Mortes: 'Falar como quem vai à guerra, mas com palavras de anjo', ensinava o líder Marubo Alfredão

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano - 16/11/2021
Mortes: 'Falar como quem vai à guerra, mas com palavras de anjo', ensinava o líder Marubo Alfredão
Ivinimpapa, chamado 'cacique geral do povo Marubo', morreu na aldeia de Maronal, na Terra Indígena Vale do Javari

Leão Serva
São Paulo
16.nov.2021

Quando Ivinimpapa era jovem, no início dos anos 1950, seu pai, João Tuxaua, líder histórico dos indígenas da etnia Marubo, recebeu a visita de um representante do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Eram raras as aparições de funcionários do Estado naquelas estremaduras da floresta Amazônica, no rio Curuçá, no Vale do Javari, quase fronteira com o Peru.
João Tuxaua, cujo nome indígena era Niwa-Wani, afirmou sua liderança sobre os Marubo com um dom para a diplomacia que impressionava indígenas e não indígenas. Logo firmou laços de amizade com o visitante, chamado Alfredo, que queria conhecer diferentes povos da área, muitos deles em conflito com os Marubo. O líder aproveitou as perambulações do emissário do governo para conhecer melhor outros povos do Vale do Javari.
Para marcar a amizade com o funcionário do SPI, Tuxaua agregou o "brasileiro" Alfredo ao nome do filho Ivinimpapa. E assim ele seria chamado por quase toda a vida. Mais tarde, quando já tinha se tornado o "cacique geral do povo Marubo", passou a ser "Alfredão".
Sua influência foi sempre baseada em dons herdados do pai, como o estilo de negociador. Costumava ensinar os mais jovens a "falar como quem vai à guerra, mas com palavras de anjo"; ou a não pôr todas as cartas na mesa em conversas com os "brancos": "Palavras vazias devem ser ditas, algumas têm de parecer não fazer nenhum sentido, de propósito: não temos que dizer tudo a quem sempre mostrou querer nossa extinção".
O pai e Alfredão foram responsáveis por consolidar a própria etnia. Diferentes clãs de língua próxima viviam dispersos em grupos fragilizados. Tuxaua passou a atraí-los, para formarem comunidades maiores, como uma forma de mútua defesa. Ao mesmo tempo, incentivou os filhos a conhecer as cidades dos brancos, para melhor lidar com eles. Quando jovem, Alfredo trabalhou em Cruzeiro do Sul (AC) e aprendeu a falar português fluente.
Já maduro, passou a defender a criação de novas comunidades, como forma de ocupar e melhor controlar o território. Em 1984, fundou uma aldeia às margens do igarapé Maronal, afluente do rio Curuçá, onde morava o pai. Maronal se tornou a maior localidade Marubo, e foi ali que, em 2018, "Alfredão" recebeu a visita da equipe do fotógrafo Sebastião Salgado, que realizava fotos para a exposição "Amazônia" (com abertura em São Paulo prevista para fevereiro).
Sua principal conquista nas últimas décadas foi a demarcação da Terra Indígena Vale do Javari, reconhecida em 2001.
Nos últimos anos, preocupava-se com a redução dos controles territoriais sobre a terra indígena e com o sucateamento da Funai.
Em 2018, em depoimento que me deu para a Folha, reclamou da falta de soro contra as picadas de cobras. Reclamou também da qualidade do ensino nas escolas indígenas, que forçava jovens a se mudarem para as grandes cidades da região (Atalaia do Norte, Cruzeiro do Sul).
Ninguém sabia ao certo a data de seu nascimento -dizem que estava com cerca de 89 anos. Mas com o avanço da idade, Ivinimpapa vinha se preocupando com a formação de uma nova geração de líderes.
"'Alfredão dizia que, agora, os Marubo deveriam ser liderados por uma geração de 'Manã Nawas', que quer dizer 'gente do chão', com os pés no chão: jovens que pensam como Marubo, agem como Marubo, mas são adaptados ao novo mundo. E isso já está acontecendo em todas as comunidades", conta Beto Marubo, da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).
Um exemplo singelo desse domínio da cultura não indígena é dado por seu filho Txanumpa: quando visitou Maronal, Sebastião Salgado doou à comunidade uma coleção de fotos que tinha feito no local em 1998.
Na recepção aos visitantes, "Alfredinho", como também é chamado, pediu que o fotógrafo enviasse pela internet as imagens digitalizadas, pois nos discos rígidos de seu computador elas ficariam mais seguras.
É também no computador que "Alfredinho" escreve contos baseados em histórias dos Marubo, muitas delas que ouviu do pai, preservando para sempre a memória de "Alfredão". O "cacique de todos os Marubo" morreu em casa, na aldeia de Maronal, na manhã do sábado (30/10).

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