A tensa realidade de 4 territórios e povos amazônicos fotografados por Sebastião Salgado

BBC Brasil - https://www.bbc.com/portuguese/brasil- - 11/03/2022
A tensa realidade de 4 territórios e povos amazônicos fotografados por Sebastião Salgado

Camilla Costa - @_camillacosta
Da BBC News Brasil em Londres
11 março 2022

Por trás das belas imagens em preto e branco de montanhas, rios e da floresta amazônica, dos retratos de 12 das 305 etnias indígenas que a habitam só no Brasil, estão histórias de garimpo ilegal, conflitos com madeireiros, garimpeiros e autoridades locais, mortes por falta de atendimento de saúde e perseguições.

A Amazônia fotografada por Sebastião Salgado em um projeto de sete anos transformado em livro (ed. Taschen) e exposição - que já passou por Londres, Roma e Paris, acaba de chegar a São Paulo (Sesc Pompeia) - é uma região cujos problemas, assim como as belezas naturais, ainda são desconhecidos de muitos brasileiros.

"Estamos lutando para levar essa exposição para todos os lados. Os brasileiros têm que saber quem é a Amazônia e quem são esses índios, seus nomes. O brasileiro tem que começar a olhar, ver, refletir e tomar posição. Aquilo tudo ali é nosso. Então temos que tomar conta da casa", disse à BBC News Brasil a arquiteta Lélia Wanick Salgado, curadora da exposição e parceira do fotógrafo.

Um igapó no arquipélago Anavilhanas, baixo Rio Negro, Amazonas, 2019

Não queríamos mostrar a Amazônia queimada, destruída. Estamos mostrando a Amazônia viva e as populações que a gente tem que proteger.

TI Vale do Javari
A região do Vale do Javari, no oeste do Amazonas, próximo à fronteira com o Peru, abriga sete povos em contato permanente ou de contato recente e ao menos 14 grupos isolados, oito registros confirmados e seis em fase de estudos ou informação - a maior população indígena não contatada do mundo.

Pinu Vakwë Korubo (esq.), com um pássaro cujubi pendurado no ombro, e Xuxu Korubo, com flechas no ombro, foram fotografados por Salgado em 2017

Os korubo tiveram os primeiros contatos com não indígenas nos anos 1990, quando pediram ajuda fora de suas comunidades para lidar com um surto de malária. Hoje, são cerca de 100 pessoas, vivendo em duas aldeias, com pouca interação com pessoas de fora.

Outros grupos menores, de tamanho ignorado, permanecem em isolamento e, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), sofrem os efeitos da invasão promovida por garimpeiros, especialmente nos rios Jutaí e Jandiatuba. Poucos falam português.

Sebastião Salgado foi o primeiro a registrar os korubo, em outubro de 2017. Na exposição estão também suas fotos dos índios marubo - uma das maiores populações da região, com cerca de 2.500 pessoas.

"Em 2017, Sebastião Salgado me procurou querendo que eu o ajudasse a acessar os índios korubo. Na época, eu não sabia quem era ele, e disse: 'Eu não concordo. Acho que esse trabalho registra essas imagens e depois elas vão ser expostas como se os índios estivessem lá em seus territórios, nus e puros. E não é isso, eles estão bastante vulneráveis diante de uma Funai que deveria protegê-los e os coloca em perigo. Não é legal'.", disse à BBC News Brasil Beto Marubo, representante da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), que foi o guia de Salgado em sua expedição.

"Ficamos um mês nessa discussão. Mas ele me disse: 'Beto, eu quero e eu posso ajudar você. Eu vou levar a a sua preocupação em todos os fóruns onde eu apresentar essas fotos. Uma coisa é eu falar do que eu vi em discussões em que eu participo pelo mundo. Outra coisa é eu explicar, mas eles poderem ver as fotos. Eles vão se sensibilizar com a questão'. Eu acabei indo com ele", conta.

Para Marubo, era importante que as imagens fossem apresentadas com depoimentos de representantes dos povos fotografados e explicações didáticas "para quem não entendia nada de índio".

"Antes, as exposições do Sebastião Salgado eram ele e as fotos. Agora tem o adicional de explicar e dar voz para os indígenas", afirma.

Em julho de 2021, o jornal Folha de S.Paulo divulgou áudios que mostravam o então coordenador da Funai no Vale do Javari, o tenente da reserva do Exército Henry Charlles Lima da Silva, encorajando líderes do povo marubo a "meter fogo" em índios isolados caso fossem "importunados".

Entidades indigenistas como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) criticaram a fala do tenente e afirmaram que as invasões de madeireiros e contrabandistas têm empurrado os povos isolados para mais perto das aldeias, o que aumenta a tensão no território.

A Funai afirmou a fala do então coordenador não representava "a posição oficial da instituição", e ele foi exonerado do cargo em novembro de 2021.

Para Marubo, o episódio ilustra a situação de vulnerabilidade em que se encontram os povos indígenas isolados hoje na região.

"Esses povos dependem de uma instituição do Estado para proteger o território deles, porque sem esse território eles não existem. E hoje temos um quadro preocupante porque o Estado está fomentando tudo o que deveria conter", diz.

"A Funai hoje é muito mais uma sucursal da irresponsabilidade ambiental do que um órgão indigenista que deveria proteger os direitos dos indígenas e por seus territórios como política de Estado."

Uma das principais ameaças a esses povos, segundo Beto Marubo, é o assédio de grupos missionários brasileiros e estrangeiros, que buscam contactá-los ilegalmente, e contrariando a política do Estado brasileiro.

"O Vale do Javari virou a meca do missionarismo fundamentalista. São fundamentalistas religiosos que acreditam que se a palavra de Deus não for levada a todos os seres humanos da Terra Deus não vai voltar. Eles agem como se os índios isolados do Vale do Javari fossem os culpados pelo não retorno de Deus. E é algo agressivo", diz.

Livro e exposição reúnem imagens feitas desde os anos 1990; Na foto, Ino Tamashavo mostra os colares típicos dos marubo e seu pássaro de estimação

O garimpo, que é comum na região desde a década de 1980, mas fora das terras indígenas, foi alvo de operações constantes da Polícia Federal, mas começa a cruzar os limites da TI. Há risco iminente, segundo Marubo, de um conflito entre garimpeiros na região do rio Jutaí e índios isolados.

Além disso, vêm aumentando também na região as invasões de contrabandistas de carne de caça e pesca e também de peixes ornamentais vindos do Peru e da Colômbia - o que afeta diretamente a subsistência dos grupos indígenas que vivem ali.

Questionada, a Polícia Federal não respondeu até o fechamento desta reportagem.

O representante da Unijava diz ainda que o aumento de invasores tem aumentado cada vez mais o risco de a covid-19 se disseminar entre os indígenas isolados.

A Funai afirmou que "realiza ações ininterruptas de vigilância e fiscalização territorial, por meio da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEYY) na região".

"A fundação reitera que realizou processo seletivo simplificado para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, com atuação em barreiras sanitárias (BS) e postos de controle de acesso (PCA) para prevenção da covid-19 nas áreas indígenas, especialmente nas terras indígenas da Amazônia Legal. Para reforçar a atuação da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, o órgão disponibilizou 115 vagas, distribuídas entre a sede da FPEYY em Tabatinga (AM) e as quatro Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs) da Funai na área indígena Vale do Javari", disse a Funai, por e-mail.

No entanto, um surto de covid-19 entre os índios korubo revelado pelo jornal O Globo na semana passada colocou em xeque a atuação do órgão. De acordo com o jornal, quase 80% dos korubo, que ainda não têm cobertura vacinal completa, receberam diagnóstico positivo nas duas últimas semanas.

Na última quinta-feira (03/03), o Ministério Público Federal notificou o STF sobre o surto, afirmando que a contaminação foi "provavelmente causada pelo aumento da circulação de pessoas não autorizadas dentro da Terra Indígena (caçadores e pescadores ilegais)".

No dia seguinte, o ministro Luís Roberto Barroso intimou a Funai a prestar informações sobre como os korubos foram infectados. Durante a pandemia, Barroso foi relator de ações determinando que o governo tomasse medidas de combate à covid e de proteção aos povos indígenas contra invasões.

TI Raposa Serra do Sol
Segundo associações indígenas, o rio Cotingo, visto na foto, é um dos mais visados pelos garimpeiros ilegais que atual na TI Raposa Serra do Sol

A Raposa Serra-do-Sol, uma das primeiras e maiores áreas indígenas reconhecidas no Brasil, se tornou um símbolo da luta pelo reconhecimento dos territórios dos povos originários.

A decisão do STF que determinou a demarcação do território de 17.464 km² ao norte de Roraima, em 2009, também foi histórica porque determinou condições para a demarcação de todos os territórios indígenas que ocorreram depois dela.

Entre elas, a proibição de que terras já demarcadas fossem ampliadas, a possibilidade de instalação de bases militares e o livre acesso da Polícia Federal e do Exército aos territórios sem necessidade de autorização da Funai e a proibição de que os indígenas realizassem a garimpagem nos territórios.

Atualmente, vivem no território cerca de 28 mil indígenas das etnias macuxi, taurepang, ingarikó, patamona e wapichana, em 225 comunidades.

No entanto, a Raposa Serra-do-Sol continua sendo alvo de garimpeiros, especialmente nos últimos três anos, segundo Ivo Aureliano Macuxi, conselheiro jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

"Estimamos que existam entre 3 mil e 3.500 garimpeiros atuando de forma ilegal no território. De 2018 pra cá, houve um aumento alarmante de pontos de garimpo ilegal incentivado pelo atual governo, que tinha prometido regulamentar a atividade. Isso tem causado uma corrida pelo ouro, digamos assim", disse à BBC News Brasil em entrevista por telefone.

A região - cuja porção montanhosa culmina com o monte Roraima, onde fica a tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela - é historicamente cobiçada por jazidas de ouro, diamante, tantalita e cassiterita.

"A invasão aumenta a cada dia e sabemos que o garimpo legal leva a outros problemas como a prostituição, alcoolismo, drogas, armas, ameaças a lideranças indígenas que são contra a atividade, aliciamento de indígenas pra trabalharem no garimpo", afirma o advogado.

Segundo Ivo Macuxi, o garimpo hoje toma conta dos rios Maú, Cotingo e Quinô e a região conhecida como Serra do Atola, próxima ao Monte Roraima. A região já atraiu garimpeiros nos anos 1980 e 1990, que foram retirados do local com a demarcação da terra indígena.

"Os povos indígenas têm denunciado esses problemas, mas a União não consegue garantir a proteção das terras indígenas, que é sua obrigação. Então em 2019 os povos indígenas do Estado resolveram criar seus grupos de proteção e vigilância territorial. Então existem bases de monitoramento criadas pelas próprias comunidades para impedir a entrada desses garimpeiros", conta.

A criação das bases de monitoramento, no entanto, divide as comunidades na Raposa Serra do Sol, com uma minoria apoiando o garimpo, admite Macuxi.

Garimpeiros têm voltado a se aproximar do monte Roraima, segundo Ivo Macuxi, após serem expulsos da região nas décadas de 80 e 90

Por causa disso, a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiurr), que é contrária às fiscalizações feitas pelos indígenas na Raposa Serra do Sol, buscou a Justiça estadual em 2020, pedindo que os postos fossem retirados das estradas que cruzam os territórios. O desmonte das bases chegou a causar conflitos com a Polícia Militar, e o juiz que emitiu a liminar admitiu não ter competência para julgar o caso, que deve ser encaminhado à Justiça Federal.

"O garimpo entra nas comunidades trazendo várias promessas: de que vai melhorar a vida da comunidade, a saúde e a educação, que os jovens vão ter uma renda. Mas nunca falam dos impactos. Então há um aliciamento muito forte dos indígenas com promessas falsas", diz Ivo Macuxi.

Em meio ao conflito, o advogado afirma que é impossível contar com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para a proteção do território e dos interesses dos povos.

"Houve uma quebra de confiança entre nós e eles. Hoje nosso diálogo não consegue fluir. Desconfiamos inclusive que eles também facilitem a entrada dos garimpeiros", afirma.

A Funai diz que "enquanto instituição pública, calcada na supremacia do interesse público, não coaduna com nenhum tipo de conduta ilícita".

"A Funai esclarece, ainda, que informações relacionadas a denúncias de ilícitos somente poderão ser prestadas pelos órgãos de segurança pública competentes", afirmou a Fundação.

A Polícia Federal não respondeu às perguntas da BBC News Brasil sobre o tema até o fechamento desta reportagem.

Em 2021, o governador de Roraima, Antônio Denarium (PP) chegou a sancionar uma lei que permitia a atividade garimpeira com uso de mercúrio no estado. A lei foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

No Congresso Nacional ainda tramita, no entanto, o projeto de lei 191, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, que permite a mineração, a agricultura em larga escala e obras de infraestrutura em terras indígenas sem a necessidade de consentimento dos povos.

No último mês de fevereiro, Bolsonaro editou um decreto que institui o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mapa), para estimular o garimpo na região da Amazônia Legal.

O que se sabe sobre tentativa de considerar pecuaristas e garimpeiros como povos tradicionais

TI Yanomami
Sebastião Salgado conseguiu fotografar terras indígenas até 2019, como no caso desta cerimônia yanomami na comunidade Piaú; viagens planejadas para 2020, como um retorno à Raposa Serra do Sol, foram impedidas pela pandemia

Com 96 mil km², a Terra Indígena Yanomami é considerada a maior reserva indígena do Brasil, se estendendo do norte de Roraima até rio Negro, no Estado do Amazonas.

Já a etnia, que tem cerca de 40 mil pessoas, das quais aproximadamente 28 mil vivem no Brasil e o restante na Venezuela, é considerada de pouco contato, e inclui ao menos um grupo isolado.

Nos anos 1980, por causa do contato mais frequente com missionários, enviados de agências federais brasileiras e principalmente garimpeiros, os Yanomami sofreram epidemias sucessivas de gripe, malária e infecções sexualmente transmissíveis.

Na década de 90, os garimpeiros foram expulsos da região, e a terra indígena foi oficialmente demarcada.

Recentemente, no entanto, as invasões voltaram a ocorrer em larga escala, segundo o Davi Kopenawa, um dos principais líderes yanomami.

A Hutukara Associação Yanomami, que reúne representantes de todos os povos indígenas que vivem na reserva, estima a presença de ao menos 20 mil garimpeiros ilegais dentro do território.

A Polícia Federal investiga a ligação de garimpeiros com a facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que comanda o crime organizado em boa parte do país.

"Em 2021 o número de invasores aumentou muito, vindo de várias cidades: São Paulo, Belém, Manaus, Brasília e outras cidades que eu não conheço. E ficou muito ruim pra nós. Primeiro que estraga, eles fazem buraco na beira do rio, colocaram muitas balsas no rio Uraricoera, no rio Apiaú, no rio Mucajaí, no rio Catrimani. E há contaminação nos rios. Depois, aumentou o número de doenças", disse Davi Kopenawa à BBC News Brasil.

"Não conseguimos mais sair como saíamos antigamente para caçar, pescar, fazer nossas roças. Estamos cercados de garimpeiros. Temos pista de pouso de um lado, balsas nos igarapés do outro. Em ficou muito ruim durante a pandemia. O coronavírus chegou na cidade de Boa Vista, e as autoridades de não proibiram que os garimpeiros entrassem contaminados até nas comunidades."

A comunidade yanomami refém de tiros e bombas de garimpeiros há mais de um mês

Acompanhando o crescimento das invasões, aumentam também os registros de malária, contaminação por mercúrio e ataques a aldeias. Em maio do ano passado, três garimpeiros morreram após atacar a comunidade Palimiú, nas margens do rio Uraricoera, em Roraima. Dias depois do ataque, duas crianças Yanomami que se refugiaram na mata foram encontradas mortas.

No mesmo mês, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que o governo tomasse "todas as medidas necessárias" para proteger a vida, saúde e segurança de populações indígenas da Terras Indígenas Yanomami e Munduruku, no Pará.

Garimpeiros vão à TI Yanomami principalmente em busca de ouro e cassiterita, usada na fabricação do estanho; na foto, a serra do Marauiá, no Amazonas

Em sua decisão, Barroso afirmou que entendeu que haviam sido demonstrados "indícios de ameaça à vida, à saúde e à segurança das comunidades localizadas na TI Yanomami e na TI Munduruku" e que isso se expressava na "vulnerabilidade de saúde de tais povos, agravada pela presença de invasores, pelo contágio por Covid-19 que eles geram e pelos atos de violência que praticam".

Para se ter uma ideia da escala da atividade garimpeira no território, em dezembro de 2021, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) anunciou que uma operação deflagrada no fim de agosto para combater o garimpo ilegal e expulsar não indígenas da TI Yanomami resultou na apreensão de 111 aeronaves, dez balsas, 11 veículos e quatro tratores usados para cometer crimes ambientais.

Também foram presas 38 pessoas e apreendidos cerca de 30 mil quilos de minério e 850 munições. No total, 87 pistas de pouso e três portos clandestinos foram fiscalizados.

No início de fevereiro de 2022, o Ministério decidiu prorrogar por mais 180 dias o uso da Força Nacional em apoio ao Ministério da Saúde no trabalho dentro do território.

Segundo a portaria do Ministério, o objetivo é "garantir aos indígenas o acesso à atenção básica de saúde, tendo em vista a necessidade de fortalecer as ações de enfrentamento à desnutrição infantil, à mortalidade infantil, à malária, ao abuso de álcool e atuar nas atividades e nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da integridade das pessoas e do patrimônio".

Para o líder indígena, no entanto, a atuação do poder público não tem sido o suficiente para a escala do problema.

"A nossa área é grande. Eles realmente apreenderam avião, porque tem muitos. Mas esses aviões não são só brasileiros não, também vêm da Venezuela. E muitos estão escondidos nas fazendas do município. Algumas pessoas foram presas, mas não ficaram presas, como antigamente se fazia. Hoje eles vão e voltam", afirma.

Combustível, pistas clandestinas, armas e rádios: como funciona logística do garimpo na terra yanomami

Questionado sobre o tema, o Ministério não respondeu às perguntas até o fechamento desta reportagem.

A Funai afirmou que "apoia diversas operações conjuntas de fiscalização e proteção territorial realizadas em parceria com órgãos ambientais, de segurança pública e Forças Armadas na Terra Indígena Yanomami".

"A fundação esclarece que não houve interrupção das atividades na área indígena e que a atuação do órgão na região tem utilizado monitoramento de satélites, produção de conhecimento de inteligência e ações de campo articuladas aos órgãos ambientais e de segurança pública."

O órgão também reiterou que contratou funcionários em um processo seletivo simplificado para atuar nas terras indígenas, especialmente na Amazônia Legal.

"Para reforçar a atuação da Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami Yekuana ( FPEYY), o órgão disponibilizou 113 vagas, distribuídas entre a sede da FPEYY em Boa Vista (RR) e as quatro Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs) da Funai na região. Tal aporte representa um considerável incremento à força de trabalho da fundação na Terra Indígena Yanomami", disse, por e-mail.

O pico da Neblina, chamado pelos yanomami de Yaripo, será aberto para visitantes em expedições guiadas pelos índios

Mas os yanomami também olham para o futuro. Após o desenvolvimento e a aprovação pela Funai e pelo ICMBio de um plano de visitação, os indígenas começaram a realizar primeiras expedições de ecoturismo ao Pico da Neblina, que eles chamam de Yaripo, atuando como guias.

"Muitos povos da cidade, muita gente grande está de olho no Yaripo, o Pico da Neblina. Nosso projeto é de fazer ecoturismo, levar os não indígenas junto com os indígenas lá, para não deixar não deixar garimpar. Estamos tentando trabalhar juntos para tentar proteger Yaripo", afirma Kopenawa.

As viagens, realizadas em parceria com empresas de turismo, devem servir também como fonte de renda sustentável para as comunidades locais.

TI Rio Gregório
A retomada cultural dos yawanawá passou por reaprender suas próprias tradições artesanais, que já não eram praticadas pelas novas gerações; Na foto, Miró (Viná) Yawanawá confecciona adornos de penas

Até os anos 1980, indígenas do povo Yawanawá viviam praticamente escravizados em seringais do Acre. Homens trabalhavam alcoolizados, jovens fugiam das aldeias, velhos e crianças morriam de malária, tuberculose e sarampo. Pressionados por missionários evangélicos, muitos abandonaram tradições e a língua materna.

Hoje os Yawanawá são conhecidos por parcerias que mantêm com grandes marcas, por sua presença em fóruns internacionais e por festivais xamânicos em que recebem centenas de visitantes brasileiros e estrangeiros - muitos deles interessados em consumir ayahuasca e usar rapé, considerados remédios sagrados para o grupo.

Ao longo dessa transformação, conseguiram a demarcação de seu território, reinventaram costumes e expulsaram seringueiros e missionários. A trajetória os tornou uma referência para povos indígenas vizinhos, que acabaram por seguir vários de seus passos.

"Fomos o primeiro povo indígena a fazer um contrato comercial com uma empresa norte-americana de cosméticos, em 1987. Até hoje ele ainda está vigente. Fomos quebrando vários tabus. Todos os que foram a nossa terra, de certa forma, devolveram pra nós a autoestima que nos tiraram, a confiança, o amor e a paz que nos tiraram. Hoje recebemos visitas de parentes desde o norte do Canadá aos Mapuche lá do Chile", disse à BBC News Brasil o líder indígena Biraci Brasil Yawanawá, que guiou Sebastião Salgado na visita ao território.

A TI Rio Gregório foi a primeira terra indígena demarcada no Acre. A etnia, que tinha apenas 283 indivíduos quando Biraci assumiu sua liderança em 1992, tem hoje cerca de 1.100 pessoas.

As fotos de Salgado mostram alguns dos rituais recuperados pela comunidade, como as pinturas corporais e o artesanato com penas, principalmente da águia, considerada um animal sagrado.

A etnia passou de 283 pessoas nos anos 1990 para cerca de 1.100 atualmente; na foto, Kanamashi Yawanawá tem as costas pintadas por Keiá Yawanawá

A animação dos rituais também tem ajudado a atrair turistas para as aldeias, atividade que se tornou a principal fonte de receitas da comunidade.

Desde o início dos anos 2000, os Yawanawá passaram a abrir seus festivais xamânicos para o público externo, no que foram seguidos por outros grupos indígenas acreanos. Os festivais e retiros espirituais, no entanto, foram interrompidos em 2020 e 2021, durante a pandemia de covid-19. Em 2022, os eventos também não devem ocorrer.

"Seguimos todos os protocolos da Organização Mundial de Saúde, preocupados até mesmo com a nossa situação. Mas isso era uma fonte de renda sustentável para nossa comunidade, e caiu o abastecimento da nossa aldeia. Mas temos alianças com centros espirituais em todo o Brasil e até na Europa. Mandamos comunicados a essas famílias próximas muitos nos ajudaram. Se não fosse isso, não sei como teríamos atravessado esse momento", diz Biraci Brasil.

"Nós vivemos tempos difíceis. Eu, como mentor principal da minha família, fiquei muito triste. Vi meus amigos em todo o Brasil caindo como pedras de dominó. 'Será que eu sou o próximo?', eu pensava. 80% da população yawanawá contraiu o vírus da covid-19. Alguns povos nem quiseram aceitar a vacina, mas não foi nosso caso. Acreditei na ciência e nós todos tomamos", afirma.


https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60684802
Produção Cultural:Fotos e Ilustrações

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