Sonia Guajajara: 'Não dá para falar de direitos indígenas sem falar de direitos ambientais'

O Globo - https://oglobo.globo.com/celina - 05/09/2020
Sonia Guajajara: 'Não dá para falar de direitos indígenas sem falar de direitos ambientais'

Leda Antunes

Essa é a primeira vez, depois de anos de uma agenda repleta de compromissos mundo afora, que a líder indígena Sonia Guajajara passa tanto tempo em casa. Ela mora na cidade de Imperatriz, no Maranhão, a cerca de cem quilômetros da terra indígena Araribóia, onde nasceu, em 1974. Desde março, está em quarentena junto com a filha mais nova, de 15 anos, e os dois filhos mais velhos, de 18 e 20. Mas os cinco meses sem viagens pelo país e pelo mundo não significaram uma pausa no trabalho. Muito pelo contrário.

À frente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sonia Guajajara tem mobilizado esforços em diversos setores para construir um plano de enfrentamento à Covid-19 entre os povos indígenas que envolva a adoção de medidas sanitárias e de saúde nos territórios, a articulação nos poderes Legislativo e Judiciário para implementação das medidas e o fortalecimento de uma rede internacional de apoio à causa. Até o final de agosto, o Brasil já somava quase 29 mil indígenas contaminados pela Covid-19, 757 mortes e 156 povos afetados.
Como parte dessa articulação, neste 5 de setembro, Dia Internacional da Mulher Indígena, a Apib promove uma live com a cantora Anitta e, neste domingo, lança o último dos oito episódios da websérie "Maracá - Emergência Indígena". A série é dirigida por Bia Lessa, pela própria Sonia Guajajara, pela liderança Célia Xakriabá e a cantora e compositora Maria Gadú. O objetivo é mobilizar nas redes apoio ao plano emergencial para enfrentar a pandemia e visibilizar o papel dos povos e dos territórios indígenas na proteção do meio ambiente.

- É muito importante furar essa bolha de indígenas, ambientalistas e de ativistas de direitos humanos para acessar outros públicos que precisam entender a presença indígena no Brasil - explica Sonia, e reforça: - Para nós, não tem como falar de direitos indígenas sem falar de direitos ambientais. Nossa existência e nosso modo de vida estão totalmente ligados à proteção do meio ambiente.

Em entrevista concedida à CELINA por telefone, Sonia Guajajara falou sobre a websérie e sobre a articulação da Apib para combater a Covid-19 entre os povos indígenas, relembrou sua trajetória e enalteceu a importância da liderança de mulheres indígenas.

- Estamos fortalecendo cada vez mais o movimento indígena e a maioria das articuladoras são mulheres. A gente tem feito muita diferença.

CELINA: Que mensagem a Apib quer levar para o público com a série 'Maracá'?
SONIA GUAJAJARA: A série é justamente para denunciar a violências e as violações de direitos que os povos indígenas vêm sofrendo. Entendemos que esse é um momento bem grave e que não há um comprometimento do governo federal para atender os povos indígenas. O coronavírus chegou de forma muito mais intensa do que a gente previa nos territórios e já matou mais de 700 indígenas. E isso só está sendo evidenciado por conta de um trabalho que a Apib vem fazendo, de mostrar e notificar esses casos. Se fosse esperar a notificação do governo federal, da Sesai ( Secretaria Especial de Saúde Indígena), que é o órgão responsável, tudo isso estaria invisibilizado. A gente não teria o panorama real da situação da pandemia entre os povos indígenas. A Apib criou um comitê para fazer a compilação dos dados, em colaboração com especialistas da Fiocruz e do Ipea.

Somada a isso, tem a situação de conflitos históricos e da falta de políticas públicas que contenham o desmatamento, as queimadas, a extração ilegal de minérios e toda a violência que acontece pela falta de demarcação de terras indígenas. A gente fez a série para dar visibilidade a essa situação conjuntural, da pandemia, e estrutural, da falta de apoio histórico. Nosso objetivo é visibilizar o impacto da pandemia e o papel dos povos e dos territórios indígenas para o planeta e para a humanidade.

A demanda, trazida já no primeiro episódio da série, é que o Estado assuma a sua responsabilidade em garantir a proteção dos povos indígenas. O que precisa ser feito? E o que dá para esperar do governo atual?
O primeiro objetivo é que o governo assuma essa responsabilidade. Mas a gente sabe bem que esse governo não é capaz de adotar esse plano que visa garantir a segurança dos povos indígenas na pandemia. Então, contamos com a sensibilização da sociedade para assistir, entender, estar junto e reagir à postura do governo federal. E, quando a gente fala que precisa do apoio da sociedade, estamos falando de direitos civis enquanto direitos ambientais também. A responsabilidade de lutar pelo direito ambiental é de todo mundo. Para nós, não tem como falar de direitos indígenas sem falar de direitos ambientais. Nossa existência e nosso modo de vida estão totalmente ligados à proteção do meio ambiente. A gente quer pressionar o governo a adotar o plano de enfrentamento à Covid-19 desenhado pelos povos indígenas, mas também quer que a sociedade reaja a tudo isso que o governo está fazendo, para aumentar essa pressão.

A série traz vozes de vários países. Qual é a importância de as demandas dos povos indígenas serem reconhecidas e reverberadas internacionalmente?
Por muito tempo, lutamos de forma isolada. Éramos nós por nós. Mas a causa indígena não é responsabilidade só nossa e não pode ser defendida só por nós. O benefício de ter o meio ambiente protegido e ter os territórios indígenas demarcados é para a humanidade toda, pensando na água que chega na casa das pessoas, no ar que todo mundo respira e vem da floresta que está em pé. A gente não quer que olhem para nós como coitadinhos, mas que nos enxerguem pela nossa potência de conseguir proteger e preservar tudo isso e garantir a vida para todo mundo. Ter essa adesão da sociedade e da comunidade internacional é também esperar que essas pessoas compreendam a relação dos povos indígenas com o meio ambiente, que tem a ver com a própria vida, com a própria existência. Quando a pessoa compreende isso, ela não consegue mais se manter indiferente e abraça a causa como sua também. Hoje, a gente tem chegado em lugares que antes seria impossível.

Quando conversei com a deputada Joenia Wapichana, ela disse que considera esse o pior momento vivido pelos povos indígenas desde a Constituição. Dá para dizer que, ao mesmo tempo, há uma maior conscientização para as causas indígenas?
Sim, estamos vivendo um dos piores momentos na conjuntura política. Nem só do tempo da Constituição para cá, mas do último século. Já não esperava muita coisa desse governo, ele resgata a ideia de provocar divisionismo entre os povos indígenas, oferecendo promessas de renda com o agronegócio, arrendamento de terra e mineração. Dentro da política institucional, esse é um dos piores momentos. Mas é também o momento em que a sociedade está se aproximando mais dos povos indígenas; isso é importante para aumentar a adesão das pessoas.

Onze brasileiras respondem: Como será o futuro das mulheres no mundo pós-pandemia?

Hoje quais são as principais demandas dos povos indígenas e das mulheres indígenas e de que forma essas demandas convergem?
Existem pautas que as mulheres precisam discutir de forma específica, mas a luta das mulheres indígenas sempre se dá no sentindo de fortalecer as pautas dos povos indígenas. A luta por território é a maior luta. Então as mulheres indígenas abraçam essa luta e defendem a terra como a mãe. A gente consegue sentir fortemente essa urgência de que a Mãe Terra está sendo atacada. Essa é a maior bandeira das mulheres indígenas e temos avançado com essa articulação. No ano passado, realizamos a primeira Marcha das Mulheres Indígenas, em que discutimos saúde diferenciada e de qualidade, uma educação adequada, que respeite o nosso modo de vida e o nosso calendário, o empoderamento das mulheres e a incidência política. A gente continua avançando com essas pautas, sempre no sentido de garantir a participação e o empoderamento das mulheres em todos esses espaços.

Em uma entrevista anterior, você disse que o feminismo, do jeito que é colocado, não atende às visões e demandas das mulheres indígenas. Por quê? Existe feminismo indígena?
Acredito que a gente ainda não conseguiu se apropriar bem do que o conceito do feminismo representa para nós. A gente consegue estar junto e discutir, mas, falar de feminismo dentro das aldeias ainda assusta as mulheres. Eu sei que foi a luta das mulheres que conseguiu garantir muitos direitos, mas como existem muitas formas de compreender o feminismo, às vezes o que fica é o conceito radical. Quando falamos que o feminismo não atende ou não contempla é porque estamos na luta por participação e por igualdade de direitos, mas sem trazer um nome definido para isso. Às vezes, sentimos que as mulheres não-indígenas querem impor que a gente chame o que fazemos de feminismo. E aí muitas indígenas acabam não aceitando. Nós não vamos deixar de fazer o que fazemos e de ser o que somos, mas não precisamos de rótulos ou de um conceito, porque a nossa luta é anterior a esse conceito. A palavra feminismo ainda não nos define.

Em quase duas décadas de atuação, você já ocupou inúmeros cargos e posições estratégicas e de liderança. Houve algo que foi mais desafiador neste processo, pelo fato de você ser uma mulher?
Essa resistência de aceitar a mulher em determinados espaços é um fator que acontece em todas as sociedades. Todos nós, brasileiros, temos essa herança colonial que impregnou gerações. Tem um machismo muito forte ainda no Brasil, e entre os povos indígenas não é diferente. Alguns povos adotaram essa herança colonial machista como cultura. Em algum momento foi dito que determinados espaços não eram para a mulher, e isso foi sendo repassado. Aos poucos a gente vem discutindo isso. Mas a gente não confronta, de forma alguma, porque olha os homens todos como maridos, irmãos e pais. A gente mostra que também pode ocupar esses espaços, que também está preparada.

Houve reação de outras lideranças indígenas?
É claro que para mim não foi fácil. Eu senti a reação de algumas lideranças indígenas; não queriam confiar ou acreditar que eu pudesse dar conta porque eu sou mulher. Mas nunca fui impedida de participar de nada, as reações foram esporádicas. Eu consegui impor um certo respeito desde o primeiro momento. Para nós, como foi uma coisa herdada, se a gente discute e se posiciona, é fácil de desmontar. E, quando transmitimos segurança e temos a confiança das pessoas, não tem mais essa de dizer que não pode fazer algo porque é mulher.

Eu gosto muito de lembrar da Nara Baré, que é a primeira mulher a assumir a liderança da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Pela primeira vez, temos uma mandato paritário. No Maranhão também, são dois homens e duas mulheres. Temos reafirmado que nós queremos eleger mulheres. A gente tem uma deputada mulher, uma co-deputada em São Paulo, a Apib é coordenada por uma mulher, temos três assessoras parlamentares mulheres. Nós temos mulheres indígenas ocupando espaços distintos, onde fazem toda a diferença. Estamos fortalecendo cada vez mais o movimento indígena, e a maioria das articuladoras são mulheres. A gente tem feito muita diferença, temos um jeito de sensibilizar as pessoas, agregamos muito mais gente.

Você comentou que o machismo dentro dos povos indígenas, tido como cultural, é, na verdade, uma herança colonial...
Tem certos costumes que sim, fazem parte do nosso modo de vida. Mas esse entendimento de que as mulheres não podem participar de determinadas funções ou espaços foi fortalecido pela herança colonial.

Especificamente no povo Guajajara, existe essa herança do machismo colonial? Qual é o papel das mulheres no seu povo?
Sempre existiu, mas as mulheres Guajajara nunca ficaram de fora das discussões. Elas estão sempre presentes nas reuniões, só que em um outro lugar. Não estão na frente. Estão sempre ao lado, mas atentas a tudo. A qualquer momento que surge uma dificuldade, uma polêmica, é a mulher que entra para resolver. A gente sempre teve um papel importante nos momentos de decisão. E as mulheres que acabam se engajando, entram para liderar, não para assistir. Então temos muitas mulheres indígenas como lideranças e protagonistas na luta.

Então você não foi a primeira liderança feminina da sua comunidade?
Dentro da comunidade, não. Fui a primeira a conseguir ter maior expressão e ultrapassar essa barreira ali da Terra.

O que te impulsionou a transpor essa fronteira do território?
Uma soma de fatores. Eu tive a oportunidade de estudar fora, sair, voltar e fazer um bom trabalho que me deu credibilidade. Aos poucos, ganhei a confiança no estado todo. Depois, fui para a Amazônia e fiquei quatro anos me dedicando exclusivamente ao movimento indígena. Eu sempre tive muito prazer em fazer esse trabalho, é algo que me realiza. Então acho que foi oportunidade somada a desejo e dedicação.

Em 2001, quando fiz a minha primeira participação em um encontro nacional indígena, vi que muitos povos, em especial do Nordeste, estavam sendo mortos por lutar pela retomada do seu território tradicional. Fui entendendo que muitos não tinham mais a terra e, a partir disso, eu não fui mais a mesma. Percebi que tinha que lutar, que a minha missão seria me dedicar a luta coletiva dos povos indígenas.

E como chegou até a coordenação da Apib?
Eu fiz todo um percurso dentro do movimento indígena, cumpri todas as etapas. Fui coordenadora da Coapima (Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão) por dois mandatos e fui uma das responsáveis por fortalecer o movimento indígena no estado. Depois fui convidada a compor a coordenação executiva da Coiab, em Manaus. Me falaram que eu poderia entrar sem passar por eleição, mas para preencher uma cota para mulher. Mas eu não queria entrar dessa forma, sem eleição. Então concorri e fui eleita vice-coordenadora. Concorri com dois homens, lideranças conhecidas, e o voto deles dois não deu nem a metade dos meus.

Fiquei na Coiab por quatro anos, me dedicando exclusivamente ao movimento, e falo que esse período foi a minha universidade do movimento indígena. Pude me aprofundar na Amazônia, me articular nas discussões internacionais e foi lá que fizemos um grande enfrentamento à Belo Monte. Terminando o mandato, já fui eleita para a coordenação da Apib, em 2013. Estou terminando meu segundo mandato no ano que vem e passo o bastão. Mas eu não preciso estar ocupando um cargo para continuar lutando.

Você tem formação em Letras e Enfermagem. Esse conteúdo acadêmico te influenciou de alguma forma a mobilização indígena?
É claro que a educação formal sempre ajuda, mas a luta indígena, a gente aprende mesmo é no movimento, no dia a dia, na prática e no enfrentamento. É isso que realmente forma a liderança. A academia te forma para o trabalho, mas o movimento te forma para a luta e a vida.

Você atuou nessas profissões em que se formou?
Fui por muitos anos professora concursada em Imperatriz do Maranhão e também atuei como técnica de enfermagem. Trabalhei por mais de dez anos na Apae, desempenhando as duas funções. Num horário como professora, no outro como técnica de enfermagem. No terceiro turno, eu me dedicava ao movimento indígena. Já estava na coordenação da Coapima e tinha a liberdade de participar do movimento quando precisava. A diretora sempre me liberava e dizia: "Sonia, você pode ir lutar pelo seu povo, porque eu sinto que você é muito maior do que essas quatro paredes." Ela foi uma pessoa que ajudou muito nesse sentido. Eu precisava do trabalho, porque o movimento indígena não remunerava. Saí da Apae quando fui para Manaus assumir a coordenação da Coiab, em 2009. Aí perdi meus empregos no Maranhão. Acabei seguindo no movimento, porque percebi que era o que me fazia bem e o que me realizava.

Em 2018, você foi a primeira representante indígena a compor uma chapa presidencial, ao lado de Guilherme Boulos. Tem vontade de se candidatar a outro cargo na política institucional?
Quando a gente faz isso uma vez, pega gosto. Eu ainda não tenho certeza qual seria o lugar mais adequado para eu ocupar e ter uma incidência maior. Talvez, em 2022, eu possa concorrer a algum cargo. Mas primeiro é preciso garantir que haja eleições.

Falando em eleições, você considera que a sua candidatura abriu caminho para mais mulheres indígenas participaram dos processos eleitorais no Brasil?
Eu não tenho dúvidas de que o resultado político da minha candidatura, uma mulher indígena em uma chapa presidencial, motivou e abriu muitos caminhos para outras mulheres se candidatarem. Muitas me procuram e falam sobre isso. Elas veem a minha candidatura como inspiração para ocupar esses espaços. O resultado eleitoral ali não foi suficiente, mas o resultado político a gente colhe até hoje em termos de articulação, de relações, de amplificar a voz dos povos indígenas, de trazer a pauta para o centro do debate político. Isso teve um significado histórico e político. Estar nessa disputa foi bem positivo.

Como fica a presença de representantes indígenas na próxima eleição municipal, considerando o contexto da pandemia?
Vamos ter muitas candidaturas indígenas, estamos articulando isso. Vamos ter muitas candidatas a prefeitas, vice-prefeitas e vereadoras. Lançamos um manifesto defendendo as candidaturas indígenas e vamos lançar uma plataforma com a Mídia Índia para potencializar essas candidaturas.

O que as mulheres indígenas podem ensinar para o mundo, especialmente em um momento como esse?
Nós, mulheres indígenas, temos dito que é preciso que a humanidade trate e reconheça a Terra como uma mãe. Tratando a Terra como mãe, todo mundo vai cuidar e proteger. A gente precisa urgentemente romper com esse modelo econômico altamente predatório e centralizador. Entendendo a Terra como mãe, todo mundo vai se reconectar e respeitar. Não podemos voltar ao lugar onde paramos antes da pandemia. Precisamos viver um novo momento, que exige essa reconexão com a Mãe Terra para continuar garantindo a vida no planeta.



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PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins

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