"Pessoas estão se sentindo autorizadas a invadir áreas indígenas"

MidiaNews - https://www.midianews.com.br/ - 26/06/2022
"Pessoas estão se sentindo autorizadas a invadir áreas indígenas"
Ex-coordenador da Funai diz que sucateamento do órgão sobrecarrega e põe servidores em risco

Enzo Tres

26/06/2022

O brutal assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Amazonas, chamou a atenção para os riscos que vivem aqueles que tentam defender reservas indígenas em regiões isoladas do Brasil.

Ex-coordenador do setor de índios isolados e de recente contato da Funai, o indigenista Elias Bigio avalia que o crime era uma tragédia anunciada, já que Bruno Pereira vivia em constante ameaça.

"[A tragédia] Era anunciada porque a Univaja [União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, para a qual Pereira prestava serviço] e a própria Funai sabiam de inúmeras ameaças que ele estava sofrendo, do assédio que estava havendo ao Vale do Javari, e não foi tomada uma providência", diz Bigio, que se aposentou da Funai e hoje atua na ong Opan (Operação Amazônia Nativa).

Para o indigenista, a política ambiental do Governo Federal soa como um incentivo para depredadores do ambiente e invasores de terras indígenas.

"As pessoas estão, nesse governo, se sentindo autorizadas a invadir os territórios indígenas e as áreas de proteção ambiental, por conta da falta de firmeza", afirma. "Esses invasores estão sentindo como se eles pudessem fazer porque não vão ser punidos, não vão ter nenhuma consequência de invadir e roubar o patrimônio indígena".

Nesta semana, ainda em meio à comoção sobre a morte do jornalista e do indigenista, Biagi recebeu a reportagem em seu apartamento para uma entrevista.

Elias Bigio - As pessoas estão, nesse governo, se sentindo autorizadas a invadir os territórios indígenas e as áreas de proteção ambiental, por conta da falta de firmeza em punir esses invasores. Esses invasores estão sentindo como se eles pudessem fazer porque não vão ser punidos, não vão ter nenhuma consequência de invadir e roubar o patrimônio indígena.

MidiaNews - A morte do Bruno Pereira foi uma tragédia anunciada?

Elias Bigio - Recentemente a gente viu que ele estava sofrendo muitas ameaças. Ali existem ameaças históricas. O Bruno conhecia bastante aquele território. Assim que o Bruno entrou na Funai, ele foi trabalhar na coordenação regional de Atalaia do Norte (AM), que é uma coordenação exclusiva para o Vale do Javari. Então ele conhecia muito aquela situação. São 19 referências de povos isolados ali dentro, é preciso uma equipe específica para trabalhar com essas situações.

Tem situações já confirmadas e outras que estão sendo trabalhadas ainda. O Bruno esteve muito próximo, a ponto de com o conhecimento que ele adquiriu sobre aquele território, ter sido nomeado coordenador geral de índios isolados e de recente contato da Funai.

Ele fez o trabalho em relação à proteção territorial, com relação aos direitos indígenas de saúde com regularidade, de educação, de atividades econômicas. Veja a quantidade de ameaças que ele estava tendo. Era anunciada porque a Univaja e a própria Funai sabiam de inúmeras ameaças que ele estava sofrendo, do assédio que estava havendo ao Vale do Javari, e não foi tomada uma providência para prevenir a vida dessas pessoas. As pessoas que estão lá continuam correndo risco. As lideranças indígenas que não estão permitindo que invadam seu território, que denunciam, continuam correndo risco.

MidiaNews - O atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, é acusado de não promover a proteção dos povos indígenas. O senhor também pensa isso?

Elias Bigio - Esses relatos de invasões que estou dizendo são caracterizados como omissão da atual gestão da Funai, onde você não tem uma resposta efetiva.

MidiaNews - Pode ser considerado descaso?

Elias Bigio - Uma omissão do órgão indigenista que deve fazer a proteção dos povos indígenas. Descaso não, mas omissão.

MidiaNews - O senhor foi por muito tempo coordenador da equipe de índios isolados da Funai, e esses índios são ameaçados constantemente por madeireiros, garimpeiros e grileiros. Como é o dia a dia dessas equipes no campo?

Elias Bigio - Essas equipes foram constituídas no final da década de 1980, em 88. Foi instituída uma política de proteção para os índios isolados e essas equipes fazem um trabalho em campo de localizar a forma como esses índios ocupam seu território, fazem expedições fluviais e terrestres, fazem sobrevoo para ir localizando onde tem essas moradias dos índios. Em campo, eles vão procurando onde caçam, onde pescam, onde tiram taquara e vão documentando esses vestígios. Às vezes há carcaças de animais que eles mataram para se alimentar, de castanhas do Brasil, então eles veem esses objetos que vão sendo documentados.

Depois de a gente ter essa documentação, essas informações são passadas para a diretoria de terras e se faz a regularização do território para os índios isolados. Em Mato Grosso há os índios Kawahiva, do Rio Pardo, em Colniza, os Piripikura, que foram identificados em 1985... Quando você identifica esses locais com a presença indígena, ele está relativamente preservado, não está com invasores. Quando está com invasores, você identifica e aciona órgãos do governo como o Ibama, a Polícia Federal, para retirar esses invasores. É nessas situações que vivem os conflitos que a gente acabou de verificar no Estado do Amazonas. Hoje, no Brasil, há em torno de 115 referências de índios isolados.

MidiaNews - Em termos de segurança, atualmente quais são os maiores riscos para as equipes que atuam na linha de frente? Essas equipes recebem ameaças constantes?

Elias Bigio - Recebem. As principais ameaças são de madeireiros, garimpeiros, grileiros, pescadores. Não a pesca de alimentação para abastecer uma família. São pescas grandes, predatórias. No caso do Amazonas, é uma pesca para exportação. Quando eu era coordenador geral, nós fizemos uma apreensão de 30 mil alevinos de peixes ornamentais que seriam exportados pelo Peru para outros países.

MidiaNews - Que tipo de segurança é oferecida aos servidores da Funai em áreas remotas?

Elias Bigio - Essas equipes têm pouca segurança. Durante um tempo, por ser servidor da Funai ou do Ibama, as pessoas tinham certo respeito, mas sofriam ameaças. A Funai não tem o poder de polícia regulamentado. A lei de 1973 diz que a Funai tem poder de polícia, mas é administrativo. A Funai precisa do apoio do Ibama, que tem o poder de polícia, para fazer autuações de invasores, que precisam da Polícia Federal. Então, em situações mais conflituosas, você tem que trabalhar com apoio dessas forças, porque a Funai mesmo não tem condições de fazer esse enfrentamento. Essas invasões mais estruturadas por garimpo, grileiros de terra, madeireiros, são feitas com pessoas bastante armadas, bastante preparadas para o enfrentamento. Nós estamos vendo essa situação agora, mas tem "N" outras situações de conflito, de risco de vida para os funcionários e, em muitas situações, chega a acontecer isso que aconteceu com o Bruno.

MidiaNews - Pode-se dizer que, atualmente, os servidores da Funai estão em situação de desamparo no que diz respeito à segurança?

Elias Bigio - Pode-se dizer sim, porque essas pessoas estão muito pouco apoiadas para trabalhar. É isso que estamos vendo, ali no Vale do Javari, em Yanomami, aqui em Mato Grosso, na terra indígena Piripikura, que teve um desmatamento de mais de 2.400 hectares nesse período da pandemia.

MidiaNews - O Jornal Folha de São Paulo revelou que, por falta de concurso, o número de servidores da Funai hoje é um dos menores dos últimos tempos. Tem havido sobrecarga de trabalho por causa da escassez de funcionários?

Elias Bigio - Certamente. Até 2010, havia cerca de 4.500 servidores e hoje parece ter menos de 2.500. As terras indígenas precisam desse trabalho e ficam abertas para invasões. Então certamente há uma sobrecarga maior, porque há poucos funcionários, sobrecarregando quem trabalha. O papel de fazer vigilância da terra indígena (onde houve o assassinato do jornalista e do indigenista) estava sendo feito pela Univaja, um papel que é do Estado. O Bruno pediu licença da Funai para ir apoiar a uma associação indígena que está fazendo segurança e vigilância de seu território dadas as invasões que são muito grandes.

MidiaNews - E essa escassez de funcionários, essa falta, tornou ainda mais difícil o trabalho no campo?

Elias Bigio - Essa escassez, certamente, está sobrecarregando outras pessoas ou o trabalho está deixando de ser realizado. Recentemente, a Funai fez um contrato e a carência é tão grande que, nesse período da pandemia, para 33 terras indígenas, por determinação do Supremo Tribunal Federal, a Funai contratou pessoas, em torno de 600 a 700, para 33 terras indígenas, porque estavam vulneráveis. A contratação foi feita no segundo semestre de 2021. Teve uma ação do STF no âmbito de uma ação movida pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Somente no segundo semestre, quase final do ano, é que foram contratadas algumas pessoas para trabalhar.

MidiaNews - Em Mato Grosso está a terra indígena Piripikura, que vive sob constante ameaça. Qual a situação atual daqueles indígenas?

Elias Bigio - É bom contextualizar um pouco essa questão de Piripikura. O povo Piripikura foi identificado em 1984. Em 1985 houve um grupo de trabalho instituído pela Funai que faz a identificação da terra indígena. A Funai nunca fez a demarcação, mas em 2007 aqueles índios foram recontactados e, quando o contato foi feito, esses índios estavam praticamente exterminados. Em 1989 é feito um contato oficial, pela Funai. Depois, eles têm um novo contato em 1997. Foram quase dez anos sem contato.

Nesse período, foram identificadas 13 pessoas e, quando foi feito o recontato, tinha uma índia, Rita Piripikura, e dois índios que viviam ali. A Funai, em 2008, fez a restrição de uso, que é um instrumento legal, criado pelo decreto 1775 de 1996. Esse decreto faculta ao presidente da Funai fazer uma restrição de uso daquela terra para que as equipes possam fazer a identificação do território. Feito isso, como já havia algumas fazendas instaladas, essas fazendas ficam lá até que a terra indígena seja demarcada.

Elas não podem ampliar suas atividades, não podem fazer desmatamento. Havia madeireiras funcionando lá. Foram embargadas mais de cinco madeireiras por ação do Ministério Público Federal. As fazendas que estavam criando gado continuaram. A Funai passou, por determinação da Justiça, a manter um posto de fiscalização, no qual atuam os servidores. Essa terra indígena de Piripikura está no âmbito dessa ação no Supremo Tribunal Federal, mas nesses dois últimos anos houve um desmatamento de mais de 2.400 hectares. Está documentado e essas informações foram levadas para a Justiça Federal de Mato Grosso.

MidiaNews - Quem documentou esse desmatamento?

Elias Bigio - Imagens de satélite do órgão oficial Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Quem sistematizou essas informações foi o Instituto Socioambiental. Eles têm um monitoramento das terras indígenas ocupadas por isolados. Eles sistematizaram as informações do Inpe, que é um órgão público. A terra está invadida.

MidiaNews - O senhor é autor de um relatório dos povos isolados em Mato Grosso. Quantos são e como vivem esses povos isolados?

Elias Bigio - Nós temos 15 registros de povos indígenas isolados em Mato Grosso e parte desses povos está localizada em terras já demarcadas. A Funai, dada essa carência de pessoal, deu prioridade a trabalhar com povos que não estivessem dentro de terras indígenas mais vulneráveis porque não tem terra demarcada. A Funai não fez esse trabalho dede 1988, quando tem o primeiro quadro. Hoje são 15 referências, registros de povos isolados em Mato Grosso, de status diferentes. Uns estão confirmados, outros estão em estudo e outros são só informações e estão sobre extrema pressão.

Há lugares em que a gente tinha evidências muito fortes e não foi feita uma restrição de uso, não foi feita a demarcação do território e a gente supõe que parte desses índios foi morta ou migrou para determinados lugares do Amazonas, porque estão na fronteira com o Estado, na região Norte de Mato Grosso.

MidiaNews - Então esses povos se encontram muito ameaçados?

Elias Bigio - Estão extremamente ameaçados e nesse último governo estão mais ainda, porque você não tem equipes para fazer esse trabalho.

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