'Brasil em Constituição': Carta Magna reconhece direito dos povos indígenas de viver conforme suas culturas e crenças

g1/Jornal Nacional - https://g1.globo.com/jornal-nacional/brasil-em-constituicao/noticia/ - 21/09/2022
'Brasil em Constituição': Carta Magna reconhece direito dos povos indígenas de viver conforme suas culturas e crenças
A série especial do Jornal Nacional mostra como os povos originários ajudaram a escrever um trecho da Constituição.

21/09/2022

O Brasil contava quase 500 anos de história quando a Constituição de 88 reconheceu que os povos indígenas tinham direito de viver conforme as suas culturas e suas crenças. O episódio desta quarta-feira (21) da série "Brasil em Constituição" mostra como os povos originários ajudaram a escrever um trecho da nossa Carta Magna.

A natureza é testemunha de que eles já estavam aqui com seus cantos, suas crenças e seu modo de vida, mas desde a chegada dos portugueses, em 1500, os povos originários tiveram que lutar por suas terras e pela própria existência. Até 1988 os indígenas eram tratados oficialmente como incapazes, pessoas desprovidas de direitos, que precisavam ser tuteladas pelo estado. Só seriam reconhecidos oficialmente como cidadãos de fato depois de assimilarem a língua e os costumes dos colonizadores.

A Constituição de 1988 rompeu com essa ideia de assimilação. Ela ouviu as vozes que saíram das matas e criou as bases para que os indígenas pudessem usufruir dos direitos que já tinham sido deles.

Artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

A Constituição teve um grande impacto muito grande. Os indígenas que eram menos de 210 mil em 1980, hoje somam uma população de mais de 1,1 milhão de cidadãos. Cidadãos livres para viver e reivindicar como confirma o segundo artigo que eles ajudaram a escrever.

É o artigo 232 que diz que "os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo".

E também com a Constituição que os indígenas do século 21 continuam a lutar.

"Todos os povos indígenas chamam nossa terra mãe, onde que nós nascemos e vivemos, crescemos. Conhecemos as montanhas, lugar bonito. Conhecemos as cachoeiras e a beleza da floresta e a terra. A terra cuida de nós. Não podemos deixar o nosso lugar abandonado. Tem que quer ficar sempre e permanece onde nós nascemos, onde nós vivemos", afirma o líder Yanomami Davi Kopenawa.

A natureza em harmonia com seus habitantes mais próximos. É assim que a terra descansa e é por ela que lideranças como o xamã Yanomami Davi Kopenawa lutam há muito, muito tempo.

"Eu comecei a lutar foi 1972, quando passar na Estrada Perimetral Norte. Eu já estava grande, 13, 14 anos a minha idade", conta o líder Yanomami.

"Brasília viu nascer a decisão de luta contra a maior de todas as barreiras: o verde! É hora de roncar motores. Conquistar espaço", diz o trecho de uma propaganda da época.

"Eu comecei a olhar as máquinas derrubando as árvores, raspando a pele da terra e a as pedras explodindo com bomba. Eu achava muito estranho. Muito perigoso. Descobri a chegada a primeira estrada na terra Yanomami e depois chegado à doença", aponta Davi Kopenawa.

Protegida pela distância, a Amazônia foi a última fronteira de uma batalha por liberdade e sobrevivência. Uma luta que começou em 1500, no litoral quando os portugueses avistaram o monte muito alto e redondo, que chamaram de Pascoal, batalha que nunca mais parou.

"Dos nativos daquela época, nem os descendentes sobrevivem. As tribos Tupi e Aymoré já foram extintas", diz uma reportagem de 2000.

"Além de invadir a reserva indígena, eles derrubam os castanhais de onde o índio retira a castanha. Uma das principais fontes econômicas para o sustento da tribo", diz uma reportagem de 1987.

"Eles entraram atirando e no tiroteio morreram o vice cacique, dois índios e um pistoleiro. O fazendeiro e quatro pistoleiros foram presos 8 dias depois acusados de homicídio", diz outra reportagem de 1987.

Escravizados, desterrados, despojados de suas crenças e suas línguas. Na longa história de perseguições e mortes, os momentos de trégua são poucos. O mais marcante deles aconteceu durante a Constituinte.

"Para muitos desses que estão de cocar, aparecendo na imagem, eles levaram tão a sério esse pacto que é como se fosse um ritual que inaugurava a relação dos povos indígenas com o Brasil. Então, para um homem, um ancião como Raoni e muitas outras lideranças tradicionais que estavam lá aquilo era um sentido sagrado, sagrado como ritual. Era um ritual e se os brasileiros, em geral, tivessem autoestima, eles iam fazer um honrar essa Constituição como um documento sagrado", explica o líder indígena Aílton Krenak.

As lutas e a resistência ganharam a força das novas gerações.

"A gente tem que respeitar uma liturgia jurídica. Eu sou uma profissional, mas eu não deixo de ser uma mulher indígena. Eu venho de uma geração de jovens que foram preparados para ingressarem no Ensino Superior, se tornarem profissionais e poder trazer um retorno para as nossas lutas, para as nossas demandas. Eu já nasci já com uma Constituição escrita, com direitos ali, minimamente né, garantidos aos povos indígenas, então com certeza, é um marco e eu tive consciência disso desde muito cedo", afirma a assessora de Inclusão e Diversidade do TSE, Samara Pataxó.

"Quero que o senhor, como presidente, reconhece na Constituinte nosso direito que nós somos primeiros habitantes aqui no Brasil, ainda vive hoje", disse um indígena a Ulysses Guimarães.

Sete anos antes da instalação da constituinte um episódio escancarou para o mundo o humilhante regime de tutela.

Repórter: O Juruna recebeu dias atrás um convite do Tribunal Betrand Russel, que esse ano vai julgar os crimes contra os índios de todo o mundo. Juruna, você vai aceitar esse convite?
Cacique Mário Juruna: Se quiser me deixar, se quiser me dar passaporte, eu podia aceitar, porque para mim é muito honra esse convite.


Sérgio Chapelin: Mário Juruna não vai mesmo participar do Tribunal Bertrand Russel, na Holanda.
Coronel Nobre da Veiga, presidente da Funai, : Ele não teria representatividade de todas as 120 tribos brasileiras. O Mário Juruna é um tutelado e não tem, só se pode fazer as coisas, qualquer ato jurídico mediante a tutela da Funai.

Foram muitos os abusos cometidos sob a justificativa de que os indígenas eram tutelados. Não tinham direito de ir e vir, de circular entre as aldeias e as cidades. Para tudo dependiam de autorização oficial e nem isso garantia a liberdade.

Cid Moreira: Os índios que estudam em Brasília vão ter que voltar para as reservas.
Marcos Terena, líder indígena: Se isso acontecer, eu vou parar de estudar.

A tentativa de proibir a viagem do cacique Juruna chamou a atenção do mundo. Uma primeira vitória foi alcançada na Justiça, outras viriam com a Constituição.

"Mário Juruna ganha na Justiça o direito de viajar à Holanda para presidir o Tribunal Bertrand Russel", diz uma reportagem.

"O cacique Mário Juruna assistiu a todo o julgamento muito apreensivo, mas manteve sempre ligado o seu gravador", diz o trecho de uma reportagem.

"O direito de ser indígena ele só veio realmente ser reconhecido pelo estado brasileiro, com a Constituição federal de 88,. Mas antes disso, a situação era parecida com essa, se não pior do que a vivenciada pelo Mário Juruna", afirma Samara Pataxó.

"A pedra no meio do nosso caminho era que havia um projeto de emancipação que a ditadura queria propor para a gente que dizia o seguinte: 'eles são iguais a nós. Está vendo? Os índios são iguais nós. Vamos tomar a terra deles, sentar o pé neles e eles vão para a favela'", diz Aílton Krenak.

Mas os indígenas mostraram quem eram, exigiram respeito e deixaram suas marcas na Constituinte.

"Toda essa gente foi capaz de entender no momento da história do Brasil a importância de garantir os direitos dos povos indígenas. É por isso que esses direitos foram impressos na Constituição. Não foi um gesto solitário meu que fez isso, obviamente. Em todo o momento da história tem alguém que simboliza aquele momento que representa aquele momento, que representa aquele momento", explica Krenak.

Pintados com a tinta do jenipapo, do urukum, ou hoje usando celulares, os indígenas são uma diversidade de povos que falam 274 línguas no Brasil. Têm sua cultura, suas crenças e conservam costumes ancestrais. Povos livres para escolher a integração ou outras maneiras de viver e se relacionar com a terra. Direitos que a Constituição reconhece.

"O último capítulo da Constituição sobre os direitos dos índios foi aprovado por 497 votos contra apenas 5. Nas galerias, a comemoração dos índios", diz o trecho de uma reportagem.

Quase quatro anos depois a promessa de demarcação de terras tradicionais indígenas contida na Constituição coroou a luta do líder Yanomami.

"Um decreto garante 9,6 milhões mil hectares de terras para os Yanomami. O presidente Collor ganhou de presente as lanças de guerra dos Yanomami e deu ao cacique Davi Yanomami a caneta usada para assinar a demarcação das terras", diz reportagem de 1992.

"A Constituição chegou a dizer: 'São reconhecidos aos índios, às suas terras'. As terras de propriedade da União, mas de usufruto exclusivo dos índios. Eles têm lições para nos dar em matéria de preservação do meio ambiente. Se eles nos catequizassem em matéria de meio ambiente, nós estaríamos muito bem. É preciso entender que a cultura do branco, à luz da Constituição, não é para substituir a cultura do índio. Não é uma troca. É uma soma. O país enriquece com esse somatório de culturas", afirma o ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto.

"Você aprende inglês, espanhol, francês, você não deixa de ser brasileiro, porque você aprendeu uma outra língua ou porque você está morando em alguma outra cidade durante um tempo, decidiu mudar de país. Esse ponto que muita gente usa para deslegitimar ou para dizer que somos indígenas de mentira. Por que só vocês têm direito, a gente também não?", questiona Samara Pataxó.

"Nós não somos uma ararinha azul, um lobo guará. Nós somos seres humanos e representamos hoje 305 etnias que eu acho maravilhoso, porque apesar de terem tentado desaparecer com a gente antes da Constituição, não conseguiram. E, portanto, a gente atravessou a linha vermelha do desaparecimento", explica Aílton Krenak.

Era um dia de ventania muito forte e a jaqueira não resistiu, tombou, deixando as raízes à mostra. Os pataxós chegaram a achar que era o fim, que a árvore estava morta. Mas o tempo foi passando e surgiu um broto, depois outro, aí um galho, depois outro e mais outro. Hoje, a jaqueira no centro da aldeia é história viva, mais um símbolo de um povo que resiste

"Esse cocar é considerado o primeiro cocar Pataxó. Nossos mais velhos falavam que as outras etnias chamavam de patatchu, que era o povo papagaio. Por conta que nós usávamos a asa do papagaio para produzir nosso cocar. Hoje, só quem utiliza esse cocar normalmente são os caciques. Me sinto honrado em estar utilizando um cocar desse aqui", explica o cacique pataxó Syratã Pataxó.

"Tacaram fogo em nossos kijemes que são nossas casas tradicionais, humilharam os homens na frente das mulheres. Uma violência muito terrível né. A partir desse massacre que aconteceu no território Barra Velha, que é a aldeia mais antiga do povo Pataxó, houve esse espalhamento do povo nosso, dividiu nossas famílias. Só que quando a gente veio para cá, essa aldeia foi fundada por três mulheres, que são a minha mãe e as minhas duas tias. Elas foram convidando os jovens para vim para cá, para poder fortalecer a cultura, aprender a língua, os cânticos, os rezos", conta o cacique Syratã Paxató.

A reserva demarcada na região aonde os portugueses chegaram no sul da Bahia é hoje uma referência de retomada da cultura Pataxó e de preservação da natureza. Aberta aos que querem conhecer e colaborar.

Seja no sul da Bahia, ou no extremo norte do país, quase 20% da vegetação nativa do Brasil têm os indígenas como principais guardiões. De 1990 a 2020, enquanto áreas privadas perderam mais de 20% das matas originais, em terras indígenas a perda foi de 1%. É o que aponta estudo do MapBiomas, mas desde 2019 o afrouxamento da fiscalização contra invasão, garimpo, corte de madeira, caça e pesca ilegais tem tornado a luta mais difícil e perigosa.

Os indígenas seguem resistindo com apoio de muitos, com a força da sua história, sua relação com a natureza e com o documento que ajudaram a escrever.

"Essa Constituição Federal, significa nossa arma. É arco e flecha para defender o nosso direito, para defender o povo. Defender o nosso lugar onde que nós moramos, vivemos", afirma Davi Kopenawa.

Lições que o cacique transmite ao filho, sabedoria que, segundo Krenak e Kopenawa, pode nos ajudar a adiar o fim do mundo. Segurar a queda do céu e proteger a terra para as novas gerações.

Criança: Pataxó é forte e valente, pai da mata luta?
Cacique: Pai da mata protege.
Criança: Cuida?
Cacique: Cuida do filho dele e da natureza.

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