As matas como o cabelo da terra. As águas como o sangue da terra. As pedras como o osso da terra. A comparação entre corpos humanos e meio ambiente foi feita pelo cacique Xikão Xukuru, em 1992. Essa personificação da natureza serviu como resposta quando um advogado perguntou ao líder indígena sobre qual seria o sentido da terra.
O cacique Xikão está encantado e vivo na ancestralidade do povo Xukuru de Ororubá. O território da etnia está localizado entre os municípios de Pesqueira e Poção, no agreste pernambucano, a cerca de 200 quilômetros da capital Recife.
São 25 aldeias e aproximadamente 10 mil pessoas que resgatam, no dia-a-dia, um sentido de bem viver em que gerações não se separam do meio ambiente.
"Por que a gente vai deixar a nossa mãe desprezada? Isso está certo? Não está. A gente tem que valorizar a nossa mãe. A gente nasceu dela, e dela vamos acabar. Eu já estou comparando a terra com nós mesmos. E nós, mães, na gestação, a gente cria aqui [no útero]. Mesmo assim, é a terra. Nós nascemos dela", avalia Socorro Xukuru, defensora dos valores da etnia e da conquista de direitos no território.
Luta pela terra
Na história, há quem não enxerga a perspectiva da "mãe-terra" relatada pela indígena. O território do povo Xukuru já foi invadido por quem buscava apenas o lucro.
Há registro de conflitos pela terra desde o século XVII, quando a Coroa portuguesa instituiu as sesmarias. O instrumento jurídico normalizada a distribuição de terras destinadas à produção agrícola. Mas é a partir do século XIX que as famílias tradicionais de Pesqueira intensificam as apropriações de terras Xukuru para monocultivo e pecuária extensiva.
Por outro lado, em 1989, a militância Xukuru conquistou a homologação das suas próprias terras. Ao mesmo tempo, a ganância de latifundiários permaneceu fazendo perseguições e até mesmo assassinatos, a exemplo do cacique Xikão, em 1998.
É neste cenário que o Estado brasileiro foi reconhecidamente lento e omisso diante dos crimes sofridos pelos Xukuru. Para se ter ideia sobre o caso, o governo federal teve que depositar uma indenização de um milhão de dólares neste mês de fevereiro de 2020 por decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A conquista da terra é o mote para um processo de reexistência também na agricultura aplicada na área de 27 mil hectares. Para tanto, foi constituído o Complexo de Agricultura Xukuru de Ororubá (Caxo), composto por estruturas como a Casa de Sementes Mãe Zenilda, Barraca do Bem Viver, Terreiro Sagrado da Boa Vista, além de área de sistema agroflorestal e roçado agroalimentar.
Agricultura e espiritualidade
A construção do Caxo firma pactos de caráter biológico, cultural e espiritual. Iran Xukuru, por exemplo, ressalta o resgate da ancestralidade já durante o período de reocupação do território.
"De lá, a gente firmou esse compromisso de cuidar do terreiro, de buscar fazer esse trabalho enquanto guardião, mas principalmente de preservar a natureza. Fazer a agricultura, mas com aquele termo que eu sempre uso: a mata viva, verde e em pé, com floresta. Porque quem segura os reinados são as matas. Sem as matas, o reinado cai. É como os Ianomâmis falam sobre a queda do céu: se não houver floresta, ele cai. E os encantos e os espíritos - no caso deles e de nós - vão embora", explica.
É assim que a chamada Agricultura do Sagrado intitula o manejo e produção do Povo Xukuru de Ororubá. Há uma relação constante da Agricultura do Sagrado com a observação dos sinais da natureza, de resgate da ancestralidade e de contato com os "encantos". A Agricultura do Sagrado também não se separa da educação Xukuru e das afirmações políticas, a exemplo da Assembleias anuais realizadas no território.
A Agricultura do Sagrado desafia o pensamento moderno e suas limitações de olhar restrito para a cientificidade. A proposta dos Xukuru é retomar seus valores, experiências e práticas que enfrentaram o período da modernidade colonial dentro de um contexto mais amplo que a linearidade dos nossos tempo.
Como exemplo, Iran Xukuru reforça que os povos anteriores ao período da colonização criaram sistemas agroflorestais que devem ser revisados no contexto contemporâneo.
"Nos primórdios da agricultura, ela é caça, pesca, extrativismo. É cultivo da floresta. E ela é essencialmente espiritualidade. Agricultura é espiritualidade", conclui.
https://www.brasildefato.com.br/2020/02/27/agricultura-do-sagrado-resgata-ancestralidade-e-espiritualidade-do-povo-xukuru
PIB:Nordeste
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