Marco Temporal: entenda o que está em jogo nas terras indígenas

Galileu - https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia - 01/09/2021
Marco Temporal: entenda o que está em jogo nas terras indígenas
Tese defendida por ruralistas prevê revisão e limitação nos direitos de demarcação de territórios; entidades e líderes indígenas veem ação como apagamento histórico

Beatriz Gatti*
01 Set 2021

Após uma série de adiamentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a discutir nesta quarta-feira (1o) o Marco Temporal, tese que defende que os povos indígenas possam apenas reivindicar as terras que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

O julgamento tem como base uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina na Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang. Por se tratar de um caso de "repercussão geral", a expectativa pela decisão do STF mobilizou milhares de indígenas de diversos povos a acamparem próximo ao Congresso Nacional, em Brasília, desde o último dia 22 de agosto.

O que for votado pelos ministros deve passar a ser seguido pelos demais tribunais do país e aplicado nos processos de demarcação, daí a relevância nacional do processo - ao qual os indígenas se opõem fortemente.

A utilização da promulgação da Constituição de 88 como marco temporal foi baseada em outro julgamento, ocorrido em 2009. Na ocasião, a disputa pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, foi levada ao STF após constantes conflitos entre indígenas e arrozeiros, que invadiram a TI já demarcada desde 2005. A votação final endossou os direitos dos povos originários, mas um dos argumentos levantados foi justamente a ocupação da terra pelos indígenas desde quando a Constituição havia sido instaurada em 1988.

O julgamento do Marco Temporal opõe mais uma vez povos originários e ruralistas, que têm o apoio do presidente Jair Bolsonaro. Enquanto indígenas defendem que uma decisão favorável legitimaria invasões e violência nas terras em processo de demarcação ou já demarcadas, a Bancada Ruralista alega "segurança jurídica", segundo reportagem da Folha de S. Paulo. Deputados ligados ao agronegócio sustentam que a tese é importante para limitar com mais clareza o que são terras indígenas e, assim, evitar desapropriações.

Atualmente, porém, o cenário brasileiro não é exatamente favorável aos povos originários. De acordo com dados reunidos pelo Instituto Socioambiental, indígenas ocupam hoje pouco mais de 13% do território nacional, enquanto o latifúndio domina 20% das terras brasileiras, além dos outros 21% formados por pasto. São 421 terras indígenas devidamente homologadas, enquanto 303 ainda estão em processo de demarcação.

"Nós, povos indígenas, não reconhecemos o Marco Temporal. Queremos respeito aos nossos territórios ancestrais", escreveu Alice Pataxó, jornalista e ativista indígena, em suas redes sociais. Alice é uma dentre mais de 6 mil indígenas que viajaram até Brasília para compor o Acampamento Luta pela Vida.

O histórico de extermínio de povos originários desde a chegada dos europeus no Brasil, em 1500, e de contínuas agressões em disputas por terras também são argumentos utilizados por lideranças. Elas criticam que os direitos à terra sejam associados a uma data em que muitos indígenas não ocupavam seu território original pois já haviam sido expulsos ou fugido de invasores. "Nossa história não começa em 1988", estampam as bandeiras do acampamento.

O que diz a Constituição
O artigo 231 da Constituição Federal prevê que sejam "reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Segundo reportagem da Agência Pública, as partes do processo favoráveis ao marco utilizam a conjugação do verbo "ocupar" em tempo presente para argumentar que os direitos dos indígenas eram válidos somente em relação às terras ocupadas naquele momento.

O primeiro parágrafo do artigo, no entanto, descreve que o que se deve entender por "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" são aquelas "habitadas por eles em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições". No parágrafo 4o, os direitos sobre as terras ainda são descritos como imprescritíveis.

Foi nesse sentido que o relator do caso, ministro Edson Fachin, declarou voto contrário à tese do Marco Temporal quando o processo estava em plenário virtual. Em 11 de junho, ele defendeu que a "Terra Indigena, no imaginário coletivo aborígene, não é um simples objeto de direito, mas ganha dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia". Naquele dia, o julgamento foi adiado após o ministro Alexandre de Moraes solicitar que fosse tratado em plenário físico.

Como funciona o processo de julgamento
Iniciada pela leitura do resumo do processo pelo relator Edson Fachin, a sessão foi aberta na última quinta-feira (26), mas interrompida para ser retomada nesta quarta. Primeiro, falam as partes envolvidas: os advogados da comunidade Xokleng, alvo da reintegração de posse, e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, que solicitou a ação, além da Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR). Cada uma das partes tem até 15 minutos de fala.

Em seguida, serão ouvidas as mais de 30 amici curiae inscritas para a sessão. O termo em latim significa "amigos da Corte" e representa pessoas ou organizações relacionadas e interessadas no caso. Os inscritos podem falar por até cinco minutos.

Por fim, os ministros iniciam as declarações de voto, incluindo Fachin que terá de reapresentar seu posicionamento. Se for necessário, a sessão pode se estender pelos dias seguintes e, ainda, se um ministro pedir vista do julgamento, a discussão é novamente adiada.

Enquanto isso, no Congresso...
Em paralelo ao longo processo sobre o Marco Temporal no STF, o Congresso vem avançando na aprovação do Projeto de Lei (PL) 490, de 2007. A proposta se assemelha à tese que impõe uma data à legitimação dos direitos dos indígenas e defende alterações na lei de no 6.001, conhecida como Estatuto do Índio.

Hoje, cabe à União aprovar um processo de demarcação, que é iniciado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a partir de análise feita por uma equipe técnica multidisciplinar, incluindo antropólogos. O PL determina que sejam negados novos pedidos de demarcação em terras nas quais não seja possível comprovar que eram ocupadas por indígenas em 1988.

Além disso, a responsabilidade sobre a decisão deixaria de ser do Executivo e passaria ao Congresso, e as reservas indígenas já homologadas poderiam ser usadas com outros interesses e por outras pessoas que não os nativos.
Aprovado no fim de junho pela Comissão de Constituição, Justiça (CCJ) e Cidadania da Câmara dos Deputados, o PL segue agora para o plenário da Casa, onde os parlamentares poderão votar independentemente do que for decidido pelo Supremo.

A expectativa, no entanto, é que o resultado da decisão do STF seja fundamental para sustentar ou derrubar a tese também defendida no projeto de lei. Para a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), grupo de políticos ligados ao setor, é preciso impedir que a demarcação de terras indígenas afete o direito à propriedade.

"Defendemos a indenização justa aos proprietários rurais que tenham suas terras demarcadas, além da segurança jurídica como fonte de credibilidade na atração de investimentos e do desenvolvimento brasileiro. Um direito não pode se sobrepor ao outro", diz, em comunicado, a FPA, que também ressaltou não ser contrária ao direito indígena.

*Com supervisão de Luiza Monteiro

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Índios:Terras/Demarcação

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