Alex Atala lança compilado sobre mandioca e sua natureza tropical

FSP, Comida, p. C8 - 01/02/2022
Alex Atala lança compilado sobre mandioca e sua natureza tropical
Chef reúne autores e disseca a raiz do Brasil sob aspectos como nomenclatura e biodiversidade

Luiza Fecarotta
31.jan.2022

A escolha de Alex Atala de recolher abordagens múltiplas, por meio de vozes diversas, e imprimir ao seu recém-lançado "Manihot utilissima pohl: Mandioca" um olhar complexo à raiz do Brasil remete à própria polivalência da planta que dá nome à obra.

São mais de 400 páginas, nas quais o chef reúne pesquisadores, cronistas, indigenistas e fotógrafos com o mesmo objetivo: discorrer sobre a mandioca e sua natureza tropical. Resulta daí um relato que desperta um sentimento nativista e coloca esse tubérculo em seu devido patamar de importância no Brasil.

A obra devolve à mandioca, espécie amazônica de maior importância em âmbito mundial, sua dignidade, e relembra que a nossa alimentação repousou por séculos em seu cultivo e em seu consumo, que outrora também contribuiu para o processo de aculturação dos portugueses na colônia e para o próprio movimento de incorporação dos índios ao processo civilizatório no período pós-cabralino.

Seus capítulos vão desvendando com destreza as camadas dessa planta, que nos é integralmente útil na alimentação -folhas, raízes e caules-, e que, no passado, permitiu a sobrevivência e o espraiamento dos indígenas, sendo hoje incorporada de modo permanente às nossas tradições alimentares.

Embora não seja a única obra dedicada à mandioca -houve, por exemplo, o ensaio do baiano Pinto de Aguiar (1910-1991), no qual ele abordou aspectos históricos, econômicos, científicos e bromatológicos da planta, em 1982- "Mandioca" é um compilado inédito e fresco, que também recorre à historiografia e, um passo à frente, a estudos arqueológicos que auxiliam na escavação de sua origem e domesticação. São recortes que lhe dão estofo, atualidade e singularidade.

Vestígios sugerem que houve formas milenares de cultivo, que venceram o tempo e se perpetuaram, silenciosamente, entre as populações tradicionais do Brasil -indígenas, quilombolas, ribeirinhas, caiçaras, caipiras, sertanejas.

No livro, textos são amparados por mapas e diagramas. Ficam ilustradas a domesticação da planta na Amazônia e as redes de circulação de variedades da mandioca na região do Alto Rio Negro -por meio de instituições, homens e mulheres. Estas, inclusive, têm sua relevância explícita.

São elas as principais responsáveis pela grande diversidade da mandioca, resultado de fluxos intensos de plantas, cujas diferenças são expressas em características como produtividade, cor, gosto e resistência.

Sua participação entre os brasileiros tem tanta expressão que é ilustrada, ainda, num ensaio fotográfico de Pedro Martinelli, o maior etnógrafo visual da Amazônia, feito com a comunidade Baniwa, no extremo noroeste do Brasil, na fronteira com a Colômbia. As imagens surgem alicerçadas por texto de Beto Ricardo, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA), que percorre o cotidiano da indígena Claudia, que se ocupava de colher mandioca-brava e transformá-la em comida -beijus, mingaus e farinhas.

A mulher volta a ser eixo narrativo pela antropóloga Flora Dias Cabalzar, cuja pesquisa sobre povoados indígenas na Amazônia também revela mulheres responsáveis pelo preparo das refeições, pelo trato da roça e pela manipulação da mandioca -homens dedicam-se à caça e à pesca.

Elas aparecem ainda como provedoras de saliva no preparo do caxiri, bebida de mandioca alva e levemente fermentada, com aspecto semelhante ao da coalhada de leite animal. As bebidas derivadas da mandioca rendem outro curioso capítulo.

O extrato assinado pela ecóloga, artesã e herborista Laura Mantovani dedica-se a traçar o emaranhado da vasta nomenclatura que envolve a mandioca -macaxeira, aipim? Lendas e mitos a respeito de sua origem são tratados em outro trecho.

Mantovani recebe suporte de um inventário de nomes extraídos da terra indígena do Paraná, de povos quilombolas do Vale do Ribeira (SP), de agricultores do agreste da Paraíba e de um dossiê do sistema agrícola do Rio Negro, no Amazonas.

Embora distintos de região para região, identifica-se um consenso quanto aos nomes populares: a mandioca-mansa e a mandioca-brava são termos habituais em todo país. Ambas as variedades pertencem à mesma espécie botânica, embora a última tenha maior concentração de ácido cianídrico, que a torna venenosa.

O livro desperta o leitor para a ameaça que essa biodiversidade, alimentada por gerações de agricultores, sofre ao surgir ações como a da Embrapa, que, a partir de estudos das variedades de mandiocas e de macaxeira, promovem seleções genéticas que obedecem à lógica da produtividade, da resistência e do mercado. Essa prática fere sistemas ancestrais e empobrece a sociedade e o capital biológico de um país.

Sobre fazeres tradicionais, Neide Rigo, grande conhecedora de mandioca do Brasil, dá rica contribuição ao relatar seus subprodutos, observados em viagens pelo Brasil.

Ela também divide um saber popular ao passear pelos tipos de farinha, diferenciadas por mínimas nuances, que, segundo ela, devem ser respeitadas e valorizadas. A farinha "quente", por exemplo, é crocante e fresca; a "fria", tem grãos murchos, que absorvem umidade e não se rompem.

A voz do próprio Atala aparece pouco -e, às vezes, custa a ser identificada. Em uma das ocasiões, ele passeia pela farofa, em preparos que afirmam a nossa identidade brasileira. A farofa, que pressupõe a combinação de uma farinha e uma gordura, na opinião do chef, deve ser exportada para o mundo, pois é uma marca da nossa cultura, de fácil preparo, e que pode ser reproduzida em qualquer lugar.

A experiência pessoal de Atala e seu repertório enriquecem o texto. Sua voz surge com mais força e limpidez no capítulo em que traz receitas do D.O.M. e de convidados, e no qual debate a inovação com base na tradição -um princípio que sempre o acompanha. A partir dele, Atala compartilha com o leitor alguns dos extensos e minuciosos processos pelos quais a criação de uma receita de seu restaurante atravessa.

Um caso simbólico, do cardápio intitulado Pré-Descobrimento, é o da bala de cachaça, envolta em polvilho doce finíssimo. Resulta translúcida, a exibir uma formiga em seu interior, que revela o perfume do capim-santo na boca, em fotografia precisa de Sérgio Coimbra, que ajuda a elevar a gastronomia à arte.

Depois de apresentadas as receitas do D.O.M. mais emblemáticas como registro histórico, um apêndice reúne chefs e amigos de Atala com suas receitas com mandioca.

O trabalho de Mara Salles surge impresso no barreado (prato clássico de Morretes, no Paraná), com farinha polvilhada de Santa Catarina, assim como receitas de Helena Rizzo (biscoito de polvilho), de Claude Troisgros (mil-folhas de mandioca) e de Rodrigo Oliveira (o dadinho de tapioca).

Atala não deixa de se referir a um de seus mestres, Paulo Martins (e sua família), que militava pela gastronomia brasileira e pelos ingredientes paraenses, e à herança de um tucupi que, hoje, é distribuído no país.

O livro faz uma ode à mandioca e lhe devolve a honradez já mencionada por intelectuais como Câmara Cascudo (1898-1986), essenciais na construção do reconto da história da alimentação no Brasil, agora continuada.

FSP, 01/02/2022, Comida, p. C8

https://www1.folha.uol.com.br/comida/2022/01/alex-atala-lanca-compilado-sobre-mandioca-e-sua-natureza-tropical.shtml
Produção Cultural:Literatura

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