós, da área da saúde, falamos: "Fica na aldeia". Aí o governo federal fala: "Vai buscar o auxílio". Então muitos foram para a cidade receber o pagamento e levaram o vírus para as aldeias. Isso está acontecendo em muitas áreas indígenas, não só do Xingu. E foi um dos pontos que o presidente [Jair Bolsonaro] vetou no projeto de lei para o enfrentamento da Covid: ter uma outra forma desse auxílio chegar aos povos indígenas, para evitar de irem às cidades e se contaminarem.

Como está sendo o enfrentamento da Covid nas aldeias aonde a doença chegou?

A gente propôs montar unidades de atenção básica que façam o atendimento dos casos leves e moderados, de forma a evitar que os pacientes sigam para os hospitais que já estão colapsados na região. A ideia é fazer o controle e o acompanhamento daqueles que têm quadros leves e moderados.

Quem faz o trabalho de atendimento nas aldeias?

As equipes multidisciplinares de saúde indígena do distrito, complementadas por equipes de resposta rápida, com médico, enfermeira e técnicos de enfermagem. Só que alguns estão adoecendo e há falta de equipe. Agora estamos recrutando médicos para ajudarem na região. Mas nosso grande apoio tem sido virtual. Produzimos cards e guias sobre como usar o EPI (equipamento de proteção individual) e fazemos reuniões cotidianas com a equipe de campo, esclarecendo dúvidas e fazendo capacitação. Também produzimos um curso online sobre o enfrentamento da Covid para profissionais de saúde, que vai ao ar agora no dia 20 de julho.

Nas regiões do Xingu onde o vírus não chegou, como as comunidades têm se organizado?

Onde o vírus não entrou o pessoal está super consciente, os próprios indígenas estão criando estratégias incríveis, fazendo barreiras sanitárias. Por exemplo, os kisêdjê compram pela internet os produtos da cidade que precisam, como alimentos, produtos de higiene ou ferramentas. Os produtos são entregues num posto, numa barreira sanitária, longe da aldeia. Lá passam por um processo de espera e desinfecção antes de serem levados para as aldeias.

Como é o trabalho de vocês junto a outras instituições que atuam na região?

Fazemos parte de um comitê interinstitucional com os atores que têm uma interface de trabalho junto aos povos do Xingu para o planejamento e a execução de ações, a compra de materiais e equipamentos. Apoiamos a campanha de arrecadação da Associação Terra Indígena do Xingu, que reúne as 16 etnias do Xingu, para que possam enfrentar a doença e manter o isolamento social. O Hospital São Paulo doou muitos EPIs, o ISA (Instituto Socioambiental) fez compras de materiais para pesca e caça, construção das unidades de saúde e equipamentos.

Qual a interpretação dos povos do Xingu sobre a pandemia?

Para alguns pajés, é uma punição porque houve um desequilíbrio na relação do homem com a natureza, com os donos das matas e das águas. E a explicação de por que um paciente com Covid fica ruim e outro tem sintomas leves é que aquele que ficou ruim foi enfeitiçado por um inimigo. Então a gente precisa levar isso em conta ao conversar com eles. Tem que haver um respeito e uma delicadeza muito grandes nesse diálogo. Ao mesmo tempo, precisamos explicar como a doença funciona do ponto de vista da medicina ocidental, para que eles possam se proteger.

Como falar em isolamento social numa sociedade que se caracteriza pela coletividade?

No Xingu, cada oca costuma acomodar de 10 a 20 pessoas. Dependendo da aldeia, pode chegar a 30 ou 40. São casas com configuração circular, com um espaço público. As crianças rodam por todas as casas. Os avós cuidam das crianças e, quando ficam adolescentes, elas cuidam dos avós. A família compartilha os utensílios, a mesma cuia é usada por todos para comer o mingau. Então tudo isso facilita para que a doença se alastre rapidamente. Ao mesmo tempo, eles têm momentos da vida em que precisam ficar isolados. Por exemplo, na reclusão pubertária, quando o menino ou a menina vai mudar de papel social. Então eles entendem essa conversa de isolar grupos de risco, como os idosos, ou aqueles que estão doentes.

O Kuarup, festa dos povos do Xingu que homenageia os mortos, foi cancelado este ano. É a primeira vez que isso acontece?

Alguns caciques estão falando isso. Mas existem relatos de antropólogos de que isso já aconteceu em outros momentos. Este ano iam acontecer seis Kuarups em diferentes aldeias. Alguns povos, percebendo a chegada da doença, resolveram cancelar, o que foi muito sábio porque ia gerar uma aglomeração imensa. Duas aldeias ainda querem fazer, mas acho que vão desistir.

Em tempos normais, a festa acontece em que período?

De julho a setembro. Existe toda uma preparação: de colher a mandioca, fazer o polvilho, a pescaria etc. Então o ir e vir entre as aldeias é grande e essa circulação pode disseminar o vírus. A celebração envolve não só o povo da aldeia que sedia o Kuarup. Tem o povo da outra aldeia que faz a festa junto e outros povos visitantes que acampam nos arredores. Também vão muitos turistas, então são centenas de pessoas reunidas no mesmo lugar.

Você atua no Xingu desde 1981. Quais as principais mudanças que você observou nessas quase quatro décadas na região?

Antigamente, quando a gente ia para lá, pegava uma aeronave da Funai no aeroporto de Congonhas, abastecia em Santa Isabel, no Araguaia, e descia duas horas depois no Xingu. Você olhava de cima e via mata por todos os lados, naquela zona de transição do cerrado para a floresta amazônica. Ao longo dos anos, isso foi acabando.

Por que as questões indígenas parecem ganhar pouca atenção no Brasil?

Nos anos 80, houve uma chamada muito forte, inclusive aquele discurso famoso do [líder indígena] Ailton Krenak na Assembleia Constituinte [em 1987, quando pintou o rosto com tinta preta de jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas]. Os movimentos sociais estavam fortalecidos, imbuídos de uma força que os unia, e tudo ficava mais visível. Depois murchou. Pensar num movimento único para os índios é complicado. Porque ele é kuikuro, ele é caiapó, ele é yawalapiti. O perceber-se índio como uma identidade é uma construção que precisa ser feita. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) tem conseguido dar visibilidade à causa, tem feito um trabalho interessante, inclusive agora, ao propor um plano de enfrentamento da pandemia, encabeçando um projeto de lei junto à deputada-federal Joenia Wapichana (Rede-RR).

Na minha leitura, é proposital porque esse pensamento assimilacionista do próprio presidente [Jair Bolsonaro] é muito comum, existe muito preconceito e muita gente não quer que se crie uma política afirmativa do índio no país. Ao mesmo tempo, a gente vê uma pressão internacional muito forte, cobrando a preservação do meio ambiente e dos povos indígenas no Brasil e ameaçando com sanções econômicas. Exatamente. É por aí que eles conseguem ter muitas de suas conquistas, vitórias e visibilidade. Espero que a gente consiga ampliar isso.

Como surgiu seu interesse em trabalhar com povos indígenas?

Sempre tive fascínio pelos índios. Seus modos de viver e de pensar fazem a gente se questionar sobre as escolhas que estamos fazendo e para onde estamos indo. Ailton Krenak afirma que o coronavírus veio ocupar os espaços vazios de afeto que a gente construiu como sociedade, com a competição e o individualismo exacerbados. Os índios mostram outras formas de se relacionar com as pessoas e um modo de viver muito mais integrado à natureza, que eu admiro e com o qual me identifico.


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