Documentário mostra a saga das mulheres de São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do país, na Amazônia

O Globo, Revista Ela, p. 24-31 - 14/03/2021
Documentário mostra a saga das mulheres de São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do país, na Amazônia
'A Cabeça do Cachorro - Terra de Índio', de Vicente Ferraz, rodado em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro

Mauro Ventura*

Maristela Araújo Cordeiro aponta o prédio da antiga Escola Sagrado Coração de Jesus, na comunidade de Taracuá, e lembra seu duro cotidiano, entre 1973 e 1978: "A gente só podia falar português", diz ela, 57 anos, da etnia arapasso. "Quem não sabia ler e não sabia a tabuada levava puxão de orelha e apanhava com régua e apagador. Eu era muito danadinha, então me botavam de castigo, ficava sem merendar, perdia os passeios de domingo. Naquela época da ditadura, os missionários salesianos eram bravos." No internato, os indígenas iam aos poucos esquecendo sua cultura, sua língua, sua maneira de comer, suas brincadeiras, seus rituais. Mas Maristela resistiu. Hoje é professora da Escola Municipal Indígena Santa Maria, onde dá aulas em tukano e em português.
Ela é uma das protagonistas do filme "A Cabeça do Cachorro - Terra de Índio", de Vicente Ferraz, rodado em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, na Amazônia. O nome se deve ao formato da região, que lembra a cabeça do animal. Em fase de montagem, o documentário será lançado ano que vem, primeiro no cinema e, depois, como série de TV. A ideia é dar voz aos índios - tanto que é todo falado em cinco línguas indígenas: tukano, baniwa, yanomami, hupda e nheengatu. Com pouco mais de 46 mil habitantes, São Gabriel é o município mais indígena do país. Eles representam mais de 90% da população, distribuídos em 750 comunidades, 23 etnias e 18 línguas. O local é estratégico para as Forças Armadas, porque faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela.
Por trás dessa saga amazônica está a produtora Juliana de Carvalho, da Bang Filmes. Em suas quatro idas à região ela enfrentou obstáculos como a dificuldade de transporte de água e de gasolina, a escassez de energia que atrapalha o armazenamento de alimentos, o risco de doenças como malária e dengue e a natureza agressiva. O rio é perigoso tanto na cheia, quando as águas sobem e inundam a mata, quanto na seca, quando surgem as pedras e os bancos de areia. "E é uma região com muitos atores influentes. Tem o Exército, a Funai, o ISA (Instituto Socioambiental), ONGs, a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Você tem que dialogar com todo mundo. E para entrar na reserva é preciso autorização da Funai e dos índios. Em Yauaretê, por exemplo, reunimos 32 caciques e lideranças, inclusive de aldeias da Colômbia, para expor a ideia e ver se nos permitiam filmar."

Mas Juliana tomou precauções. Antes das filmagens, a equipe participou de uma pajelança com um xamã yanomami. "Ele nos benzeu. Foi um ato simbólico muito importante para nós e para eles, significou que estávamos abertos a entrar na cultura deles. Eu me senti autorizada a fazer este trabalho."
Na primeira viagem, em outubro de 2017, ela realizou 30 entrevistas de pesquisa. Na segunda ida, em junho e julho de 2019, ela, Vicente e a diretora de produção, Valéria Burke, passaram um mês e meio na região. Na terceira expedição, em outubro do mesmo ano, a equipe filmou 80% das histórias, com o rio no período das cheias. E, por fim, a quarta e última etapa, em fevereiro de 2020, acompanhada pela equipe da ELA, percorreu durante quase duas semanas o local na época da baixa. A travessia em Terra Indígena, de São Gabriel até a fronteira com a Colômbia, passou pelas comunidades Itacoatiara Mirim, Yamado, Ilha das Flores, Taracuá, Ipanoré, Urubuquara, Santa Maria e Iauaretê. Logo após nossa volta, a reserva seria fechada por conta da pandemia de Covid-19. "A próxima viagem vai ser para mostrar o filme para os indígenas", diz Juliana, que fez questão de oferecer contrapartidas em troca da liberação dos direitos de imagem. "Além de dar visibilidade a eles era importante contribuir de forma prática. Isso ajudou muito no ganho de confiança."
Cada aldeia decidiu o que ia querer. "Eles têm uma sede de conhecimento grande e estão muito interessados em tecnologia. Em Santa Cruz do Cabari, construímos uma escola. Trouxe todo o material de São Gabriel e contratei os próprios índios para a obra. Ter uma escola significa aprender português. E tem a merenda, que reforça a alimentação da criança". Em Taracuá, eles pediram equipamentos para aparelhar a escola local: computador, datashow e impressora. Em Iauaretê, quiseram celulares para as lideranças. Em Yamado, telhas para reformar o centro social. Em Maturacá, equipamentos para melhor acolher os turistas: freezer, bebedouro elétrico, computador, impressora, celulares, alto-falante e caixa de som com microfone. Em Santa Maria, receberam uma verba que foi distribuída para os moradores.

Um dos objetivos da última viagem era levar Maristela até o buraco de Ipanoré, lugar sagrado que só fica visível nesta época do ano. Para muitas etnias, ali se localiza a origem do mundo. "É uma emoção muito grande estar aqui. Recordo tudo que meus antepassados passaram. Estou pedindo aos espíritos que me acompanhem e protejam minha travessia", diz Maristela, que viajou com duas filhas e não visitava o local havia 30 anos.
Uma delas, que sofre de depressão, havia tentado suicídio três vezes. A mãe recorreu aos costumes indígenas e à medicina ocidental. Levou a jovem de 22 anos a benzedores em Santa Maria e a médicos em São Gabriel. No fim do ano passado, ela melhorou. "Em caso de doença, sempre recorro primeiro ao benzimento e aos remédios caseiros. Temos que valorizar nossa cultura. Se não funcionar, aí sim a gente vai atrás dos médicos, sem deixar ficar tarde demais", diz. Ela teve Covid em setembro. "Tive dor de garganta, dor de cabeça e mal estar. Fiz a defumação com breu (uma resina vegetal) benzido e chá de limão com folhas de boldo. E já tomei as duas doses da vacina, em fevereiro."
Maristela sintetiza o equilíbrio entre a cultura tradicional e a participação cada vez maior na sociedade. "Tenho muito orgulho de ser indígena e de me adequar aos novos tempos", diz ela, que é católica e segue os rituais de seu povo.

"A Cabeça do Cachorro" também tem como uma das protagonistas Jacinta Brasil Socot. O filme mostra a ida dela à sua aldeia natal, Santa Cruz do Cabari, após 12 anos distante, para apresentar o filho de 4 anos à bisavó dele. Jacinta é hupda, enquanto o marido, Graciliano, é baniwa. "É a história de um tabu, de duas etnias antagônicas, que não podiam se casar. Jacinta rompeu tradições. Saiu aos 14 anos de uma aldeia distante, estudou na cidade, sabe ler e escrever, e quer dar uma vida melhor ao filho Luan e à filha Nara, de dois meses", diz Vicente. "A cultura indígena é machista, mas as mulheres têm avançado muito em termos de força de trabalho, de organização, de participação nas discussões."
Margaria Sodré Maia, de 38 anos, da etnia tukano, concorda. "A voz das mulheres indígenas está ecoando pelo mundo. Isso não quer dizer que vamos disputar o poder com os homens e sim que queremos andar lado a lado com eles para defender nossos direitos", diz ela, presidente da Amidi, a Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iarauetê.
A Amidi, que representa mulheres de 13 diferentes povos da região, tem dois objetivos básicos: estimular ações de combate à violência doméstica e apoiar as artesãs na fabricação e comercialização das cerâmicas e das peças artesanais feitas a partir da fibra extraída das folhas da palmeira tucum. Ano passado, teve aprovado junto ao Fundo Casa um projeto de conscientização das mulheres sobre a invasão das terras por garimpeiros. "Temos muito o que falar sobre nosso território."

O projeto prevê cinco assembleias, mas, por conta da pandemia, só foi realizada uma até agora, em dezembro. O Departamento de Mulheres da Foirn criou a campanha "Rio Negro, nós cuidamos!". A rede Wayuri de comunicadores indígenas orientou os moradores via podcast, carro de som, rádio, cartilhas. Foram distribuídos kits de proteção individual e de higiene, máscaras, oxímetros e cestas básicas. Outra iniciativa foi estimular a união entre medicina ocidental e ensinamentos ancestrais. Os benzedores e pajés foram autorizados a atuar nas Unidades de Atendimento Primário Indígena (Uapis), enfermarias de campanha idealizadas pelos Expedicionários da Saúde em parceria com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) para atender casos leves e moderados, fornecendo oxigênio e evitando remoções.
Logo que apareceram os primeiros casos em São Gabriel, em abril, a prefeitura criou um comitê de combate à Covid que junta instituições como Funai, Foirn, ISA, Dsei, Exército e Igreja Católica. Entre os parceiros estão Médicos Sem Fronteiras e Greenpeace. De lá até segunda-feira passada, o município havia registrado 7.148 casos e 94 mortes.
Em outubro, aconteceu uma assembleia com o tema "O protagonismo das mulheres pelo bem viver indígena no Rio Negro", onde foram eleitas as duas novas representantes do Departamento de Mulheres - Dada Baniwa e Larissa Duarte Tukano. Ao fim, foi divulgada uma carta-manifesto em que pedem uma delegada mulher em São Gabriel, a criação de uma Defensoria Pública coordenada por mulher e uma Secretaria Especializada da Mulher.

Uma questão-chave na busca por mais autonomia é melhorar a infraestrutura para a geração de renda. Elas precisam de embarcações, combustível, alojamento na cidade. Afinal, o trabalho das artesãs é cada vez mais valorizado. Boa parte da produção é vendida na loja Wariró, da Foirn, em São Gabriel. "A cerâmica é uma forma de permanecer na comunidade sem precisar se mudar para procurar renda. Antes, não valia a pena fazer peças bonitas que eram trocadas por lençóis velhos e roupas usadas que às vezes nem cabiam", diz Suzana Menezes, da etnia piratapuia.
Ela, que vai de Taracuá a São Gabriel vender suas panelas, potes e travessas, observa o prestígio crescente. "Antigamente eu botava a bacia na cabeça, andava no sol quente e disputava cliente aos gritos com os marreteiros (camelôs). Agora, até a primeira-dama de São Gabriel já comprou minhas panelas."
Uma de suas filhas, Deise Menezes Alencar, de 18 anos, fará vestibular no fim do ano. Quer cursar Direito na Universidade de Brasília. "É muito importante para o povo indígena ter advogados que expliquem as leis de forma mais simples para que possamos defender nossos direitos, que estão ameaçados. Isso me motiva.

É como sintetiza Carla Dias, antropóloga do Programa Rio Negro do ISA: "Em um mesmo dia, uma mulher indígena pode ir para a roça carregando seu aturá (cesto de fibra), amamentar seu filho, visitar a mãe que está preparando chás com ervas medicinais para prevenção e tratamento da Covid e realizar uma reunião no Zoom para combinar sua participação em eventos".
São os múltiplos papéis de uma mulher que está conectada e incorpora hábitos modernos ao mesmo tempo em que mantém sua identidade e defende seu território.
*A equipe viajou a convite da produção do filme

O Globo, Revista Ela, p. 24-31.

https://oglobo.globo.com/ela/documentario-mostra-saga-das-mulheres-de-sao-gabriel-da-cachoeira-municipio-mais-indigena-do-pais-na-amazonia-1-24922156
Produção Cultural:Cinema, TV, Vídeo

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